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12 de out. de 2015

O Socialismo é Diabólico e o Capitalismo é Divino?

Por Thiago Oliveira

Quando os cristãos são alertados dos males do regime socialista - na concepção marxista-leninista, logo podem cair no erro de achar que o capitalismo é um sistema totalmente compatível com a ética cristã. Certa feita, li numa rede social que o capitalismo era divino e contrapunha o diabólico socialismo. Isto é um equívoco gritante. Existem muitas demandas do capitalismo que também se chocam com os princípios morais que estão na Bíblia. Sabemos que há também muita injustiça do lado “não vermelho” da força. O capitalismo, por ser um sistema que pertence a este mundo corrompido, afetado pelo pecado, causa deturpações até mesmo dentro da Igreja. A famigerada Teologia da Prosperidade é fruto de uma mentalidade que coisifica e vende tudo, até mesmo os princípios religiosos.

Capitalismo X Cristianismo

É importante salientar que o que convencionalmente se chama de capitalismo, é na verdade o liberalismo econômico, que deriva do liberalismo político. Esta é uma ideologia que, tal como a marxista, parte de um princípio idolátrico. No credo liberal, o que é elevado ao status divino é a liberdade individual. Koyzis destaca que o liberalismo:

[...] parte de uma crença fundamental na autonomia humana, que vai muito além de um simples apreço pela liberdade pessoal. Ser autônomo é dirigir a si mesmo, governar a si mesmo segundo a lei que se escolheu para si. Cada uma das ideologias liga essa autonomia a alguma manifestação da humanidade – seja o indivíduo, seja uma comunidade, como o Estado ou a nação. O liberalismo atribui esta autonomia ao indivíduo.[1]

Por isso que o cristão não pode declarar pertencer a uma ideologia mundana, abraçando-a por completo. Se o marxismo é anti-cristão em seu bojo, por ser materialista, o pragmatismo capitalista também se torna uma antítese do cristianismo ao desprezar os mandamentos divinos e buscar o lucro de maneira autônoma, desassociado da justiça. O resultado disto é um contexto perverso que perpetua miserabilidade enquanto alguns magnatas esbanjam muito mais do que precisam para viver. Biéler comenta com perspicácia:

A liberdade econômica sem contrapeso ético, sem corretivo social, é, portanto, também a liberdade conferida ao mais forte para aniquilar o mais fraco, e a liberdade outorgada ao mais rico para explorar o mais pobre. É a liberdade de uns que mata a liberdade de outros.[2]

Se no século XVIII, com a Revolução Industrial, muita riqueza foi produzida, milhares e milhares de pessoas não tiveram acesso a ela. Muito pelo contrário, viviam na pobreza extrema. Os trabalhadores eram submetidos a condições desumanas de trabalho, com jornadas que podiam durar mais de 15 horas, num ambiente insalubre e sem nenhuma assistência previdencial. O resultado desta liberdade econômica sem freios foi antevista por Sismondi, um economista protestante e genebrino:

Um dos produtos históricos gerado pelos vícios de um liberalismo não controlado foi o comunismo. Pode-se dizer, com efeito e sem exagero, examinando bem o encadeamento dos fatos, que o capitalismo é o pai do comunismo. A “fria opressão da riqueza” não pode evitar o desenvolvimento de antagonismos de classe, advertia já este economista clarividente. Ver-se-á como se produziu essa filiação. Mas antes, é mister notar que esse encadeamento trágico já fora pressentindo por vários observadores lúcidos. “Nos tempos da maior opressão feudal”, escrevia Sismondi, “nos tempos da escravidão, viram-se indubitavelmente da parte dos senhores atos de ferocidade que fazem estremecer a humanidade. Mas, ao menos, algum motivo havia excitado sua cólera ou sua crueldade. Restava ao oprimido alguma esperança de evitar provocar seu opressor… Na fria e abstrata opressão da riqueza, não há injúria alguma, nada de cólera... relação alguma homem a homem”. Além desse frio anonimato, os interesses do capital conduzem-no a reduzir ao máximo o custo de produção, encurralando os operários numa miséria crescente. Essa exigência leva necessariamente à luta entre duas classes hostis.[3]

