Quando entendemos a eleição como ação soberana da parte de Deus de escolher algumas pessoas para serem salvas, há então necessariamente outro aspecto dessa escolha, a saber, a decisão soberana de Deus de não levar em conta outras e não salvá-las. Essa decisão de Deus na eternidade passada é chamada reprovação. Reprovação é a decisão soberana de Deus, antes da criação, de não levar em conta algumas pessoas, decidindo em tristeza não salvá-las e puni-las por seus pecados, manifestando por meio disso sua justiça.
De muitas maneiras, a doutrina da reprovação é o mais difícil de todos os ensinos das Escrituras; difícil de entender e difícil de aceitar, porque trata de conseqüências horríveis e eternas para seres humanos feitos à imagem de Deus. O amor que Deus nos dá pelos outros seres humanos e também o amor que Ele ordena que tenhamos pelo próximo nos fazem recuar diante dessa doutrina, e é compreensível que sintamos tão grande terror ao contemplá-la. [23] É algo em que não iríamos querer acreditar, e não acreditaríamos, se as Escrituras não o ensinassem claramente.
Mas há passagens nas Escrituras que falam de tal decisão da parte de Deus? Certamente há algumas. Judas fala de alguns indivíduos, “os quais, desde muito, foram antecipadamente pronunciados para esta condenação, homens ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus e negam o nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo” (Jd 4).
Além disso, Paulo, na passagem referida acima, fala da mesma maneira do faraó e de outros: “Porque a Escritura diz a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra. Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz.[...] Que diremos, pois , se Deus, querendo mostrar sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos da ira, preparados para a perdição?” (Rm 9.17-22).
Com referência aos resultados do fato de que Deus deixou de escolher alguns para a salvação, Paulo diz: “A eleição o alcançou; e os mais foram endurecidos” (Rm 11.7). Também Pedro diz a respeito daqueles que rejeitaram o evangelho: “… tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também foram postos” (1Pe 2.8). [24]
Apesar do fato de recuarmos diante dessa doutrina, devemos ter uma atitude cuidadosa diante de Deus e dessas passagens das Escrituras. Nunca devemos começar a desejar que a Bíblia estivesse escrita de outra maneira, ou que ela não contivesse determinados versículos. Além disso, se estivermos convencidos de que esses versículos ensinam a reprovação, então somos obrigados tanto a acreditar nela quanto a aceitá-la como algo legítimo e justo da parte de Deus, mesmo que ela nos faça tremer de pavor quando pensamos sobre ela. Nesse contexto podemos nos surpreender ao ver que Jesus pode agradecer a Deus tanto por ocultar de alguns o conhecimento sobre a salvação quanto por revelá-lo a outros: “Exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas cousas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado” (Mt 11.25-26).
Além disso, devemos reconhecer que de qualquer maneira, na sabedoria de Deus, a reprovação e a condenação eterna de alguns manifestarão a justiça de Deus e também resultarão em Sua glória. Paulo diz: “Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder , suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição [...]?” (Rm 9.22). Paulo também nota que tão grande punição sobre “os vasos de ira” serve para mostrar a grandeza da misericórdia de Deus para conosco: Deus fez isso “a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia” (Rm 9.23).
Devemos lembrar, também, que há importantes diferenças entre a eleição e a reprovação apresentadas na Bíblia . A eleição para a salvação é vista como uma causa para regozijo e louvor a Deus, que é digno de louvor e recebe todo o crédito pela nossa salvação (veja Ef 1.3-6; 1Pe 1.1-3). Deus é visto como quem nos escolhe ativamente para salvação, o que Ele faz com amor e prazer. Mas a reprovação é vista como algo que traz tristeza a Deus, não deleite (veja Ez 33.11), e a responsabilidade pela condenação dos pecadores é sempre lançada sobre as pessoas ou anjos que se rebelam, nunca sobre o próprio Deus (veja Jo 3.18-19; 5.40). Assim, pelo que as Escrituras apresentam, a causa da eleição está em Deus, e a causa da reprovação jaz no pecador. Outra diferença importante é que o fundamento da eleição é a graça de Deus, ao passo que o fundamento da reprovação é a justiça de Deus. Portanto “predestinação dupla” não é uma frase exata nem útil, porque negligencia essas diferenças entre a eleição e a reprovação .
A tristeza de Deus com a morte dos perversos (“não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho e viva”, Ez 33.11) ajuda-nos a entender como era adequado que o próprio Paulo sentisse grande tristeza quando pensava sobre os judeus incrédulos que tinham rejeitado Cristo. Ele diz: “Digo a verdade em Cristo, não minto, testemunhando comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência; tenho grande tristeza e incessante dor no coração; porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos , meus compatriotas, segundo a carne. São israelitas” [...] (Rm 9.1-4).
Nós igualmente devemos sentir essa grande tristeza, ainda mais quando pensamos a respeito do destino dos incrédulos.
Mas pode-se argumentar nesse ponto: se Deus genuinamente sente tristeza na punição dos perversos, então por que a permite ou até mesmo decreta que isso suceda? A resposta deve ser: Deus sabe que isso no final das contas resultará em maior glória para si mesmo. Assim mostrará seu poder, ira, justiça e misericórdia de um modo que de nenhuma outra forma poderia ser demonstrado. Certamente em nossa própria experiência humana, é possível fazer algo que nos cause grande tristeza, mas que sabemos resultará, a longo prazo, num bem maior. E assim, depois dessa fraca analogia humana, podemos entender até certo grau que Deus pode decretar algo que lhe cause tristeza, mas afinal promoverá sua glória.
NOTAS:
[23] - O próprio João Calvino disse com respeito à reprovação: “Decreto, certamente, horrível, confesso”. Calvino,Institutas , 3.23.7; mas deve ser notado que sua palavra latina horribilis não significa “detestável” mas, antes, “pavoroso, que inspira terror”.
[24] - Veja a discussão sobre esse versículo em Wayne Grudem, 1 Peter , p. 107-10. O versículo não diz simplesmente que Deus determinou que aqueles que desobedecessem tropeçariam, mas, antes, fala sobre Deus destinar determinadas pessoas para desobedecer e tropeçar: “para o que também foram postos”. (O verbo gregoetethesan , “foram postos”, requer um sujeito plural. )
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática Atual e Exaustiva . 1ª edição. Ed. Vida Nova, São Paulo, SP, 2003. 573-576.
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