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24 de ago. de 2015

Da Redução da Menoridade Penal e a Fé Cristã (1/2)

Por Alan Rennê Alexandrino
Introdução

Há cerca de um mês um debate acirrado tem movimentado a mídia e, principalmente, as redes sociais. Trata-se da polêmica aprovação da menoridade penal[i] pela Câmara dos Deputados, uma das casas legislativas do nosso país. A vasta maioria da população brasileira se mostra favorável à redução da menoridade penal. No entanto, a minoria contrária tem se empenhado numa cruzada tentando mostrar por que, na sua visão, é um absurdo pleitear tal causa. Interessantemente, são muitos os cristãos protestantes, inclusive de confissão reformada, que têm tomado parte nas manifestações contrárias à redução.

Alguns têm agido de modo semelhante à Associação Evangélica Brasileira, que no ano de 1993 escreveu um documento – uma espécie de manifesto – no qual se posicionava de forma contrária à pena de morte. O documento foi apresentado ao plenário da Câmara dos Deputados e, posteriormente, reproduzido tanto em jornais como por várias igrejas. De acordo com o Pb. Solano Portela, tal manifesto “foi escrito em linguagem persuasiva, mas sem conter uma única citação das Escrituras”.[ii] Semelhantemente, as razões apresentadas pelos cristãos progressistas contrários à redução da menoridade penal não são fundamentadas nas Sagradas Escrituras. Antes, tratam-se de argumentos eivados de apelo emocional e de retórica muitos dos quais são, em essência, os mesmos contrários à aplicação da pena capital: 1. A redução da menoridade penal não vai resolver a causa da violência; 2. Existe muita desigualdade social e injustiça na distribuição de renda em nosso país; e 3. Nossa sociedade possui muitos males próprios. Outros argumentos apresentados são os seguintes: 1. É preciso que o Estado faça um investimento maciço em educação, lazer e cultura, a fim de proporcionar um meio de escape aos nossos adolescentes e jovens; 2. Nossos adolescentes já são penalmente responsabilizados[iii]; 3. Reduzir a menoridade penal é tratar o efeito, não causa; e 4. A fase de transição da adolescência justifica o tratamento diferenciado.

Associado ao último argumento, como uma espécie de fundamento, está o argumento da poda sináptica, que em linhas gerais, nada mais é do que um processo neurológico pelo qual várias sinapses são destruídas, a fim de se obter uma melhor regulação do sistema nervoso. Educadores afirmam que, a poda sináptica “se relaciona com o período crítico que o adolescente atravessa em seu desenvolvimento, caracterizado por impulsos descontrolados, conduta desajustada e déficit cognitivo, que podem levar a comportamentos de risco desnecessários, impulsivos e violentos”.[iv] Uma vez que o adolescente está atravessando tal processo, ele não pode ser penalmente responsabilizado por seus atos. Trata-se de um argumento imbuído de determinismo biológico, algo que pode ser facilmente refutado.

Não obstante, o meu propósito neste pequeno texto não é responder a todos os argumentos supramencionados. Antes desejo fazer uma apresentação da ética bíblica, ou seja, pretendo mostrar que a Bíblia Sagrada, a inspirada, inerrante e autoritativa Palavra de Deus, a única regra de fé e prática do cristão, requer que todo aquele que comete um crime seja devidamente responsabilizado pelos seus atos não existindo, portanto, nada que justifique o cristão posicionar-se de forma contrária à redução da menoridade penal. Inicialmente, tratarei da ética cristã e seu fundamento. Logo em seguida, apresentarei uma pequena teologia bíblica da aplicação de castigos.

A Ética Cristã

De modo claro e direto, o posicionamento ético, político e teológico dos cristãos nunca deve ser alimentado e formado pela opinião pública e popular. Recentemente li o que um jovem escreveu, no sentido de que o Brasil deveria olhar para os Estados Unidos estão fazendo o caminho inverso ao da menoridade penal, investindo em formas de acompanhamento e promoção de cidadania para os menores infratores. É interessante que, na década de 90, quando a discussão girava em torno da pena de morte, o mesmo tipo de argumento foi apresentado ao Pb. Solano Portela por uma repórter da antiga revista evangélica Vinde. Um dos argumentos utilizados por ela foi no sentido de que, “a maioria dos países está deixando a aplicação da pena de morte”. A réplica do Pb. Solano foi a seguinte: “Constatamos, também, que a maioria dos países abriga a pornografia, aceita cada vez mais o divórcio e a dissolução familiar como normal, o casamento entre homossexuais, e por aí vai. Nada disso significa que estas coisas sejam certas em si – elas foram erradas e continuam erradas”.[v] Quanto a isso, basta lembrar que dias antes da aprovação da redução da menoridade penal na Câmara dos Deputados, a Suprema Corte americana aprovou a legalização do casamento homossexual nos cinquenta estados daquele país. Assim sendo, os Estados Unidos da América não são o referencial a ser seguido em nossas discussões éticas.

