Por Alan Rennê Alexandrino
Permitam-me apresentar algumas situações bastante
complicadas, que giram em torno de como a pregação, a exposição das Escrituras
tem sido vista nos dias de hoje. É bem verdade que atravessamos um incipiente e
embrionário florescimento da exposição bíblica, mas a história recente mostra
que uma crise quanto à pregação se instalou em nossos púlpitos e ainda resiste.
Em 20 de março de 1980, foram distribuídos alguns
panfletos, que na verdade, eram convites de uma igreja recém-plantada na
localidade de Saddleback, ao sul do distrito de Orange, no sul da Califórnia.
Dentre as várias orações escritas no convite, gostaria de destacar as seguintes:
“Está nascendo uma nova igreja, planejada
para aqueles que desistiram dos cultos tradicionais. Vamos encarar a verdade:
muitas pessoas hoje não têm mais participação ativa na igreja”.[1] De acordo com o panfleto,
uma das razões para este estado de coisas é que, “quase sempre... os sermões são chatos e não se aplicam à nossa vida
diária”.[2]
Interessantemente, a igreja em questão se apresenta como “uma nova igreja, planejada para preencher as necessidades de nossa
época”.[3]
Além disso, no momento de apresentar os atrativos da nova igreja, o panfleto
elenca os seguintes: “Na Igreja
Saddleback você... fará novos amigos e conhecerá seus vizinhos/ouvirá música
alegre e contemporânea/ouvirá mensagens positivas e práticas que o deixarão
encorajado durante a semana/pode entregar sem medo seus filhos aos cuidados de
nosso berçário”.[4]
O que pode ser percebido com muita sensibilidade nas linhas do panfleto da igreja em questão, é que não há nenhuma preocupação em relação àquele que é o meio ordinário e escolhido pelo Senhor da Igreja, para a atuação do Espírito Santo na operação do novo nascimento, da mudança de um coração de pedra em um coração de carne, que é a pregação das Sagradas Escrituras. O panfleto deixa claro e evidente que a igreja plantada segue a filosofia mercadológica, e quando menciona aquilo que seria a pregação, o faz no sentido de uma mensagem positiva – o que frequentemente é sinônimo de autoajuda e psicologização do púlpito –, e a associa com elementos – não no sentido de elementos cúlticos – inteiramente antropocêntricos.
Para se fazer justiça ao pastor da igreja de
Saddleback Valley, ele afirma alhures:
Quando estou falando aos cristãos, gosto de pregar
sermões expositivos. Na verdade, em certo momento do crescimento da Saddleback,
levei dois anos e meio numa exposição versículo por versículo da carta aos
Romanos aos nossos membros. Esse tipo de mensagem edifica o corpo de Cristo
[...] Funciona muito bem quando você fala aos cristãos, que aceitam a
autoridade da Palavra de Deus e estão motivados a aprender as Escrituras.[5]
Não obstante, quando se trata de pregar aos
“sem-igreja”, a exposição das Escrituras é deixada de lado: “O ponto de referência comum que temos com os
não-cristãos não é a Bíblia, e sim as nossas necessidades, sofrimentos e
interesses como seres humanos. Você não pode começar a se comunicar com eles
por meio de um texto bíblico, esperando que fiquem fascinados por ele”.[6] A pergunta é: Por que não?
Trata-se de um raciocínio nunca encontrado em Paulo nem em nenhum dos outros apóstolos.
As Escrituras sempre foram o ponto de partida e o fundamento epistemológico da
sua pregação. Mesmo diante de um público pagão, quando estava no Areópago, o
apóstolo Paulo usou categorias bíblicas em seu discurso (Atos 17.24-26), e
somente depois fez alusão ao escrito de um poeta grego. É certo que o ponto de
referência dos apóstolos sempre foi a Escritura, independentemente de estarem
diante de cristãos, de judeus ou de pagãos.
Mais recentemente, um movimento conhecido como
Igreja Emergente tem granjeado a atenção dos estudiosos. Trata-se de um
movimento fortemente influenciado pela filosofia pós-moderna, que protesta
contra tudo o que seja, de acordo com eles, moderno e que pretenda trabalhar em
categorias objetivas. No que diz respeito à pregação, a igreja emergente propõe
não somente uma remodelagem no estilo de culto das igrejas, mas, acima de tudo,
uma nova linguagem, um novo jeito de se comunicar, a fim de alcançar a geração
pós-moderna. A epistemologia emergente “é
essencialmente voltada para a experiência”.[7] Por exemplo, Dan Kimball,
um dos principais proponentes do movimento emergente afirma que, visto que o
culto é definido em termos de “louvor
pós-seeker-sensitive”, o que significa, que “pode haver um culto inteiro de comunhão, sem pregação”.[8]
Neste sentido, de acordo com eles, a pregação moderna
é essencialmente diferente da pregação pós-moderna:
Na primeira, o sermão é o ponto central do culto, e
o pastor funciona como um despenseiro de verdades bíblicas para ajudar a
solucionar os problemas das pessoas na vida moderna. Os sermões enfatizam a
explicação – i.e., a explicação sobre o que é a verdade. O ponto de partida é a
cosmovisão judaico-cristã, e termos bíblicos como “evangelho” e “Armagedom”
dispensam definição. O texto bíblico é comunicado primordialmente por meio de
palavras, e a pregação é feita dentro do prédio da igreja, durante o culto.
