Por Iain Murray
Agostinho, filho de um
oficial romano, nasceu em Tagaste, no norte da África, em 354. Dotado de
brilhantes talentos, profundamente motivado pela vanglória e pelo desejo de ser
louvado, aos 19 anos ele estudava e ensinava retórica na antiga cidade de Cartago.
Com sua mente voltada à busca da sabedoria humana e seu coração cativo aos
prazeres do pecado, permaneceu ali desperdiçando o melhor de sua vida. Ai, ai!,
escreveu mais tarde, aqueles passos me conduziram às profundezas do inferno!
Labutando e desgastando-me por falta da verdade! Os vários sistemas filosóficos de pensamento
que ocupavam a atenção de Agostinho apenas o conduziam mais profundamente ao
labirinto do erro. Com 31 anos de idade, o desespero mental e a angústia de
coração levaram-no a adotar as dúvidas dos acadêmicos, os quais acreditavam que
nada era certo. Eu estava sobrecarregado com as mais inquietantes preocupações,
receando que morreria sem descobrir a verdade. Ora, nesse caminho, a
consciência de pecado começou a atormentá-lo. Tomado por medo e vergonha,
profundamente consciente de que o pecado havia corrompido sua mente e
escravizado sua vontade, Agostinho passou a odiar a si mesmo.
Ele não percebia que um vaso
de misericórdia estava sendo formado; que um servo de Cristo estava sendo criado
e que ele seria, por meio da graça divina, um dos mais poderosos defensores da
verdade outorgada por Deus à sua igreja. Aconteceu que, no ano de 386, em um
jardim de Milão, uma voz soou em seus ouvidos, como que vinda do céu,
ordenando-lhe que lesse a Bíblia. Tu me chamaste, gritaste e rompeste minha
surdez.. Abrindo a Palavra de Deus em Romanos 13.13-14, Agostinho disse: Uma
luz de serenidade infundiu-se em meu coração, e as densas trevas que flutuavam
em meus olhos dissolveram-se em um instante. Tua voz poderosa disse: Haja luz,
e houve luz... Desse momento em diante, Agostinho, profundamente humilhado,
tinha apenas um ardente desejo: amar e servir seu Salvador. Não tenho qualquer
prazer, exceto aquele que resulta de falar, ouvir, escrever, pregar e envolver
me constantemente na meditação do Senhor e de sua glória. Era o momento
designado por Deus para levantar seu servo.
Era uma época carregada de
motivos para causar alarme e incitar temor. A igreja de Cristo estava sendo
ameaçada por erros internos, enquanto externamente a queda do Império Romano
trazia confusão, invasão de bárbaros, séculos de desordem e trevas sobre a
Europa. Nos anos que seguiram à conversão de Agostinho, nós o vemos sendo
transformado em um instrumento para o propósito de Deus. Dia a dia, ano após
ano, ele foi completamente absorvido pela Palavra de Deus. Com freqüência, ele
a estudava no meio da madrugada, aprendendo-a sobre seus joelhos,
alimentando-se incansavelmente de seu conteúdo. Verdades fundamentais estavam
sendo gravadas em sua alma, verdades da Palavra de Deus que deveriam brilhar
durante as eras futuras da igreja.
No início do ano de 392, as
orações do idoso Valério, bispo de Hipona, em favor de outro pastor para seu
rebanho, foram respondidas com a vinda de Agostinho para assumir o seu lugar.
Ali, Agostinho foi ordenado presbítero, aos 39 anos de idade e, posteriormente,
torno use bispo. Infelizmente, para a igreja, estava desaparecendo a igualdade
estabelecida pelos apóstolos entre presbíteros e bispos. Embora o ofício de
bispo em Roma começasse a associar-se a uma arrogância de senhorio e à
presunção sacerdotal, isto não acontecia em Hipona, no norte da África.
Agostinho, como bispo de Hipona, tinha muitas coisas em comum com seus irmãos
crentes e jamais se colocou em posição de destaque. Ao morrer, não deixou
qualquer herança; em vida, não apenas repartiu o que tinha com todos, mas
chegou a derreter vasos de prata da igreja por amor aos pobres. Do púlpito, ele
implorava de forma surpreendente aos homens. Sua fonte de autoridade era a
Palavra de Deus, a qual ele tratava com a mais profunda reverência. Oh!
maravilhosa profundidade da tua Palavra! - ele exclamou - em certa ocasião,
enquanto pregava, cujas verdades, nós, pequeninos, podemos ver com facilidade;
apesar disso, há uma maravilhosa profundidade, ó meu Deus, uma maravilhosa
profundidade! Ao final de sua vida, este ministro apostólico declarou: Ainda
que tenhamos capacidade e diligência para estudar durante a vida inteira, desde
a infância à velhice, somente as Sagradas Escrituras, elas possuem tanta
consistência e abundância de verdades, que todos os dias poderemos aprender
algo que não sabíamos. Agostinho pregava do profundo de seu coração, e seu
intenso amor pelas almas fê-lo sentir um grande desejo de pregar a seus
ouvintes para levá-los a Cristo. Ele havia aprendido, em sua vida diária, a
olhar tão intensamente para Cristo, que toda sua pregação a respeito de outros
assuntos reduziu-se a quase nada.