Neste cenário as ideias marxistas – que funcionavam como uma religião antirreligiosa – floresceram. Se não houvesse um remanescente fiel, as coisas poderiam ter ficado bem piores. Bom é saber que Deus sempre manteve os seus profetas ativos. Os irmãos Wesley, por exemplo, além de pregarem no período conhecido por um avivamento, no qual se destaca também o ministério de George Whitefield, cuidaram do bem-estar dos mineiros de carvão, de chumbo e também operários das siderúrgicas. Eles abriram clínicas gratuitas para os trabalhadores, além de fornecerem um sistema de crédito e abrirem escolas e creches. Não era apenas assistencialismo, havia uma pregação que além de proclamar as boas-novas do evangelho, denunciava o sistema injusto e opressor que estava muito distante da Lei de Deus.

Capitalismo e Calvinismo: Qual é mesmo a relação?

Mas o capitalismo não teve seu início por conta do ensino de João Calvino? Bem, geralmente é isto que se diz nos livros didáticos de história. Max Webber, dizem alguns professores, fez um excelente estudo e constatou que o capitalismo descende do calvinismo. Quando lemos A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, vemos que Webber trabalha a ideia da vocação – presente no ideal calvinista – e a associa a prosperidade econômica, o que levou os protestantes a assumirem uma postura ascética. É verdade que para os calvinistas o trabalho é realizado para a glória de Deus e que esta ideia serviu como força motriz para gerar prosperidade, já que o trabalho realizado com esmero, sobretudo o comercial, rendia bons frutos. Só que este princípio foi usurpado por uma ética utilitária que buscava o bem-estar dos indivíduos. A ideia que veio de uma base doutrinária reformada, logo se apartou de sua origem religiosa e transformou-se num ideal profano em busca de poder e felicidade através do acúmulo das riquezas. Um dos motes desse utilitarismo diz que “tempo é dinheiro” (time is Money). Embora a prosperidade econômica tenha sido mais evidente entre nações protestantes, sobretudo puritanas, o denominado “espírito do capitalismo” é resultado do secularismo e não da doutrina religiosa calvinista. Foi o desenvolvimento exacerbado do individualismo que suprimiu a ética cristã que pregava justiça.[4]

João Calvino é acusado falsamente de ser o precursor da ética capitalista[5], pois o mesmo nunca admitiria uma economia que estivesse embasada no individualismo e na competição. Principalmente dentro de um corpo genuinamente cristão. Os que fazem esta leitura partem do pressuposto equivocado de que Calvino legitimou a usura, coisa que era condenada pela Igreja Católica e também por Lutero. Segundo o reformador de Genebra, a Escritura proibia o empréstimo a juros destinado a ajudar alguém que estava necessitado. Já no caso das relações de empréstimo do século XVI, com a ascensão da burguesia e o florescimento do comércio, havia uma enorme diferença. Ali o empréstimo servia para financiar a produção. Sendo assim, quem lucrava em seus negócios após ter tomado dinheiro emprestado, poderia partilhar de seu lucro com quem lhe emprestou, devolvendo a quantia com um acréscimo. Calvino categoricamente afirmou que isto não é proibido pela Palavra de Deus, ela a proíbe quando é para o auxílio do pobre, não para o favorecimento do rico. Mesmo ensinando que o empréstimo a juros para fins comerciais não fosse uma prática ilícita, Calvino fez algumas ressalvas[6]:

- Embora não proibida, a usura deveria ser evitada.

- Os juros devem ser moderados.

- Aos pobres e necessitados não se deve cobrar juros.

- Ninguém deve fazer da usura uma profissão, deve-se lucrar com o trabalho e não com o ócio, apenas “traficando” dinheiro.

- Não se deve emprestar e tomar emprestado com frequência.

- A usura não deve existir dentro da comunhão da Igreja.