Já na igreja emergente, segundo o próprio Kimball,
o sermão é apenas uma parte da experiência das pessoas que se reúnem para o
culto. Aqui o pregador ensina como a sabedoria antiga se aplica a uma vida
segundo o reino de Deus; o pregador enfatiza e explica a experiência de quem é
a verdade [...] Termos bíblicos como “evangelho” e “Armagedom” precisam ser
“desconstruídos e redefinidos”. A mensagem bíblica é comunicada por um misto de
palavras, artes visuais, silêncio, testemunhos, e história.[9]
Em nossas igrejas locais, ao menos aquelas
teoricamente de confissão reformada, também existe um problema relacionado à
pregação, mais especificamente relacionado à interpretação e aplicação do texto
bíblico. Trata-se da aplicação de uma hermenêutica duvidosa, manifestada
através de algumas vertentes interpretativas. Nós, reformados esposamos o
método hermenêutico histórico-gramatical, que postula que a análise do texto
bíblico “deve prestar atenção tanto na linguagem em que o texto original foi
escrito quanto ao contexto cultural específico que deu origem ao texto”.[10] Aliado a isso, entendemos
também que o sentido de uma passagem é o sentido literal, natural, óbvio e de
acordo com a intenção do autor. Este era o método hermenêutico dos primeiros
Reformadores e dos Pais Puritanos. John Owen, por exemplo, afirmou que “não existe nenhum sentido numa passagem além
daquele que está contido nas palavras”.[11] Consequentemente, para
que haja uma interpretação correta de uma passagem é necessário compreender,
dentre outras coisas, a intenção do autor. Tal princípio é verdadeiro e
axiomático na interpretação de todo e qualquer texto.
Infelizmente, muitos “intérpretes” contemporâneos
parecem não compreender isso, acabando por adotar métodos altamente
questionáveis na decodificação e interpretação de certas passagens das Sagradas
Escrituras. Alguns são sequazes do método interpretativo medieval, que
asseverava a existência de vários sentidos ocultos no texto bíblico. Outros
adotam o método histórico-crítico, questionando a autenticidade e a inspiração
da Bíblia. Outros, ainda, aderem aos princípios interpretativos propostos pelo
filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002), que escreveu a obra mais
representativa da hermenêutica pós-moderna do século XX, Verdade e Método (1960). A tese central de Gadamer era que “a verdade não pode residir na tentativa do
leitor de voltar ao sentido do autor, pois esse ideal não pode ser realizado
tendo em vista que cada intérprete tem um conhecimento novo e diferente do
texto no próprio momento histórico do leitor”.[12] Para Gadamer, o
significado de um texto sempre vai além de seu autor, visto que ele possui vida
própria. O Dr. Augustus Nicodemus afirma que, “como consequência, o sentido de um texto não é para ser encontrado na
metodologia diacrônica em busca do sentido original e histórico, mas através do
diálogo com o texto no presente”.[13]
O resultado dessa salada interpretativa é uma
quantidade enorme de pregações tópicas, que buscam justificativas no texto
bíblico de ideias pré-concebidas, pregações de cunho estritamente moralista,
alegorização de passagens, psicologização do púlpito, mensagens positivistas e
de autoajuda. Tal estado de coisas nos conduz ao arrazoado de James I. Packer a
respeito da grande necessidade da pregação expositiva em nossos dias. Porém,
antes de observarmos o porquê da pregação expositiva, é imprescindível que
compreendamos o que vem a ser pregação expositiva, visto que há também aqueles
que afirmam que é possível pregar um sermão tópico e, ainda assim, ser
expositivo. Quando usamos a expressão “pregação expositiva” qual a carga
semântica imposta sobre ela?
[1] Rick Warren. Uma Igreja com Propósitos. 2.ed. São Paulo: Vida, 2008. p. 172.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] Ibid. p. 262.
[6]
Ibid. pp. 262-263.
[7] Mauro Meister. “Igreja Emergente, a
Igreja do Pós-Modernismo? Uma Avaliação Provisória”. In: Fides Reformata. Vol. XI. Nº 1 (2006). p. 101.
[8]
D. A. Carson. Igreja Emergente: o
movimento e suas implicações. São Paulo: Vida Nova, 2010. p. 43.
[9]
Ibid. pp. 43-44.
[10] Walter C. Kaiser, Jr. e Moisés Silva.
Introdução à Hermenêutica Bíblica. São
Paulo: Cultura Cristã, 2002. p. 17.
[11] Apud in Augustus Nicodemus Lopes. A Bíblia e seus
Intérpretes. São
Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 176.
[12] Walter C. Kaiser, Jr. e Moisés Silva.
Introdução à Hermenêutica Bíblica. p.
26.
[13] Augustus Nicodemus Lopes. A Bíblia e seus Intérpretes. p. 218.
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