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25 de ago. de 2015

Da Redução da Menoridade Penal e a Fé Cristã (2/2)

Por Alan Rennê Alexandrino

Da Aplicação de Punições nas Sagradas Escrituras

Discutir a aplicação de punições a adolescentes por crimes praticados só faz sentido quando aceitamos, de início, a existência do conceito de autoridade e sua relação com a punição. Como salienta o Dr. John Frame: “O castigo dá validade prática ao conceito de autoridade. Uma autoridade não pode funcionar bem se não houver consequências para aqueles que a desobedecem”.[1] O conceito de autoridade está intrinsecamente embutido na ordem criacional. Ao criar o homem segundo a sua imagem, conforme a sua semelhança, Deus concedeu-lhe o exercício da autoridade para subjugar e dominar a criação (Gênesis 1.26-28), além de ordenar o funcionamento da vida em sociedade. Uma vez compreendido isso, não há como escapar da conclusão de que a aplicação de punições a todo transgressor das leis estabelecidas por aqueles que exercitam legitimamente a autoridade é algo sem o qual a sociedade não poderá funcionar de maneira ordeira. É preciso afirmar que os contrários à redução da menoridade penal não são contrários à aplicação de punições aos “menores infratores”. De acordo com eles, o que deve ser posto em prática é o que já está estabelecido no famigerado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O grande problema está no fato do ECA propor apenas aquilo que é denominado de medidas socioeducativas. Tais medidas partem do pressuposto de que o propósito primário da punição deve ser a recuperação/educação dos “menores infratores”.

É interessante que, visando responder à pergunta “Por que punimos aqueles que desobedecem à autoridade?”, John Frame argumenta que existem seis motivos diferentes para a aplicação de punições: 1. Desencorajamento; 2. Reforma; 3. Restituição; 4. Restrição; 5. Tributação; e 6. Retribuição. Recomendo que o leitor leia a exposição que o Dr. Frame faz de cada um desses motivos.[2]

É preciso destacar, todavia, que o segundo motivo – reforma – é aquele que ocupa o ideário daqueles que são contrários à redução da menoridade penal. Frame diz o seguinte sobre a reforma como a motivação para a aplicação de punições àqueles que desobedecem às leis: “Neste caso, não punimos Josh para desencorajar outros na sociedade, mas para o seu próprio bem. Aqui o objetivo do castigo é fazer Josh se tornar uma pessoa melhor, de modo que ele não cometa novamente esse crime”.[3] É por essa razão que o ECA preconiza a aplicação de medidas socioeducativas aos “menores infratores” o que, ao menos na teoria, deveria ser realizado pelas instituições de internamento de menores. A ideia é que a educação é a chave para o aprimoramento do “ser social” em construção, a saber, o adolescente. Isso também explica a massificação do slogan #ReduçãoNãoÉSolução.

Quando nos voltamos para as Escrituras, a fim de observar de que maneira ela lida com o ideal de reforma através da aplicação de punições, é possível perceber que ela limita tal motivação à disciplina eclesiástica e ao castigo dos nossos filhos. No primeiro caso, encontramos o apóstolo Paulo ordenando o seguinte à igreja de Corinto: Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus (1Coríntios 5.3-5). O propósito de Paulo é que, como resultado dessa disciplina, o praticante do incesto seja salvo, de modo que ele não venha a sofrer dano maior, ou seja, o castigo eterno. Assim, a motivação por trás da aplicação dessa punição específica é a reforma do pecador. No segundo caso – o castigo dos nossos filhos –, está escrito em Provérbios 22.15: A estultícia está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a afastará dela. O pastor presbiteriano escocês James Bannerman disse o seguinte: “A disciplina, em todas as suas aplicações, fora da sentença de excomunhão, deve ser considerada, com respeito ao ofensor, como terapêutica, em vez de punitiva – um meio de promover, através de cuidados especiais doloridos e rigorosos, não a destruição, mas a edificação do ofensor”.[4] Não há, todavia, nenhuma passagem na Bíblia que sugira que a reforma deve ser a motivação ou o fim pretendido quando da aplicação de punições a criminosos.

Uma melhor motivação para a aplicação de punições é a do desencorajamento. Esta motivação também pode ser denominada dissuasão. Aqui a sociedade, por meio do Estado, pune um criminoso com o objetivo de desencorajar os demais cidadãos. A punição serve, então, como uma lição para o restante da sociedade. Assim se expressa Frame a respeito do desencorajamento: “Punimos ladrões com a esperança de dissuadir outros de roubar. Fazemos o mesmo quanto a assassinos, sonegadores de impostos e caluniadores”.[5] Em Deuteronômio 13 está escrito que, caso um israelita adore outros deuses, ele deve ser apedrejado até a morte (vv. 6-10). O versículo 11 apresenta o propósito do desencorajamento: “E todo o Israel ouvirá e temerá, e não se tornará a praticar maldade como esta no meio de ti”. Quando consideramos a disciplina eclesiástica podemos perceber que ela também possui o propósito de dissuadir os demais membros de uma igreja local de cometerem o mesmo pecado daquele que está sendo apenado. Assim, uma igreja precisa ser fiel na administração da disciplina eclesiástica, dentre outras razões, para que outras pessoas sejam desencorajadas a pecar contra o Senhor.