Quando se trata da distribuição da riqueza, Calvino acreditava que os ricos têm um papel importante, na verdade um privilégio dado por Deus, para cuidar dos mais pobres através dos seus bens. Ele acreditava que a riqueza pode ser uma benção no seio da Igreja e por isso incentivou que a mesma fosse produzida. Todavia, onde houvesse riqueza abundante, deveria haver doações abundantes. Calvino enxergava os ricos como os responsáveis diretos pelo bem-estar dos menos favorecidos e isso geraria um intercâmbio de bens pelo qual o dinheiro fluiria do rico para o pobre, circulando livremente pela comunidade de uma maneira saudável e que atendia aos anseios de Deus.

Sabemos que o pecado está presente no coração humano, por isso que grande parte dos ricos não zela pelos mais pobres e não atende suas necessidades. Logo, a Igreja deve se envolver na assistência social através do ministério diaconal. O diaconato em Genebra cuidava dos órfãos, das viúvas, dos estrangeiros e refugiados, sem fazer distinção entre membros e não membros da igreja. O hospital da cidade era dirigido pelos diáconos. Além do envolvimento direto da Igreja, também era de sua competência: “[...] consistentemente alertar o Estado a que proteja os fracos, os oprimidos e explorados pelos ricos, os que não possuem poder político ou econômico, e que não têm proteção social”.[7]

Tratando agora sobre as questões trabalhistas, nunca que Calvino iria concordar e se manter omisso diante do contexto que eclodiu dois séculos depois. Vemos que já em Genebra ele e os pastores tinham um importante papel de intercessão favorável aos trabalhadores:

Os pastores intercedem continuamente diante do Conselho de Genebra em favor dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumento de salários para os trabalhadores. Os pastores pregavam contra a especulação financeira, e fiscalizavam parcialmente os preços contra a alta provocada pelos monopólios. Sob a influência dos pastores, o Conselho limita a jornada de trabalho dos operários.[8]

Estocagem de alimentos, monopólios e especulação financeira eram práticas denunciadas por Calvino por serem produtos da ganância e da avareza. Dentre os principais males, ele considerava privar o homem do seu trabalho, e negar-lhe um salário digno, algo gravíssimo. “A ética reformada do trabalho ordena, portanto, ação social eficaz para prevenir o desemprego e intervir em benefício de suas vítimas”.[9] É notório que em tempos de crise, as empresas cortam gastos inicialmente demitindo parte de seus funcionários. Se fôssemos seguir as recomendações de Calvino, esta seria a última alternativa, sendo a melhor atitude dos patrões diminuírem a sua margem de lucro e baixarem seu padrão de vida para não deixar o mais pobre desamparado sem ter como sustentar sua família. Com isso observamos o quão distante se encontra o capitalismo da ética protestante.

Com toda a atuação dos pastores, evitou-se que as greves que atingiram Lyon e Paris chegassem a Genebra e emperrassem o crescimento da cidade. Suas gráficas redobram a produção e daí a famosa edição francesa das Institutas, pode ser publicada e distribuída. Assim, as regras profissionais são endossadas pelo senso de justiça e caridade, tendendo a um desenvolvimento equilibrado. Biéler comenta:

Desse modo, ciosa da prosperidade da cidade, é a Reforma calvinista favorável à atividade financeira, mas, preocupada com a sorte das camadas modestas da população, levanta-se contra toda a prática ou atividade que ameaça prejudicar a parcela mais pobre do povo. Busca, sem afrouxamento, salvaguardar sempre um justo equilíbrio entre o surto econômico e a justiça social.

Mordomia Cristã: uma alternativa supra-ideológica

É importante endossar que as mazelas do capitalismo são oriundas da natureza adâmica e que a alternativa não seria a troca de regime, ou como dizem os socialistas, a revolução. Mudar as estruturas de poder não resultará numa sociedade perfeita, pois o pecado ainda residirá nos corações humanos. Além do mais, a solução sugerida pelo marxismo, quando posta em prática, gerou muito mais injustiças e opressão. Governos tirânicos assassinaram milhões de pessoas e cercearam a liberdade dos seus cidadãos. Não há um registro positivo na história onde quer que o socialismo tenha sido implantado. Além disso, sabemos que o marxismo tem um fundamento anti-cristão:

