Por Alan Rennê Alexandrino
Introdução
Há cerca de um mês um debate
acirrado tem movimentado a mídia e, principalmente, as redes sociais. Trata-se
da polêmica aprovação da menoridade penal[i] pela Câmara dos Deputados,
uma das casas legislativas do nosso país. A vasta maioria da população
brasileira se mostra favorável à redução da menoridade penal. No entanto, a
minoria contrária tem se empenhado numa cruzada tentando mostrar por que, na
sua visão, é um absurdo pleitear tal causa. Interessantemente, são muitos os
cristãos protestantes, inclusive de confissão reformada, que têm tomado parte
nas manifestações contrárias à redução.
Alguns têm agido de modo
semelhante à Associação Evangélica Brasileira, que no ano de 1993 escreveu um
documento – uma espécie de manifesto – no qual se posicionava de forma
contrária à pena de morte. O documento foi apresentado ao plenário da Câmara
dos Deputados e, posteriormente, reproduzido tanto em jornais como por várias
igrejas. De acordo com o Pb. Solano Portela, tal manifesto “foi escrito em
linguagem persuasiva, mas sem conter uma única citação das Escrituras”.[ii] Semelhantemente, as
razões apresentadas pelos cristãos progressistas contrários à redução da menoridade
penal não são fundamentadas nas Sagradas Escrituras. Antes, tratam-se de
argumentos eivados de apelo emocional e de retórica muitos dos quais são, em
essência, os mesmos contrários à aplicação da pena capital: 1. A redução da
menoridade penal não vai resolver a causa da violência; 2. Existe muita desigualdade
social e injustiça na distribuição de renda em nosso país; e 3. Nossa sociedade
possui muitos males próprios. Outros argumentos apresentados são os seguintes:
1. É preciso que o Estado faça um investimento maciço em educação, lazer e
cultura, a fim de proporcionar um meio de escape aos nossos adolescentes e
jovens; 2. Nossos adolescentes já são penalmente responsabilizados[iii]; 3. Reduzir a menoridade
penal é tratar o efeito, não causa; e 4. A fase de transição da adolescência
justifica o tratamento diferenciado.
Associado ao último argumento,
como uma espécie de fundamento, está o argumento da poda sináptica, que em
linhas gerais, nada mais é do que um processo neurológico pelo qual várias
sinapses são destruídas, a fim de se obter uma melhor regulação do sistema
nervoso. Educadores afirmam que, a poda sináptica “se relaciona com o período
crítico que o adolescente atravessa em seu desenvolvimento, caracterizado por
impulsos descontrolados, conduta desajustada e déficit cognitivo, que podem
levar a comportamentos de risco desnecessários, impulsivos e violentos”.[iv] Uma vez que o adolescente
está atravessando tal processo, ele não pode ser penalmente responsabilizado
por seus atos. Trata-se de um argumento imbuído de determinismo biológico, algo
que pode ser facilmente refutado.
Não obstante, o meu propósito
neste pequeno texto não é responder a todos os argumentos supramencionados.
Antes desejo fazer uma apresentação da ética bíblica, ou seja, pretendo mostrar
que a Bíblia Sagrada, a inspirada, inerrante e autoritativa Palavra de Deus, a
única regra de fé e prática do cristão, requer que todo aquele que comete um
crime seja devidamente responsabilizado pelos seus atos não existindo,
portanto, nada que justifique o cristão posicionar-se de forma contrária à redução
da menoridade penal. Inicialmente, tratarei da ética cristã e seu fundamento.
Logo em seguida, apresentarei uma pequena teologia bíblica da aplicação de
castigos.
A Ética Cristã
De modo claro e direto, o
posicionamento ético, político e teológico dos cristãos nunca deve ser
alimentado e formado pela opinião pública e popular. Recentemente li o que um
jovem escreveu, no sentido de que o Brasil deveria olhar para os Estados Unidos
estão fazendo o caminho inverso ao da menoridade penal, investindo em formas de
acompanhamento e promoção de cidadania para os menores infratores. É
interessante que, na década de 90, quando a discussão girava em torno da pena
de morte, o mesmo tipo de argumento foi apresentado ao Pb. Solano Portela por
uma repórter da antiga revista evangélica Vinde.
Um dos argumentos utilizados por ela foi no sentido de que, “a maioria dos
países está deixando a aplicação da pena de morte”. A réplica do Pb. Solano foi
a seguinte: “Constatamos, também, que a maioria dos países abriga a pornografia,
aceita cada vez mais o divórcio e a dissolução familiar como normal, o
casamento entre homossexuais, e por aí vai. Nada disso significa que estas
coisas sejam certas em si – elas foram erradas e continuam erradas”.[v] Quanto a isso, basta
lembrar que dias antes da aprovação da redução da menoridade penal na Câmara
dos Deputados, a Suprema Corte americana aprovou a legalização do casamento
homossexual nos cinquenta estados daquele país. Assim sendo, os Estados Unidos
da América não são o referencial a ser seguido em nossas discussões éticas.
