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12 de abr. de 2015

Cristo e Eu (1/3)

Por Charles Spurgeon

“Com Cristo estou juntamente crucificado, e já não vivo eu, mas vive Cristo em mim; e o que agora vivo na carne, vivo na fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim”

Gálatas 2:20.

Nas grandes cadeias de montanhas, há elevados picos que tocam as nuvens, mas, por outro lado, há, aqui e ali, partes mais baixas da cordilheira que podem ser trafegadas pelos viajantes e que se convertem em estradas nacionais que propiciam o intercâmbio comercial entre as diversas terras. Meu texto se ergue ante minha contemplação como uma majestosa cadeia de montanhas, como uma verdadeira Cordilheira dos Andes por sua altura. Esta manhã não vou tentar escalar os cumes de sua magnificência; não temos o tempo e tememos que não tenhamos a habilidade para uma obra dessa natureza, mas, até onde minha capacidade permitir, irei guiá-los através de uma ou duas verdades práticas que poderiam ser úteis para nós esta manhã e poderiam nos introduzir aos ensolarados campos da contemplação.

I. Mãos à obra agora. Peço que observem com muito cuidado, em primeiro lugar, A PERSONALIDADE DA RELIGIÃO CRISTÃ tal como é exibida no texto que vamos analisar.


Quantos pronomes pessoais da primeira pessoa há neste versículo? Acaso não são oito? Há uma copiosa presença de “eus” e “meus”. O texto não contém nenhum plural; não menciona ninguém mais, nem uma terceira pessoa situada longe, mas que o apóstolo trata acerca de si mesmo, de sua própria vida interior, de sua própria morte espiritual, do amor de Cristo por ele e do grande sacrifício que Cristo realizou por ele. “O qual me amou e se entregou por mim”. Isso é introdutivo, pois um sinal distintivo da religião cristã é que faz ressaltar a individualidade da pessoa. Não nos faz egoístas, pelo contrário, cura- nos desse mal, mas com tudo isso, manifesta em nós uma identidade mediante a qual nos tornamos conscientes, de maneira eminente, de nossa individualidade pessoal. Nos céus noturnos se tinha observado há muito tempo brilhantes massas de luz; os astrônomos as chamaram de “nebulosas”; supunham que eram depósitos de matéria caótica disforme, até que o telescópio de Herschell as identificou como distintas estrelas. O que fez o telescópio com as estrelas, a religião de Cristo faz com os homens, quando a recebem em seus corações. Os homens se consideram como fundidos com a raça, ou submersos na comunidade, ou absorvidos pela humanidade universal; têm uma ideia muito confusa acerca de suas obrigações independentes para com Deus e de suas relações pessoais para com seu governo, mas o Evangelho, como telescópio, isola o homem frente a si mesmo, faz com que se veja como uma existência separada, e o obriga a meditar sobre seu próprio pecado, sobre sua própria salvação e sua própria condenação pessoal, a menos que seja salvo pela graça. No caminho espaçoso há tantos viajantes, que se vocês lançarem um olhar sobre ele como voo de pássaro, parecerá estar cheio de uma vasta multidão de homens que avança em desordem; mas no caminho estreito que conduz à vida eterna, cada viajante é único; atrai sua atenção; é um homem devidamente identificado. Tendo que ir contra a corrente geral dos tempos, o crente é um indivíduo sobre o qual se pousam olhos observantes. É um indivíduo distinto tanto para ele mesmo quanto para o resto dos de sua classe.

Verá muito facilmente como a religião de Jesus Cristo faz com que se destaque a individualidade de um homem desde seu alvorecer; revela-lhe seu próprio pecado pessoal e o consequente perigo. Você não sabe nada sobre a conversão se crê meramente na depravação humana e na ruína humana, mas nunca sentiu que você é depravado, e que você mesmo está arruinado. Por cima de todas as calamidades gerais da raça, haverá um infortúnio particular que é de sua propriedade. Se é que o Espírito Santo lhe convenceu do pecado; você clamará igual àquele profeta de Jerusalém de voz suplicante nos dias do sítio: “Ai de mim!”; sentirá como se as flechas de Deus estivessem apontando principalmente para você, e como se as maldições da lei fossem cair seguramente sobre você se não caírem sobre ninguém mais. Certamente, querido ouvinte, você não sabe nada sobre a salvação a menos que tenha olhado pessoalmente, com seus próprios olhos, para Jesus Cristo. Você tem que receber pessoalmente o Senhor Jesus Cristo, nos braços de sua fé e no peito do seu amor; e, se você não tem confiado no Crucificado, enquanto tem ficado só em contemplação aos pés da cruz, então você não tem crido para a vida eterna.