Ó amor indescritível, ele
costumava clamar, que levou Deus, em carne, a morrer pelo homem; se o homem não
tivesse sido comprado por tão elevado preço, inevitavelmente sofreria a eterna
condenação. Agostinho se absteve da sabedoria de palavras e pregou uma mensagem
veemente, direta, sem rodeios, freqüentemente trazendo seus ouvintes às
lágrimas.
Quais eram as doutrinas
ensinadas por esse homem piedoso?
Deus o levantou para falar
contra quais erros? Ninguém deve afirmar que a antiguidade dos escritos de
Agostinho prejudicam a utilidade deles. O mundo, disse ele, com sua glória e
grandeza, logo perecer à, mas a verdade de Deus permanece, eterna e imutável.
Da mesma forma, embora o erro apareça em incontáveis formas, a base sobre a
qual ele está alicerçado é a mesma em todas as épocas. De fato, é verdade que
as doutrinas que Agostinho expôs fundamentado nas Escrituras possuem
importância tão grande, que ignorá-las nos torna incapazes de julgar as
questões vitais de nossos dias. Portanto, o erro ao qual ele se opôs permanece
até hoje com efeitos devastadores na igreja.
A heresia jamais surge com a
aparência de heresia. Na época de Agostinho, ela surgiu através de um homem
chamado Pelágio, aparentemente sem culpa, modesto, que praticava a mortificação
e com zelo exortava os outros a seguirem o exemplo de Cristo. O ensinamento desse
homem era tão sutil e ambíguo, que passou despercebido perante um concílio de
bispos da Palestina. Foi deixada para Agostinho a responsabilidade de expor os
alicerces do pelagianismo. Através de muitos anos de provações e humilhações,
Deus o preparou para essa tarefa. A raiz do ensino pelagiano estava errada em
sua visão da natureza do homem. Pelágio dizia que o homem não estava numa
condição de pecado original e possuía o livre-arbítrio, assim como Adão antes
da queda. O pecado não é herdado por natureza e sim pelo exemplo. Portanto, na
salvação, a graça de Deus não é um poder interior que renova a natureza
corrompida e restaura a vontade pecaminosa do homem, trazendo-a à liberdade,
mas, ao invés disso, a graça de Deus é algo externo, que nós podemos receber,
se assim decidirmos. Pelágio afirmava que a graça de Deus era oferecida a todos
igualmente e, portanto, era a escolha do homem que determinava se a graça seria
recebida ou não. Em resumo, o pelagianismo é uma crença de que a salvação é o
resultado da cooperação entre Deus e o pecador.
O que levou Agostinho a
contender tão firmemente contra afirmações como essas? Ele não era o tipo de
homem que entraria em controvérsia por causa de assuntos não-essenciais, pois o
espírito de controvérsia era algo bastante diferente de seu terno amor para com
todos. Sua única preocupação no mundo era a glória de Deus através da sua
igreja; mas Agostinho sabia que a segurança da igreja reside na preservação da
verdade, e estava disposto a denunciar o pelagianismo como um erro pernicioso.
O grande pecado do pelagianismo , declarou Agostinho, .é fazer o homem
esquecer-se por que ele é um crente. Defendendo as Escrituras, Agostinho
afirmou que a conversão do pecador resulta apenas da eleição gratuita da parte
de Deus e que a razão pela qual Ele chama alguns e rejeita outros reside
inteiramente em sua vontade inescrutável. Em sua obra .Concerning the
Predestination of the Saints. (A Predestinação dos Santos), Agostinho escreveu
o seguinte: Para que ninguém diga, minha fé ou minha justiça me distingue dos
demais, o grande apóstolo dos gentios pergunta: O que tendes que não
recebestes? A fé, portanto, desde seu princípio até à sua perfeição, é um dom
de Deus. Entretanto, o motivo da fé não ser dada a todos, não deve preocupar o
crente, pois este sabe que todos, por causa do pecado de um só homem, estão
debaixo da mais justa condenação. A razão por que Deus livra uma pessoa de sua
condenação e não a outra, está em seus próprios e inescrutáveis juízos. E, se
perguntamos por que o receptor da fé é considerado digno por Deus para receber
tal dom, acharemos aqueles que dirão: É por escolha humana. Mas nós afirmamos
que é pela graça; ou seja, pela divina predestinação. Seguindo as Escrituras,
Agostinho demonstrou que a eleição é a causa primária de tudo e mostrou como é
absurdo afirmar que a fé prevista por Deus é a causa da eleição. Paulo não
declara que os filhos de Deus foram escolhidos porque Ele previu que creriam,
mas para que pudessem crer.