O posicionamento ético dos
cristãos também não pode ser formado por argumentos sociológicos positivistas –
que partem do pressuposto de que a natureza humana é intrinsecamente boa –,
cientificistas tendo como fundamento o determinismo biológico. Também não deve
ser formado por agendas influenciadas pelo marxismo cultural. É lamentável que
muitos jovens cristãos sejam profundamente influenciados por pensadores
esquerdistas, como por exemplo, o francês Michel Foucault, o queridinho dos
universitários progressistas.[vi] Para Foucault, todas as
questões sociais nada mais são do que uma disputa pelo poder. Roger Scruton
afirma que, “o tema que unifica a obra de Foucault é a busca pelas secretas
estruturas de poder. Poder é o que ele deseja desmascarar por trás de toda
prática, de toda instituição e da própria linguagem”.[vii]
Dessa forma, instituições como o
manicômio, por exemplo, são apenas manifestações do poder da burguesia sobre os
menos favorecidos: “Através do confinamento, a loucura é sujeita à regra da
razão: a loucura agora vive sob a jurisdição daqueles que são sãos, confinados
por suas leis, e orientados por sua moralidade”.[viii] O mesmo se dá em
relação à prisão. A prisão, para Foucault, nada mãos é do que um tipo de segregação
imposta aos menos favorecidos por aqueles que são os detentores do poder. É daí
que surge a popular ladainha de que “apenas os pobres e negros serão
penalizados”. Para ele, a prisão é a negação ao outro do direito de existir.
Discorrendo sobre a diferença existente entre a aplicação de castigos em
séculos passados – que consistia em infligir dor ao corpo do indivíduo – e a
nossa época, Foucault diz o seguinte:
Mas, de modo geral, as práticas
punitivas se tornaram pudicas. Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e
para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão, a
reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de
domicílio, a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais
modernos – são penas “físicas”: com exceção da multa, se referem diretamente ao
corpo. Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios.
O corpo se encontra aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer
intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade
considerada ao mesmo tempo como um
direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num
sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento
físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O
castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.[ix]
Daí surge a ideia no pensamento
esquerdista de, não apenas a redução da menoridade penal, mas do
enclausuramento ou da prisão em si ser uma injustiça, visto que o
aprisionamento significa a negação de um direito fundamental do indivíduo. Em
outro lugar Foucault deixa explícita a sua concepção de que a prisão é, em sua
essência, uma imposição daqueles que são os detentores do poder sobre os menos
favorecidos do ponto de vista econômico-social. Para ele, a disciplina da
prisão nada mais é do que uma espécie de “tática de poder” intimamente
associada à acumulação de capital do mundo ocidental:
Se a decolagem econômica do Ocidente
começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, pode-se dizer,
talvez, que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma
decolagem política em relação a formas de poder tradicionais, rituais,
dispendiosas, violentas e que, logo caídas em desuso, foram substituídas por
uma tecnologia minuciosa e calculada de sujeição. Na verdade os dois processos,
acumulação de homens e acumulação de capital, não podem ser separados; não teria
sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o crescimento de
um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mantê-los e de utilizá-los;
inversamente, as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens
aceleram o movimento de acumulação de capital.[x]
De acordo com Roger Scruton, esse
tipo de afirmação de Foucault é uma explicação forçada e essencialmente
marxista: “Tais observações impulsivas são produzidas não por academicismo, mas
por associação de ideias, sendo a ideia principal a morfologia histórica do Manifesto Comunista”.[xi] Além disso, é esse tipo
de pensamento que dá ensejo a duas ladainhas inculcadas nas massas e repetidas
de forma acrítica: 1. A que diz que apenas os adolescentes pobres,
marginalizados e negros serão afetados pela redução da menoridade penal; e 2. A
que diz que o próximo passo da agenda daqueles que são favoráveis à redução é a
privatização das prisões, a fim de contribuir com o acúmulo de capital por
aqueles que são os detentores do poder. Tais argumentos procedem de uma visão
de mundo não-cristã.
