Uma das grandes ênfases das Escrituras diz respeito à educação
do povo de Deus. O Senhor diz insistentemente ao povo que preserve a sua
Palavra, guardando-a (praticando) e ensinando-a aos seus descendentes. O método
estabelecido por Deus que perpassa a todos os outros é o da “repetição” (Shãnâ)
(Dt 6.6ss). Não deixa de ser elucidativo, que o Shemá (“ouve”), o “credo judeu” – que
consistia na leitura de Deuteronômio 6.4-9; 11.13-21 e Números 15.37-41 –,
fosse repetido três vezes ao dia.
Por
isso, nada mais natural que um movimento de reforma da igreja, um retorno à
Escritura, tenha sido tão enfático na valorização da educação. Nenhuma surpresa
será constatar-se que os países que abraçaram a Reforma do século 16 se
destacaram pelo ensino e pelo conseqüente desenvolvimento, enquanto os outros
perpetuavam as trevas da ignorância medieval.
I. O ensino sistemático da lei
Um
princípio importante prescrito na Palavra é que a revelação de Deus foi-nos
confiada para que a conheçamos e a pratiquemos (Dt 29.29). Deus provê os
princípios, os meios e os fins. Ele mesmo que se dignou dar-nos sua Palavra e
tem propósitos definidos e meios estabelecidos para que a sua vontade se
cumpra. No Antigo Testamento vemos a educação sendo amplamente praticada dentro
do lar, sendo os mestres os próprios pais.
No âmbito nacional, vemos que Deus confiou em especial aos sacerdotes a responsabilidade de ensinar a lei –
lendo-a periodicamente diante de todo o povo –, aplicando-a às necessidades de
seus ouvintes (Lv 10.11; Dt 17.8-11; 31.9-13/2Rs 12.2). Eles eram conhecidos
como “os que tratavam da lei” (Jr 2.8). A fidelidade dos sacerdotes no
cumprimento de sua missão servia em geral como “termômetro” para medir a
situação espiritual do povo. Quando os sacerdotes se desviavam desse propósito,
as conseqüências eram fatais. No 8º século a.C., temos um grave e desolador
problema na vida espiritual de Israel (reino do norte): Os sacerdotes não
ensinavam mais a lei e o povo, ao longo dos anos, prosseguia em seu caminho de
desobediência. Deus demonstra por meio de Oséias (c. 750-723) que o povo era a
expressão viva do sacerdote, ainda que, ironicamente, por vezes o povo o
acusasse: “O teu povo é como os sacerdotes aos quais acusa…. como é o povo,
assim é o sacerdote” (Os 4.4,9). Por outro lado, também é verdade que o povo
tornara-se surdo ao apelo divino (Os 8.12; 12.10,13; 2Rs 17.13).
II. A praticidade da Palavra
para o ensino e a educação
O escritor da epístola aos Hebreus declara que “A Palavra de
Deus é viva e eficaz” (Hb 4.12). A Palavra de Deus é uma verdade tão viva agora
quanto o era quando foi revelada por Deus aos seus servos, que a registraram
inspirados pelo Espírito Santo. Ela continua com a mesma eficácia para os
questionamentos existenciais do homem moderno. Nosso problema no século 21 – e
até mesmo muitos de nós cristãos – é que, com freqüência, sem percebermos,
trocamos os preceitos da Bíblia por conselhos de revistas e livros, por
modismos veiculados pelos meios de comunicação; substituímos a Bíblia pela
psicologia, filosofia, sociologia, antropologia e até mesmo, astrologia,
colocando-as como o nosso parâmetro de comportamento, em detrimento da
inerrante, infalível Palavra de Deus, que é a verdade viva e eficaz de Deus
para nós. Isso tudo nós fazemos alegando estar sendo práticos,
esquecendo-nos de que toda e cada parte do ensino bíblico é urgente e
necessariamente prático, relevante para nós.