Deus não nos escolheu porque
nós cremos, mas para que crêssemos; para não parecer que fomos nós quem
primeiro O escolhemos. Paulo assevera com clareza que, desde o princípio da
humanidade, ser santo é fruto da eleição. Aqueles que colocam a eleição depois
da fé agem, portanto, de forma bastante absurda. Quando Paulo apresenta o
beneplácito que Deus teve em Si mesmo como a causa da eleição, ele exclui todas
as outras possíveis causas.
Os adversários de Agostinho
reivindicaram que a autoridade da igreja estava contra suas doutrinas, e ele
replicou que, antes da heresia de Pelágio, os pais da igreja primitiva não
manifestavam suas opiniões profundas sobre a predestinação, e sua resposta era
correta. E acrescentou: Qual a necessidade de examinar as obras daqueles
escritores que, antes de surgir a heresia de Pelágio, não sentiram qualquer
necessidade de se expressarem sobre essa questão? Se esta necessidade tivesse
surgido e se houvessem sido compelidos a responder aos inimigos da
predestinação, sem dúvida, eles o teriam feito. O que me compeliu a defender as
passagens das Escrituras onde a predestinação é claramente ensinada? O que me
estimulou foi o aparecimento dos pelagianos dizendo que recebemos a graça de
Deus quando nos tornarmos dignos dela.
Não podemos falar agora
sobre a maneira como a controvérsia pelagiana foi resolvida, sobre o modo como
o Concílio de Éfeso condenou as posições de Pelágio, em 431, sobre como o
piedoso bispo de Hipona, cheio de amor por Cristo, labutou até ao seu último
suspiro e como ele morreu três meses antes da guarda romana em Hipona ser
vencida pela invasão bárbara. E não há espaço para discorrer a respeito das
lições que podemos aprender da vida desse homem, a não ser esta que
salientamos: a vida de Agostinho desaprova, de uma vez por todas, a objeção de
que a fé na predestinação eterna da parte de Deus é inconsistente com o zelo na
pregação e no evangelismo. Agostinho escreveu: Eles dizem que a doutrina da
predestinação é inimiga da pregação e que não traz qualquer benefício. É como
se ela fosse inimiga da pregação do apóstolo. O excelente apóstolo aos gentios
freqüentemente exaltou a predestinação e, apesar disso, jamais deixou de pregar
a Palavra de Deus. Pois, assim como a piedade deve ser pregada, para que Deus
seja verdadeiramente adorado, assim também deve acontecer à predestinação.
Aquele que tem ouvidos para ouvir glorie-se na graça de Deus, no próprio Deus,
e não em si mesmo.
O mundo de Agostinho passou,
mas os erros que temos de combater não. Eles foram poderosamente reavivados no
arminianismo, no século XVII; e, em nossos dias, os mesmos erros (este grande
pecado, como o chamou Agostinho), têm se espalhado pela igreja visível. Deus
pronunciou um solene anátema contra aqueles que buscam desfazer a sua obra, ao
edificarem sobre aquilo que Ele destruiu (Js 6. 26). Ao encerrar este artigo,
consideremos atentamente as palavras de Richard Sibbes, teólogo de Cambridge:
A heresia de Pelágio foi
condenada ao inferno pelos antigos concílios. Os vários concílios realizados na
África e diversos sínodos, nos quais o próprio Agostinho esteve presente,
condenaram a heresia de Pelágio. Hoje não existem homens que querem ressuscitar
estas heresias? Nada podemos esperar, exceto a maldição que prevalece quando
homens reavivam heresias que Deus condenou. Elas são opiniões amaldiçoadas pela
igreja de Deus, que até agora tem sido guiada pelo Espírito Santo. Tais
opiniões, penso eu, que falam levianamente sobre a graça de Deus e promovem o
poder do livre-arbítrio, fazem deste um ídolo; por isso, estão debaixo de
condenação e, por natureza, são inimigas da graça de Deus.
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Fonte: Ministério Fiel
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