Em países marxistas, a educação dominada pela análise marxista da história e da religião, colocou o evangelismo cristão em grande desvantagem, pois é inevitável que todos os espíritos, mesmo os não comprometidos com o marxismo, são obrigados a ser fortemente influenciados por uma cosmovisão dialética e materialista. Foi principalmente por conta dessa área de atuação que certos grupos não viram outra alternativa a não ser classificar o marxismo como demoníaco e satânico.[10]

Ao cristão não compete adotar nenhuma visão ideológica e se portar como peregrino neste mundo, envolvendo-se naquilo que é convergente à ética cristã e desprezando o que fere os princípios bíblicos. O capitalismo não se torna anti-cristão por perpetuar a propriedade privada e, também, a divisão entre ricos e pobres, pois, esta divisão existia também na teocracia israelita. O próprio SENHOR advertiu que sempre haverá de existir pobres na terra (ler Dt 15. 7,8 e 11). Isto se dá pelo coração obstinado do homem, que não obedece ao mandamento divino de cuidar para que não haja mais pobres (como se lê um pouco antes em Dt 15. 4,5). O que torna o capitalismo antagônico a moralidade bíblica é a crença na autonomia do homem. Se atentarmos para a cosmovisão reformada da economia, que não tira de Deus a soberania, podemos conciliar muito bem a produção capitalista e o ideal cristão de justiça.

É possível ter posses - até mesmo enriquecer - e mesmo assim ser alguém justo e que promove o bem para o próximo. Não devemos esquecer o princípio da mordomia cristã que, grosso modo, afirma que o que temos não pertence a nós mesmos. Com este tipo de mentalidade podemos viver o desapego material, procurar uma vida modesta, sem esbanjar futilidades e fugir do consumismo desenfreado. É possível que um empresário bem-sucedido seja ético e com seu empreendimento promova os valores cristãos, pagando dignamente aos seus funcionários, honrando com seus compromissos fiscais, gerando mais empregos e doando parte dos lucros da empresa para incentivar pesquisas científicas que serão socialmente benéficas, organizações beneficentes e até agências missionárias.

Na próspera Genebra, Farel, Calvino e os reformadores optaram por um estilo de vida tão simples que seriam considerados paupérrimos segundo nossos critérios socioeconômicos. Mesmo incentivando a economia, a modéstia foi a virtude pregada e vivida por estes homens. Assim, se pregarmos e vivermos de maneira semelhante, podemos operar transformações, não numa escala global e permanente, pois só quando Cristo retornar e redimir este mundo por completo é que teremos, de fato, equidade e justiça. Todavia, é possível minorar os sofrimentos dos mais pobres e promover aquilo que é justo seguindo os princípios cristãos.

[...] o uso legítimo dos bens recebidos consiste em compartilhá-los fraternal e liberalmente, visando ao bem do nosso próximo. Para levar a efeito esse compartilhar, não se pode achar melhor regra nem mais certa do que quando se diz: tudo que temos de bom nos foi confiado em depósito por Deus, e nessas condições, deve ser distribuído para o bem dos demais.[11]


[1] KOYZIZ, David. Visões e Ilusões Políticas, p. 56.

[2] BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes, p. 149.

[3] Ibidem, p. 155.

[4] Timothy Keller trabalha o conceito de justiça de forma brilhante. Sua definição é a de que justiça significa relacionamento correto. Amparado no termo hebraico tzadeqah, Keller afirma que a retidão bíblica é inerentemente social, pois engloba os relacionamentos (Justiça Generosa, Edições Vida Nova).

[5] O próprio Webber, numa nota de rodapé escreve: “(...) diga-se expressamente desde já que não estamos considerando aqui as visões pessoais de Calvino”.

[6] Com base no capítulo 7 do livro Calvino, Genebra e a Reforma, escrito por Ronald Wallace, editado pela Cultura Cristã.

[8] Ibidem, p. 20.

[9] BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes, p. 127.

[10] Comissão Lausanne, Consulta de Pattaya, junho de 1980.

[11] CALVINO, João. As Institutas, Volume 4, p. 188. 

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