Quando
adotamos essa “prática” contemporânea que destoa das Escrituras, cometemos uma
total inversão de valores: assimilamos os conceitos humanos que, quando
corretos, nada acrescentam à Palavra mas que, na realidade, na maioria das
vezes, estão totalmente equivocados, porque desconhecem a dimensão do eterno,
os valores celestiais para a nossa vida aqui e agora e, por isso mesmo,
apresentam ensinamentos mundanos, frutos de uma geração corrompida. Tais
conceitos assumem na vida da igreja um papel orientador. A igreja, ao contrário
disso, é chamada a ser uma antítese ativa contra os valores deste século; ela é
convocada a viver a Palavra, a considerá-la como de fato é, a Palavra
infalivelmente viva e eficaz para a nossa vida, a Palavra final de Deus para a
nossa existência terrena.
A lei
de Deus continua sendo o princípio norteador de toda a vida cristã. Deus
continua ordenando que nós não adulteremos, não roubemos, não matemos, que
honremos os nossos pais, que o adoremos com exclusividade… O que pode
fazer uma igreja que preza a Palavra de Deus senão promover o seu ensino e,
mais amplamente, promover uma educação calcada nos preceitos do Senhor?
III. A Reforma e a Educação[1]
A. Calvino e John Knox
Calvino[2] criou
uma Academia em Genebra (1559), atingindo alunos estrangeiros vindos de vários
países da Europa. A Academia tornou-se grandemente respeitada em toda a Europa;
o grau concedido aos seus alunos era amplamente aceito e considerado em
universidades de países protestantes como a Holanda.
John Knox[3] (1515-1572),
após estudar em Genebra, desenvolveu para a Escócia um plano educacional que
contribuiria para o progresso do país nas áreas material e espiritual,[4] tendo
a Bíblia como tema principal de estudo. A igreja pagaria as despesas dos
alunos. A partir desse plano o Parlamento escocês aprovou em 1646 a criação de
uma escola para cada região, seguindo indicação do presbitério, votando-se
verba para salário dos professores. Aqui houve uma cooperação entre a Igreja e
o Estado, estando a supervisão das escolas e professores entregue à Igreja.
Este sistema, tão bem sucedido na Escócia, só viria sofrer alterações
significativas no século 19.
B. João Amós Comênio
João Amós Comênio (Comenius)[5] (1592-1670),
foi batizado com esse nome em homenagem ao pré-reformador João Hus[6] (lição
8) e iniciador da Igreja
Morávia (Irmãos
Unidos).[7] Aquele
que seria conhecido como “Pai da Didática Moderna”, teve uma vida difícil:
órfão aos 12 anos (1604), foi acolhido por uma tia paterna. Nesse período pôde
estudar na escola dos Irmãos Unidos (1604-1605). Somente aos 16 anos (1608) é
que entrou para a escola latina de Prerau. Em 1611 ingressou na Universidade de
Herborn e em 1613 foi admitido na Universidade de Heidelberg (Alemanha), onde
estudou teologia. Em 26 de abril de 1616 é ordenado pastor. Desde 1618 exerce o
pastorado na cidade de Fulnek, na Morávia. No entanto, com a invasão da Boêmia
e de sua cidade, que é saqueada e queimada, Comênio é proscrito em 1621, perde
sua biblioteca e manuscritos e, o pior: sua mulher, grávida, e seus dois
filhos, morrem vitimados pela peste. Ele passou a ter uma vida errante pela
Europa. No entanto, apesar de suas tribulações, Comênio pôde produzir uma obra
vastíssima ligada especialmente à educação (mais de 140 tratados), sendo o seu
principal trabalho – que resume bem a sua obra –, a Didática Magna(escrita
em 1632 e publicada em latim em 1657). O método audiovisual encontrou a sua
origem em Comênio, também chamado de o “evangelista da moderna pedagogia”.[8] Ele
foi o último bispo da Igreja dos Irmãos Boêmios (1632).