Logo, como consequência de uma fé pessoal e individual, o crente goza de uma paz pessoal; ele sente que se toda terra estivesse pegando em armas, ele ainda encontraria repouso em Cristo, e esse repouso é peculiarmente seu, independentemente de seus companheiros. Você pode falar dessa paz em outros, mas não pode comunicá-la; outros não podem dá-la, nem podem tirá-la. Onde quer que a religião cristã esteja verdadeiramente na alma, logo conduz a uma consagração pessoal a Deus. O homem se aproxima do altar de Cristo e exclama; “eis-me aqui; Oh, Senhor supremamente glorioso, eu sinto que meu culto racional é dar-Te espírito, alma e corpo. Que outros façam o que quiserem, mas eu e minha casa serviremos ao SENHOR Jehová”. O homem regenerado sente que a obra de outros não o exonera do serviço, e a fraqueza geral da igreja cristã não pode ser uma desculpa para sua própria indiferença. Ele se destaca na luta contra o erro inclusive como um protestante solitário, se fosse necessário, como Atanásio, que clamava: “eu, Atanásio, contra o mundo inteiro”; ou trabalha para Deus na edificação de Jerusalém, como Neemias, contentando-se com trabalhar só se outros não querem ajudá-lo. Descobriu que estava pessoalmente perdido, e que foi salvo pessoalmente, e agora sua oração é: “Senhor, mostra-me o que queres que eu faça; aqui estou eu, envia-me”. Eu creio que na medida em que nossa piedade esteja definitivamente na primeira pessoa do singular será forte e vigorosa.

Ademais, creio que na medida em que compreendamos plenamente nossa responsabilidade pessoal para com Deus, será mais provável que a cumpramos; mas se não a temos entendido realmente, é muito provável que sonhemos em trabalhar para Deus mediante uma autoridade, em pagar ao sacerdote ou ao ministro para que nos sejam úteis, e que atuemos como se pudéssemos transladar a responsabilidade de nossos próprios ombros às costas de uma sociedade ou de uma igreja. Desde seu alvorecer até sua glória do meio-dia, a personalidade da verdadeira piedade é sumamente observável. Todo o ensinamento de nossa santa fé leva para essa direção. Nós pregamos a eleição pessoal, o chamado pessoal, a regeneração pessoal, a perseverança pessoal, a santidade pessoal, e não conhecemos nenhuma obra da graça que não seja pessoal para aquele que a professa. Não há nenhuma doutrina na Escritura que ensine que o homem pode ser salvo pela piedade de outro. Eu não pude descobrir nada parecido à salvação por patrocínio, exceto no único caso do patrocínio do Senhor Jesus Cristo. Não encontro nenhum ser humano colocado no lugar de outro para ser capaz de tomar a carga de pecado do outro, ou realizar o dever de alguém mais. Eu encontro, na verdade, que devemos levar as cargas uns dos outros com respeito à simpatia, mas não no sentido da substituição. Cada ser humano tem de levar sua própria carga, e tem de dar conta de si mesmo ante Deus.

