Por Jonas Madureira
Cheguei!
— disse Frodo. — Mas agora minha escolha é não fazer o que vim para fazer. Não
vou realizar este feito. O Anel é meu! — E de repente, colocando-o no dedo,
desapareceu. — J. R. R. Tolkien, O Retorno do Rei
(terceira parte de “O Senhor dos Anéis”), São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.
293
Ao longo da vida, passamos
por diversas tentações, mas nenhuma delas é mais terrível do que a “última
tentação”. Entretanto, o que mais me espanta é saber que não apenas passamos
por diversas tentações, mas por várias “últimas tentações”.
Explico. As tentações
dependem sempre de uma missão. E cada missão tem a sua própria duração. Algumas
missões duram décadas, outras apenas algumas horas ou frações de minutos.
Assim, dizer que nossas missões têm uma duração não é outra coisa senão dizer
que elas têm começo, meio e fim. Por outro lado, as tentações representam todas
as múltiplas formas potencialmente capazes de fazerem de tudo para impedir que
a missão se realize do começo ao fim. Por isso, é bastante perturbador
descobrir que vencer as tentações no início de uma jornada não é suficiente. É
preciso vencê-las até o fim.
Entendo que a “última
tentação” acompanha o último e derradeiro desafio que precisamos atravessar
para concluirmos uma missão. Parece-me que nem mesmo Jesus foi privado desse
enredo existencial. No evangelho segundo Mateus, descobrimos que Jesus foi
tentado logo no início de seu ministério (Mt 4.1-11). Depois de jejuar quarenta
dias e quarenta noites, justamente quando estava para concluir o período de
jejum, Jesus teve fome. Ali, naquela hora de fragilidade, instaurou-se o último
desafio e com ele a “última tentação”. Certamente, o objetivo das três
tentações não era meramente transformar pedra em pão, dar ordens aos anjos ou
prostrar-se diante de Satã. Pelo contrário, o objetivo era fazer com que Jesus
realizasse a sua própria vontade, dando ordens para mudar o estado de coisas,
ou seja, para fazer com que tudo fosse feito conforme a sua vontade e não a do
Pai.
Bem mais adiante, no final
do seu ministério, como Mateus faz questão de enfatizar, Jesus é mais uma vez
tentado, e justamente quando está prestes a cumprir a mais importante missão
que Deus já conferiu a alguém. Na companhia de alguns discípulos (Pedro e os
dois filhos de Zebedeu, Mt 26.37), ele se retirou para o Getsêmani, o jardim das
aflições. Lá, ele se angustiou profundamente e orou ao Pai, dizendo: “Meu Pai,
se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero,
mas sim como tu queres.” (Mt 26.39).
O último desafio daquela
missão era terrível, pois exigia não apenas a sua morte, mas a sua mais
terrível humilhação. Depois do jardim, aquele que é o Senhor do universo, seria
espancado, cuspido e ridicularizado no Sinédrio (Mt 26.59-67); seria amarrado
como um animal, arrastado até Pilatos, que ordenaria açoitá-lo com os requintes
de crueldade da guarda pretoriana (Mt 27.26); mais adiante, no Pretório, seria
desnudado, ridicularizado, coroado com espinhos que perfurariam sua cabeça; por
fim, ao som da zombaria, seria crucificado ao lado de dois ladrões (Mt 27.32-44).
É inegável que Jesus tinha todas as razões do mundo para se angustiar naquele
jardim (Mt 26.37,38). Mais do que ninguém, Jesus sabia muito bem que a “última
tentação” era ser dominado pelo ímpeto de fazer a própria vontade em vez de
cumprir a vontade de Deus.
Agora, no jardim das
aflições, como era de se esperar, surge a “última tentação”. Para vencê-la,
Jesus resolve orar. Sua oração é um exercício de autodeterminação em favor da
submissão à vontade de Deus. Orar, clamando pelo livramento da cruz, configuraria
uma fuga da missão. É por isso que, em oração, Jesus resiste a tentação de orar
por livramento. Clamar pelo livramento da cruz seria suplicar pela destruição
da missão! Em vez de fazer a sua própria vontade, Cristo resolveu, portanto,
fazer não o que ele queria, mas o que ele veio para fazer.