Uma crítica corretamente feita ao motivo do desencorajamento é que é possível cometer abusos na aplicação de uma punição e, assim, torná-la injusta. John Frame diz o seguinte: “Se a restrição é a única consideração, pode-se justificar o castigo de pessoas inocentes pelo seu valor como dissuasão”.[6] Outro fator que deve ser levado em consideração, dessa vez tanto em relação ao desencorajamento quanto à reforma, é que ambos os motivos estão sujeitos aos caprichos dos penalogistas. Mais uma vez John Frame é de grande auxílio aqui:

Se um penalogista visa primariamente ao desencorajamento, ele tenderá a tornar o castigo o mais duro possível, para maximizar seu efeito no público em geral. Se, por outro lado, ele favorece a reforma, ele provavelmente planejará castigos mais brandos; talvez um regime de punição e incentivo que não apenas restrinja o mau comportamento, mas também incentive o bom.[7]

Para citar apenas um exemplo envolvendo punições que visam reformar o criminoso, basta lembrar dos jovens Liana Friendenbach e Felipe Caffé, que foram brutalmente assassinados por um adolescente conhecido como “Champinha”. Não há como chegar à conclusão de que justiça foi feita no exemplo em questão. O que pode ser percebido aqui, é que nem o desencorajamento nem a reforma são elementos motivadores adequados para discutir a punição de crimes em geral e, de modo específico, o modo como adolescentes que cometem crimes devem ser punidos.

Dito isso, quando se observa atentamente os princípios absolutos estabelecidos pela Palavra de Deus o elemento da retribuição aparece como a motivação mais adequada e justa quando da consideração da aplicação de castigos. Quando se considera a retribuição como ensinada pela Bíblia é possível chegar á conclusão de que defender que menores de 18 anos sejam devidamente punidos de acordo com os crimes cometidos está em plena harmonia com a cosmovisão cristã.

A retribuição estabelece o princípio de que um homem deve ser punido simplesmente porque ele merece. No caso, um adolescente que comete um crime hediondo deve ser punido de acordo com a gravidade do seu crime.  Isso está solidamente fundamentado na lei de Deus no Antigo Testamento: “Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe(Êxodo 21.23-25);Se alguém causar defeito em seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará. Quem matar um animal restituirá outro; quem matar um homem será morto (Levítico 24.19-21).

Duas observações que precisam ser feitas a respeito das passagens citadas acima são:

1. A chamada lei do talião expressa nos textos de Êxodo e de Levítico não têm o propósito de ensinar que aquele que sofre algum mal tem o direito de se vingar do ofensor ou criminoso. Hoje em dia é comum citar o “olho por olho, dente por dente” como sendo uma espécie de refrão justificador da vingança ou relatiação. Muito pelo contrário, o que está enfatizado aqui é o princípio da justa retribuição ou da punição isonômica. Deus não está autorizando a vingança. Ele estava controlando “os excessos”. A vingança é proibida ao ofensor, por exemplo, em Romanos 12.17-19: “Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas daí lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor” E mais do que isso, Deus também estava estabelecendo o princípio de que uma punição não pode ser muito indulgente[8], ou seja, ela não pode ser exageradamente fraca. Como exemplo disso, Deus não aprova que um assassino serial (Serial Killer) cumpra míseros 30 anos de pena. Trata-se de uma pena muito fraca ou muito indulgente. O mandamento “olho por olho, dente por dente” ensina a equidade e a justiça na aplicação da pena. Por conseguinte, se um homem chegasse a cegar alguém, ele não deveria se morto por isso. Antes, seria “olho por olho”. Se ele viesse a arrancar um dente de outra pessoa, como pena, deveria perder um de seus dentes. O castigo era sempre equivalente à ofensa, sem jamais excedê-la, ou mesmo sem jamais ficar aquém do delito cometido. Era sempre igual. Nem mais, nem menos.

2. O princípio da retribuição não pode ser descartado de maneira apressada sob a alegação de que o mesmo faz parte da lei do Antigo Testamento, não tendo mais nenhuma relação com a nossa época. O princípio da retribuição é ensinado nas Sagradas Escrituras desde o início, logo no Gênesis: Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem (9.6).[9] Verifica-se, pois, que a retribuição é contemplada pelo Senhor antes da outorga da lei por intermédio de Moisés.