Ademais, as ordenanças da religião cristã nos dizem o mesmo. Quando o homem é sepultado com Cristo, por exemplo, pelo ato público do batismo, não pode estar morto por outro ou ser sepultado por outro, nem pode ressuscitar no lugar de outro. Dá-se o ato pessoal de imersão para manifestar nossa morte pessoal para o mundo, nosso pessoal enterro com Cristo e nossa ressurreição pessoal com Ele. Assim também, na Ceia do Senhor, o ato individual de cada pessoa que come e bebe por si mesma, declara de maneira muito manifesta que nos apresentamos como indivíduos diante do Senhor, nosso Deus, em nosso vínculo com o Senhor Jesus Cristo. Agora, eu creio sinceramente que nada deve destruir, jamais, o efeito dessa verdade em nossas mentes. É uma verdade tão simples que, quando a enuncio, vocês se perguntarão, talvez, porque a repito com tanta frequência; mas, simples como é, está sendo esquecida frequentemente. Quantos membros da igreja se escondem atrás da vigorosa ação da comunidade inteira! A igreja vai crescendo, a igreja abre escolas, a igreja edifica novas casas de oração, e então o membro da igreja se sente lisonjeado porque ele está fazendo algo, quando na realidade esse mesmo indivíduo poderia não ter feito absolutamente nada mediante suas contribuições ou suas orações ou seus ensinamentos pessoais. Oh, ocioso membro da igreja, eu lhe suplico, sacuda-se do seu pó; não seja tão infame para apropriar-se dos trabalhos de outras pessoas. Diante do seu próprio Senhor, você se sustentará ou cairá sobre seu próprio serviço individual ou sua negligência individual, e se você não produzir nenhum fruto por si mesmo, todo o fruto dos outros ramos não lhe servirá de nada. “Toda árvore que não dá bom fruto é cortada e jogado no fogo”. “Todo galho que em mim não produz fruto será tirado”.

É muito comum, também, que as pessoas se escondam por trás de uma sociedade. Uma pequena contribuição anual tem sido, com frequência, um manto para uma indiferença crassa com respeito ao santo esforço. A alguém mais se paga para que seja um missionário e desempenhe seu trabalho de missão; é esse o caminho do Senhor? É essa a senda da obediência? Acaso o Senhor não me diz: “Como me enviou o Pai, assim também eu os envio?” Agora notem, o Pai não enviou Cristo para que procurasse um delegado e fosse um Redentor nominal, mas que Jesus se entregou a si mesmo por nós em um serviço e um sacrifício pessoal; de igual maneira, Jesus nos envia para que soframos e sirvamos. Está bem apoiar o ministro; está bom pagar ao missionário local para que possa dedicar seu tempo a essa obra necessária, está bem ajudar à mulher que distribui Bíblias para que possa ir de casa em casa, mas, lembrem-se de que quando todas as sociedades tenham feito tudo o que é possível, vocês não podem se exonerar do seu chamado pessoal, e sem importar quão grandes puderam ser suas contribuições para ajudar a outros a servir o Senhor, não podem se liberar, em seu nome, de uma só partícula do que você deve pessoalmente ao seu Senhor. Permitam lhes suplicar, irmãos e irmãs, que se vocês alguma vez se esconderam atrás do trabalho de outros, compareçam em seu próprio caráter, e lembrem que diante de Deus tem de ser avaliados pelo que vocês sentem, pelo que vocês conhecem, pelo que vocês têm aprendido e pelo o que vocês têm feito.

A pior forma deste mal é quando as pessoas, às vezes, imaginam que a piedade familiar e a religião nacional podem estar disponíveis no lugar do arrependimento e da fé individual. Absurdo como poderia parecer, é algo muito comum que as pessoas digam: “Oh, sim, todos nós somos cristãos. É evidente que todos somos cristãos; todo inglês é cristão. Nós não pertencemos aos brâmanes ou aos muçulmanos; todos somos cristãos”. Que mentira mais absurda que um homem pode inventar? É cristão um homem por viver na Inglaterra? Acaso uma ratazana é um cavalo porque vive em um estábulo? Esse é um raciocínio tão bom quanto. Um indivíduo deve nascer de novo, ou não é um filho de Deus. Um indivíduo deve ter uma fé viva no Senhor Jesus Cristo, ou do contrário não é nenhum cristão, e nada faz senão escarnecer do nome de cristão quando o assume sem ter parte nem sorte nesse assunto.