Se você se lembra bem desse
episódio, então, se recordará de como Pedro, ao contrário de Jesus, caiu em
tentação. Jesus havia dito para ele e os outros discípulos: “Vigiem e orem para
que não caiam em tentação.” (Mt 26.41). Em vez de orar, Pedro e os demais
dormiram. E isso aconteceu não uma, mas três vezes! Você deve estar se
perguntando: como Pedro caiu em tentação? Você se lembra que quando Judas
apareceu no jardim e beijou Jesus, este era o sinal que Malco, o servo do sumo
sacerdote (Jo 18.10), precisava para prendê-lo? Se você se lembra bem disso,
então, é possível que se recorde também da reação de Pedro. Quando Malco
colocou a mão em Jesus para prendê-lo, Pedro sacou sua espada e, com um golpe
desastroso, decepou a orelha de Malco. Foi desastroso porque o objetivo de
Pedro não era obviamente arrancar a orelha, mas sim a cabeça de Malco! Deixando
de lado as idiossincrasias de Pedro, o que importa é a exortação de Cristo:
“Guarde
a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão. Você acha
que eu não posso pedir a meu Pai, e ele não colocaria imediatamente à minha
disposição mais de doze legiões de anjos? Como então se cumpririam as
Escrituras que dizem que as coisas deveriam acontecer desta forma?” (Mt
26.52-54).
Defender Jesus contra
aqueles que o agridem pode até parecer uma demonstração de coragem, mas, na
verdade, pode também não passar de uma demonstração de covardia. Somos
corajosos o suficiente para fazer o que queremos e demasiadamente covardes para
fazer o que Deus quer. E quando falta coragem para fazer a vontade de Deus,
sobra a covardia, que nos faz cair em tentação. Na “última tentação”, não somos
vencidos por Satã, mas por nós mesmos.
Na trilogia “O Senhor dos
Anéis”, quando Frodo, o hobbit responsável por destruir o Anel, está prestes a
concluir a sua missão, ele também cai em tentação:
“Cheguei!
— disse Frodo. — Mas agora minha escolha é não fazer o que vim para fazer. Não
vou realizar este feito. O Anel é meu! — E de repente, colocando-o no dedo,
desapareceu.”
Enfim, o que é isso que, em
nós, cresce como uma correnteza nos arrastando para longe do cumprimento da
nossa missão? Acredito que essa correnteza seja a nossa vontade de poder.
Queremos dar a cartada final de nossas vidas. Queremos ser senhores do nosso
destino. E se por alguma razão descobrimos que não podemos realizar tal
façanha, então, estamos ao menos dispostos a fazer de tudo para, pelo menos,
nos sentirmos no controle da situação.
Outro exemplo bíblico que me
vem à mente é o do profeta Jonas. Não é à toa que o profeta comprou o bilhete
para Társis. Não se tratava apenas da manifestação corajosa de alguém dar um
norte para a vida, diferente do norte dado por Deus. Há em Jonas uma disposição
para fazer o que ele quer, porque há em Jonas, como em todos os homens, uma
disposição para cair em tentação. Cair em tentação não é subverter nossa
natureza. Pelo contrário, a verdadeira subversão está no cumprimento da vontade
de Deus justamente quando as forças externas (tentações) e internas (vontades e
desejos) são como uma correnteza que nos arrasta para longe da face do Senhor.
É preciso resistir as
tentações e principalmente a “última tentação”. Você será mais tentado quando
estiver prestes a realizar a sua missão do que quando estiver dando os
primeiros passos! Jesus nos ensinou a vencer a tentação tanto no início como
principalmente no fim, nos ensinando que resistir à Satã é se submeter à Deus.
Como bem disse Dietrich Bonhoeffer, a vitória sobre a tentação conta com a
capacidade de discernirmos a mão de Satã e a mão de Deus. Em suas palavras:
“Na
tentação concreta do cristão, sempre é preciso distinguir a mão do diabo e a
mão de Deus. Estão em jogo, portanto, a resistência e a submissão no lugar
certo, ou, em outras palavras: a resistência contra o diabo só é possível na
total submissão sob a mão de Deus.” [Tentação, São Leopoldo:
Sinodal, 2003, p. 44]
______________________
Fonte: Blog do Jonas Madureira
Nenhum comentário:
Postar um comentário