O posicionamento ético dos cristãos também não pode ser formado por argumentos sociológicos positivistas – que partem do pressuposto de que a natureza humana é intrinsecamente boa –, cientificistas tendo como fundamento o determinismo biológico. Também não deve ser formado por agendas influenciadas pelo marxismo cultural. É lamentável que muitos jovens cristãos sejam profundamente influenciados por pensadores esquerdistas, como por exemplo, o francês Michel Foucault, o queridinho dos universitários progressistas.[vi] Para Foucault, todas as questões sociais nada mais são do que uma disputa pelo poder. Roger Scruton afirma que, “o tema que unifica a obra de Foucault é a busca pelas secretas estruturas de poder. Poder é o que ele deseja desmascarar por trás de toda prática, de toda instituição e da própria linguagem”.[vii]

Dessa forma, instituições como o manicômio, por exemplo, são apenas manifestações do poder da burguesia sobre os menos favorecidos: “Através do confinamento, a loucura é sujeita à regra da razão: a loucura agora vive sob a jurisdição daqueles que são sãos, confinados por suas leis, e orientados por sua moralidade”.[viii] O mesmo se dá em relação à prisão. A prisão, para Foucault, nada mãos é do que um tipo de segregação imposta aos menos favorecidos por aqueles que são os detentores do poder. É daí que surge a popular ladainha de que “apenas os pobres e negros serão penalizados”. Para ele, a prisão é a negação ao outro do direito de existir. Discorrendo sobre a diferença existente entre a aplicação de castigos em séculos passados – que consistia em infligir dor ao corpo do indivíduo – e a nossa época, Foucault diz o seguinte:

Mas, de modo geral, as práticas punitivas se tornaram pudicas. Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são penas “físicas”: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo. Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo se encontra aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.[ix]

Daí surge a ideia no pensamento esquerdista de, não apenas a redução da menoridade penal, mas do enclausuramento ou da prisão em si ser uma injustiça, visto que o aprisionamento significa a negação de um direito fundamental do indivíduo. Em outro lugar Foucault deixa explícita a sua concepção de que a prisão é, em sua essência, uma imposição daqueles que são os detentores do poder sobre os menos favorecidos do ponto de vista econômico-social. Para ele, a disciplina da prisão nada mais é do que uma espécie de “tática de poder” intimamente associada à acumulação de capital do mundo ocidental:

Se a decolagem econômica do Ocidente começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, pode-se dizer, talvez, que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma decolagem política em relação a formas de poder tradicionais, rituais, dispendiosas, violentas e que, logo caídas em desuso, foram substituídas por uma tecnologia minuciosa e calculada de sujeição. Na verdade os dois processos, acumulação de homens e acumulação de capital, não podem ser separados; não teria sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o crescimento de um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mantê-los e de utilizá-los; inversamente, as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens aceleram o movimento de acumulação de capital.[x]

De acordo com Roger Scruton, esse tipo de afirmação de Foucault é uma explicação forçada e essencialmente marxista: “Tais observações impulsivas são produzidas não por academicismo, mas por associação de ideias, sendo a ideia principal a morfologia histórica do Manifesto Comunista”.[xi] Além disso, é esse tipo de pensamento que dá ensejo a duas ladainhas inculcadas nas massas e repetidas de forma acrítica: 1. A que diz que apenas os adolescentes pobres, marginalizados e negros serão afetados pela redução da menoridade penal; e 2. A que diz que o próximo passo da agenda daqueles que são favoráveis à redução é a privatização das prisões, a fim de contribuir com o acúmulo de capital por aqueles que são os detentores do poder. Tais argumentos procedem de uma visão de mundo não-cristã.

Isso nos conduz, então, à consideração do que é a ética cristã e qual o seu fundamento. É comum o fato de muitas pessoas crescerem em nossas igrejas sem a devida compreensão acerca da ética cristã e suas implicações para o todo da vida humana. A ética, de modo geral, diz respeito à conduta humana. A ética cristã, por sua vez, procura se harmonizar com o padrão absoluto e divino da vontade de Deus revelada nas Sagradas Escrituras. O objetivo da ética cristã é “relacionar um entendimento de Deus com a conduta dos homens e mulheres e, mais particularmente, usar da resposta a Deus que Jesus Cristo requer e torna possível”.[xii] Em outras palavras, a ética cristã nos diz como devemos ajustar a nossa conduta e a nossa forma de pensar a respeito do todo da vida àquilo que Deus declara na sua Palavra. A lógica é a seguinte: Tudo o que Deus fala nas Escrituras é verdade. Sendo assim, qualquer forma de pensar e de agir que difira daquilo que está na Palavra, por necessidade consequente, é falso e errado. Assim sendo, nossos pensamentos e ações devem se ajustar à mente do Senhor revelada na Bíblia. Ron Gleason, pastor americano e advogado faz a seguinte afirmação: “Isto quer dizer que os cristãos estão obrigados a sujeitar-se à Escritura e, por esta, como o padrão, avaliar todas as decisões e toda forma de conduta”.[xiii] O filósofo reformado Gordon H. Clark disse o seguinte: “A ética calvinista é baseada na revelação. A distinção entre certo e errado [se resolve] pela revelação de Deus nos dez mandamentos”.[xiv] Outro teólogo reformado, chamado Jochem Douma, disse: “Ética cristã é a reflexão sobre conduta moral à luz da perspectiva oferecida a nós na Sagrada Escritura”.[xv]