Isso nos conduz, então, à
consideração do que é a ética cristã e qual o seu fundamento. É comum o fato de
muitas pessoas crescerem em nossas igrejas sem a devida compreensão acerca da
ética cristã e suas implicações para o todo da vida humana. A ética, de modo
geral, diz respeito à conduta humana. A ética cristã, por sua vez, procura se
harmonizar com o padrão absoluto e divino da vontade de Deus revelada nas
Sagradas Escrituras. O objetivo da ética cristã é “relacionar um entendimento
de Deus com a conduta dos homens e mulheres e, mais particularmente, usar da
resposta a Deus que Jesus Cristo requer e torna possível”.[xii] Em outras palavras, a
ética cristã nos diz como devemos ajustar a nossa conduta e a nossa forma de
pensar a respeito do todo da vida àquilo que Deus declara na sua Palavra. A
lógica é a seguinte: Tudo o que Deus fala nas Escrituras é verdade. Sendo
assim, qualquer forma de pensar e de agir que difira daquilo que está na
Palavra, por necessidade consequente, é falso e errado. Assim sendo, nossos
pensamentos e ações devem se ajustar à mente do Senhor revelada na Bíblia. Ron
Gleason, pastor americano e advogado faz a seguinte afirmação: “Isto quer dizer
que os cristãos estão obrigados a sujeitar-se à Escritura e, por esta, como o
padrão, avaliar todas as decisões e toda forma de conduta”.[xiii] O filósofo reformado
Gordon H. Clark disse o seguinte: “A ética calvinista é baseada na revelação. A
distinção entre certo e errado [se resolve] pela revelação de Deus nos dez
mandamentos”.[xiv]
Outro teólogo reformado, chamado Jochem Douma, disse: “Ética cristã é a
reflexão sobre conduta moral à luz da perspectiva oferecida a nós na Sagrada
Escritura”.[xv]
Isto posto, é inadmissível que
numa discussão sobre qualquer assunto o cristão não fundamente as suas
afirmações nas Sagradas Escrituras. É simplesmente impensável que na discussão
a respeito da redução da menoridade penal os cristãos de confissão reformada se
baseiem tão somente em teorias seculares do direito, no positivismo e na
opinião pública. Então, é urgente compreendermos que somos chamados a pensar os
pensamentos de Deus a respeito de toda a realidade. De forma específica, somos
chamados a pensar os pensamentos de Deus a respeito da responsabilidade do
indivíduo por crimes por ele cometidos. O que fica claro é que a forma de
pensar da grande maioria dos evangélicos não está ajoelhada aos pés das
Sagradas Escrituras.
[i] Uso o termo “menoridade” em vez do
popular “maioridade”. Atualmente, é o menor de 18 anos que é inimputável. A
discussão gira em torno da redução dessa idade para os 16 anos. Assim sendo, do
ponto de vista técnico-jurídico é preferível falar em redução da menoridade
penal, uma vez que, como esclarece o Dr. Valdinar Monteiro de Souza, advogado
especialista em Direito Constitucional: “maioridade penal é o período de vida
do ser humano imediatamente posterior à menoridade”. Se deseja-se falar em
maioridade, que se fale na ampliação da maioridade penal. Cf. Valdinar Monteiro
de Souza. “Redução da Maioridade, ou da Menoridade Penal?”.
<http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/4241328>.
[iii]
É importante frisar o tipo de responsabilidade penal atribuída atualmente aos
adolescentes brasileiros. Como salienta o Dr. Valdinar Monteiro de Souza:
“Conforme a lei, menor não comete crime,
pratica ato infracional e, por conseguinte, pratique ele o ato mais hediondo ou
escabroso, não será criminoso, será menor infrator. Não importa se tem 15,
16, 17 ou – o que é mais acintoso – 17 anos, 11 meses, 29 dias e algumas horas.
Azar da vítima!”. Ao cometer um ato infracional, o adolescente é submetido a
medidas socioeducativas. Cf. “Redução
da Maioridade, ou da Menoridade Penal?”.
[vi]
A designação de Michel Foucault como sendo um pensador esquerdista não é
descabida. Há quem possa se levantar e afirmar que Foucault não pode ser
elencado como esquerdista, uma vez que ele sempre foi crítico do marxismo. Não
obstante, o filósofo Roger Scruton diz o seguinte: “Escolhi Michel Foucault, o
filósofo social e o historiador das ideias, como o representante da esquerda
intelectual francesa. Deve ser ressaltado, ademais, que a posição de Foucault
foi constantemente cambiante e que ele mostra um sofisticado desprezo por todos
os rótulos disponíveis. Ele é também um crítico (embora, até seus últimos anos,
um crítico um tanto quanto calado) do comunismo moderno. No entanto, Foucault é
o mais poderoso e ambicioso daqueles que buscaram ‘desmascarar’ a burguesia, e a posição da esquerda foi substancialmente
reforçada por seus escritos”. Cf. Roger Scruton. Pensadores da Nova Esquerda. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 59.
[ix]
Michel Foucault. Vigiar e Punir:
Nascimento da Prisão. 42. Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. p. 16. Ênfase
acrescentada.
[xii]
Sinclair Ferguson e David F. Wright
(Eds.). Novo Dicionário de
Teologia. São Paulo: Hagnos, 2011. p. 393.
[xiii]
Ron Gleason. Vida por Vida: A Pena de
Morte no Banco dos Réus. Brasília: Monergismo, 2014. p. 20.
[xiv]
Gordon H. Clark. “Ética Calvinista”. In: Carl Henry. Dicionário de Ética Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p. 231.
[xv]
J. Douma. Responsible Conduct: Principles of Christian Ethics. Phillipsburg,
NJ: P&R Publishing, 2003. p. 13.
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