Como destacado por John Frame, assumimos a validade e a necessidade da retribuição na aplicação de punição a criminosos porque “assumimos que há uma ordem moral objetiva no universo” e que, de acordo com ela, um homem – não importa quem ele seja, qual a sua situação econômica e social, sua cor da pele ou mesmo a sua idade – precisa ser punido quando comete um crime.[10] Frame afirma ainda que, “obviamente, numa cosmovisão cristã, a fonte dessa ordem moral objetiva é o Deus trino. À parte dele, não há base para essa ordem moral ou qualquer outra”.[11] No caso de Gênesis 9.6, por qual razão a punição precisa ser a morte? Porque uma vida foi tirada e esta vida fora feita segundo a imagem de Deus.

É interessante que o referencial teórico dos cristãos progreesistas/esquerdistas contrários à redução da menoridade penal não é a Escritura. Pelo contrário, o fundamento epistemológico de tais cristãos pode ser encontrado no ECA, em Michel Foucault, em Émile Durkheim e na Psicologia Comportamental. A Palavra de Deus sequer é mencionada. Não há uma única passagem citada. Quando muito, apela-se para generalizações retóricas que falam do amor de Jesus que restaura e reforma o pecador.

Uma Palavra Final

A defesa da redução da menoridade penal não pode ser identificada como um estímulo à barbárie, como desonesta e comumente é feito por pessoas ideologicamente comprometidas com a esquerda. A barbárie seria estimulada se, conjuntamente, houvesse a defesa da ideia de que cada cidadão tem o direito de fazer justiça com as suas próprias mãos. Não é esse caso! Como já foi afirmado aqui, as passagens bíblicas que tratam da retribuição têm justamente o objetivo de impedir que os ofendidos e as vítimas tomem vingança contra os ofensores e os criminosos. A administração das punições não foi entregue a indivíduos. Deus entregou a execução dos castigos aos magistrados, aos líderes do povo, os juízes, os príncipes. Em outras palavras, a execução dos castigos pertence ao Estado. Consideremos Deuteronômio 19.21, outra passagem que apresenta a lei do talião: “Não o olharás com piedade: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”. Os versículos 17 e 18 mostram que os juízes, não as vítimas, eram os responsáveis pela execução da pena: “então, os dois homens que tiverem a demanda se apresentarão perante o SENHOR, diante dos sacerdotes e dos juízes que houver naqueles dias. Os juízes indagarão bem; se a testemunha for falsa e tiver testemunhado falsamente contra seu irmão”. A lei é executada pelos magistrados, por aqueles que foram encarregados por Deus de zelar pela lei e pela ordem entre os indivíduos.

Isso está em pleno acordo com o papel do Estado e das autoridades conforme exposto pelo apóstolo Paulo, em Romanos 13.3-4: “Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás o louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal”. A função do Estado, conforme apontada por Paulo, não é colocar menores que cometeram crimes sob o regime de internação para o cumprimento de medidas socioeducativas. Antes, o Estado deve proteger os bons cidadãos e punir, castigar aqueles que fazem o mal, independentemente da idade.

Poderia ser argumentado que, uma vez que a visão de mundo bíblica deve direcionar o pensamento do cristão a respeito de todas as áreas da vida humana e, mais especificamente, a ética bíblica deve conduzir a discussão a respeito da imputabilidade dos adolescentes que cometem crimes, então, uma vez que o sistema prisional é algo estranho ao Antigo Testamento sendo antes, uma invenção de outras nações, a prisão não é a punição que deve ser dispensada aos menores de idade que cometem crimes. A grande questão é que este texto não pleiteia pela prisão desses adolescentes, muito embora a penalogia brasileira se utilize apenas dela e, portanto, em nossa cultura punir criminosos equivale a enclausurá-los. Este texto tem o objetivo único de mostrar que a ideia existente de que medidas socioeducativas são o tratamento adequado para os “menores infratores” é completamente antibíblica. E mais, este texto pleiteia que se atente para o princípio da isonomia entre crime praticado e punição conforme ensinado pelas Sagradas Escrituras. As chamadas medidas socioeducativas jamais estabelecerão a verdadeira justiça.

SOLI DEO GLORIA!


[1] John M. Frame. A Doutrina da Vida Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. p. 660.
[2] Ibid. pp. 661-664.
[3] Ibid. p. 661.
[4] James Bannerman. A Igreja de Cristo: Um Tratado sobre a Natureza, Poderes, Ordenanças, Disciplina e Governo da Igreja Cristã. Recife, PE: Os Puritanos, 2014. pp. 661-662.
[5] John M. Frame. A Doutrina da Vida Cristã. p. 661.
[6] Ibid. p. 663.
[7] Ibid.
[8] Vincent Cheung. The Sermon on the Mount. Boston, MA: Reformation Ministries International, 2004. p. 90.
[9] Gênesis 9.6 ensina, em primeiro lugar, a validade da pena capital mostrando que a mesma também não é um produto do tempo em que Israel era uma teocracia. Todavia, a discussão acerca da pena capital será deixada para outra ocasião.
[10] John M. Frame. A Doutrina da Vida Cristã. p. 662.
[11] Ibid. pp. 662-663.

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