Outros dizem: “minha mãe e meu pai professaram sempre essa religião, e portanto, eu estou obrigado a fazer o mesmo”. É um glorioso raciocínio apropriado, certamente, para os idiotas! Vocês nunca ouviram acerca daquele antigo monarca pagão que professava a conversão, e que estava a ponto de entrar na fonte batismal, quando, voltando-se para onde estava o bispo, perguntou: “Para onde foi meu pai quando morreu, antes da sua religião chegar aqui, e onde foi seu pai e todos os reis que foram antes de mim que adoraram a Odin e a Thor? Para onde foram quando morreram? Diga-me imediatamente”! O bispo balançou a cabeça, pareceu muito triste e disse que temia que eles tivessem ido para um lugar muito tenebroso. “Ah, então” – disse ele – “eu não quero ficar separado deles”. Voltou e seguiu sendo um pagão sem o batismo. Vocês supõem que esta loucura acabou na era do obscurantismo? Sobrevive e prolifera no presente. Conhecemos pessoas que se impressionaram com o Evangelho, que, não obstante, apegaram-se às falsas esperanças da superstição ou do mérito humano, e se têm desculpado dizendo: “Olha, eu fui educado desta maneira”. Pensa um homem que porque sua mãe foi pobre, ou seu pai foi um indigente, que ele mesmo tem que seguir sendo um mendigo? Se meu progenitor foi um cego, estou obrigado a jogar meus próprios olhos fora para ser como ele? Não, mas se contemplei a luz da verdade de Jesus Cristo, devo segui-la e não hei de ser desorientado pela ideia de que a superstição hereditária é menos perigosa ou errônea, porque uma dúzia de gerações foram enganadas por ela. Você tem que se apresentar diante de Deus, meu querido amigo, com seus próprios pés, e nem mãe nem pai podem tomar o seu lugar, portanto, julgue por si mesmo; busque a vida eterna; levante seus olhos para a cruz de Cristo pessoalmente, e que seja seu sério empenho que você mesmo seja capaz de dizer: “Ele me amou e se entregou por mim”.

Todos nascemos sozinhos; viemos a esse mundo como tristes peregrinos para percorrer uma trilha que unicamente nossos próprios pés podem percorrer. Em grande medida, vamos sozinhos pelo mundo, pois todos os nossos companheiros são apenas barcos que navegam ao nosso lado, barcos diferentes que levam, cada um deles, sua própria bandeira. Ninguém pode mergulhar na profundidade de nossos corações. Há armários na alcova da alma que ninguém pode abrir senão a própria pessoa. Temos que morrer sós; os amigos podem rodear o leito, mas o espírito que parte tem de alçar voo sozinho. Não vamos ouvir as pisadas de milhares conforme desçamos ao negro rio; seremos viajantes solitários ao nos adentrar na terra ignota. Esperamos nos apresentar diante do tribunal em meio a uma grande assembleia, mas ainda para ser julgados como se ninguém mais estivesse ali. Se toda essa multidão é condenada, e nós estamos em Cristo, seremos salvos, e se todos eles forem salvos, e nós encontrados em falta, seremos descartados. Cada um de nós será colocado só nas balanças. Há um cadinho para cada lingote de ouro, um forno para cada barra de prata. Na ressurreição, cada semente receberá seu próprio corpo. Haverá uma individualidade no corpo do ressuscitado naquele dia de prodígios, uma individualidade extremamente marcada e manifesta. Se eu sou condenado ao final, ninguém pode ser condenado pelo meu espírito; nenhuma alma pode entrar nas câmaras de fogo em meu nome para suportar por mim a indizível angústia. E, bendita esperança, se sou salvo, serei eu quem verá o Rei em sua formosura; meus olhos o verão, e não outro em meu lugar. Os gozos do céu não serão gozos através de um substituto, mas os desfrutes pessoais daqueles que tiveram uma união pessoal com Cristo. Todos vocês sabem disso, e portanto, eu lhes rogo que permitam que essa importante verdade permaneça com vocês. Nenhum homem sensato pensa que outro pode comer por ele ou beber por ele, ou se vestir por ele, dormir por ele ou acordar por ele. Ninguém está contente hoje em dia com o fato de que alguém mais possua dinheiro por ele, ou que possua uma propriedade por ele; os homens anseiam possuir eles mesmos as riquezas; desejam ser felizes pessoalmente, ser reconhecidos pessoalmente; não lhes importa que as boas coisas desta vida sejam só nominalmente deles, enquanto outros homens se aproveitam das coisas reais; eles desejam ter um domínio real e um controle de todos os bens temporais. Oh, não façamos papel de tolos com as coisas eternas, mas desejemos ter um interesse pessoal por Cristo, e logo aspiraremos dar a Ele, que merece tanto, nosso serviço pessoal, entregando espírito, alma e corpo à Sua causa.
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