Comênio foi o filósofo da educação e o educador mais notável do
século 17 e um dos mais importantes de toda a História, tendo a sua obra
exercido grande influência durante a sua vida e especialmente nos séculos
posteriores, sendo um dos incentivadores da Escola
Pública. Há evidências de que ele teria sido convidado por John
Winthrop Jr. (1606-1676) a presidir o Harvard College (1642), cargo que de fato
nunca ocupou. Na realidade, Comênio recebeu ao longo da vida diversos convites,
os quais não pôde atender, como o do Cardeal Richelieu da França, da cidade de
Hamburgo e de alguns nobres poloneses. Em 1641 Comênio atendeu o convite de
Luís de Gerr que, em nome do rei Gustavo Adolfo da Suécia, solicitou-lhe ajuda
para reformar o sistema de escola nacional sueco. Em 1656 ele foi, à convite,
viver na Holanda, onde passou o resto de seus dias. Morreu em 15 de novembro de
1670. O filósofo luterano G.W. Leibniz (1646-1716), então com 24 anos,
dedicou-lhe os seguintes versos: “Tempo virá em que a multidão dos homens de
bem te honrará e honrará não somente tuas obras, mas também tuas esperanças e
teus votos”.
Conclusão
A
forte ênfase que as Escrituras dão ao seu ensino e o lugar de destaque que essa
empreitada deveria receber nos lares de Israel, bem como na própria vida
nacional do povo escolhido, acompanharão toda a história da igreja, lembrando o
povo de Deus de que os termos da Aliança não podem ser esquecidos, ao
contrário, devem ser ensinados aos pequeninos e lembrados a todos de todas as
idades.
Então,
como povo de Deus e, particularmente, como herdeiros da Reforma, carecemos
dessa ênfase. E, num país com as raízes que tem o nosso, onde a educação não
foi privilegiada desde o começo por não haver uma preocupação com o estudo da
Palavra de Deus, essa ênfase haverá de gerar – e é preciso que assim seja – uma
preocupação em promover ainda mais a educação. Não basta que sejamos menos
iletrados do que o restante da população – como de fato somos. É preciso lutar,
como fizeram Calvino, Knox, Comênio, e tantos outros, para promover a educação
de todos com base na verdade.
Será a
nossa contribuição para reformar não apenas o Cristianismo no Brasil, mas o
próprio país e, acima de tudo, será a nossa contribuição para que Deus seja
glorificado.
***
[1] Ver: Revista Expressão, tema do
trimestre: Cidadania Cristã: uma
perspectiva reformada, São
Paulo, Editora Cultura Cristã, 1º tri. 2002, lição nº 3.
[3] Para
mais dados ver http://www.forerunner.com/forerunner/X0525_Bios-_John_Knox.html e http://www.creeds.net/bios/jknox.htm
[4] Planejamento da Educação: Um
Levantamento Mundial de Problemas e Prospectivas, Conferências Promovidas pela Unesco,
Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1975, p. 4.
[5] Para
mais dados ver http://www.nibis.ni.schule.de/~rs-leer/com/comen06.htm e http://www.moravian.edu/aboutmc/comenius.htm
[6]Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História
do Cristianismo, São
Paulo, Editora Cultura Cristã, 2000, p. 192; André Biéler, O Pensamento Econômico e Social
de Calvino, São
Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 39.
[7] Cito
como curiosidade, que mais tarde, o Regente Feijó tentará trazer os Irmãos
Morávios ao Brasil (1836), com o objetivo de trabalhar na catequese dos índios.
Contudo, lamentavelmente eles estavam “impossibilitados de atender” o convite.
(Ver: Daniel P. Kidder,Reminiscências
de Viagens e Permanência no Brasil (Rio de
Janeiro e Província de São Paulo), São Paulo, Martins Fontes, (1951), Vol. I,
p. 41).
[8] Título
da obra de Will S. Monroe, publicada em Boston (1892):Comenius, the evangelist of
modern pedagogy.
___________
Fonte: Ultimato
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