Isto posto, é inadmissível que numa discussão sobre qualquer assunto o cristão não fundamente as suas afirmações nas Sagradas Escrituras. É simplesmente impensável que na discussão a respeito da redução da menoridade penal os cristãos de confissão reformada se baseiem tão somente em teorias seculares do direito, no positivismo e na opinião pública. Então, é urgente compreendermos que somos chamados a pensar os pensamentos de Deus a respeito de toda a realidade. De forma específica, somos chamados a pensar os pensamentos de Deus a respeito da responsabilidade do indivíduo por crimes por ele cometidos. O que fica claro é que a forma de pensar da grande maioria dos evangélicos não está ajoelhada aos pés das Sagradas Escrituras.




[i] Uso o termo “menoridade” em vez do popular “maioridade”. Atualmente, é o menor de 18 anos que é inimputável. A discussão gira em torno da redução dessa idade para os 16 anos. Assim sendo, do ponto de vista técnico-jurídico é preferível falar em redução da menoridade penal, uma vez que, como esclarece o Dr. Valdinar Monteiro de Souza, advogado especialista em Direito Constitucional: “maioridade penal é o período de vida do ser humano imediatamente posterior à menoridade”. Se deseja-se falar em maioridade, que se fale na ampliação da maioridade penal. Cf. Valdinar Monteiro de Souza. “Redução da Maioridade, ou da Menoridade Penal?”. <http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/4241328>.

[ii] F. Solano Portela. A Pena Capital e a Lei de Deus. São Paulo: Os Puritanos, 2000. p. 10.

[iii] É importante frisar o tipo de responsabilidade penal atribuída atualmente aos adolescentes brasileiros. Como salienta o Dr. Valdinar Monteiro de Souza: “Conforme a lei, menor não comete crime, pratica ato infracional e, por conseguinte, pratique ele o ato mais hediondo ou escabroso, não será criminoso, será menor infrator. Não importa se tem 15, 16, 17 ou – o que é mais acintoso – 17 anos, 11 meses, 29 dias e algumas horas. Azar da vítima!”. Ao cometer um ato infracional, o adolescente é submetido a medidas socioeducativas. Cf. “Redução da Maioridade, ou da Menoridade Penal?”.

[iv] <http://aranzazu5.blogspot.com.br/2013/05/implicaciones-de-la-poda-sinaptica-en.html>.

[v] F. Solano Portela. A Pena Capital e a Lei de Deus. p. 12.

[vi] A designação de Michel Foucault como sendo um pensador esquerdista não é descabida. Há quem possa se levantar e afirmar que Foucault não pode ser elencado como esquerdista, uma vez que ele sempre foi crítico do marxismo. Não obstante, o filósofo Roger Scruton diz o seguinte: “Escolhi Michel Foucault, o filósofo social e o historiador das ideias, como o representante da esquerda intelectual francesa. Deve ser ressaltado, ademais, que a posição de Foucault foi constantemente cambiante e que ele mostra um sofisticado desprezo por todos os rótulos disponíveis. Ele é também um crítico (embora, até seus últimos anos, um crítico um tanto quanto calado) do comunismo moderno. No entanto, Foucault é o mais poderoso e ambicioso daqueles que buscaram ‘desmascarar’ a burguesia, e a posição da esquerda foi substancialmente reforçada por seus escritos”. Cf. Roger Scruton. Pensadores da Nova Esquerda. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 59.

[vii] Ibid.

[viii] Ibid. p. 61.

[ix] Michel Foucault. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 42. Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. p. 16. Ênfase acrescentada.

[x] Ibid. p. 213.

[xi] Roger Scruton. Pensadores da Nova Esquerda. p. 68.

[xii] Sinclair Ferguson e David F. Wright (Eds.). Novo Dicionário de Teologia. São Paulo: Hagnos, 2011. p. 393.

[xiii] Ron Gleason. Vida por Vida: A Pena de Morte no Banco dos Réus. Brasília: Monergismo, 2014. p. 20.

[xiv] Gordon H. Clark. “Ética Calvinista”. In: Carl Henry. Dicionário de Ética Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p. 231.

[xv] J. Douma. Responsible Conduct: Principles of Christian Ethics. Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2003. p. 13.

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