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22 de jan. de 2016

Calvino e as Relações de Trabalho

Por André Biéler

A ética calvinista do trabalho.

Como toda ética do reformador, a ética do trabalho baseira-se, portanto, na visão bíblica das realidades sociais. É uma ética teológica, que pode confirmar, mas não necessariamente, a ética natural, de uma humanidade atualmente desnaturada. A ética evangélica destina-se a servir de referência aos seres humanos para ajudá-los a discernir o bem do mal, porque bem e mal lhes são igualmente naturais, um como o outro.

A dignidade do trabalho humano, quando em conformidade com o desígnio de Deus, atém-se ao fato de que é, de certa forma, o prolongamento do trabalho que o próprio Deus empreende para a manutenção de suas criaturas. É a resposta à vocação que este Deus lhes dirige para que elas se utilizem das riquezas da criação, postas por ele, gratuitamente, à disposição delas. A despeito dessa eminente dignidade, a obra humana permanece, porém, obra profana. Não poderia aspirar à sua sagração. Quem a executa assume toda a responsabilidade perante Deus e perante os homens.

Todavia, por causa de sua natureza desnaturada, o homem despreocupa-se da glória de Deus e, por conseguinte, do bem de seu próximo. Crê poder dispor de seu trabalho como bem lhe parece, de forma autônoma e egoísta. Pode mesmo fazer dele seu Deus. E pensa, naturalmente, que pode dispor igualmente, como bem lhe apraz, do trabalho alheio e, particularmente, dos frutos do trabalho daqueles que por ele são remunerados. Assim, desligado da ordem de Deus que lhe confere seu sentido e sua dignidade, esse trabalho pode transformar-se em servidão, maldição, e tornar-se, para si mesmo e para os outros, fonte de sofrimentos e lágrimas. Degrada-se o ponto de não ser considerado mais que simples mercadoria, como o destacarão os economistas do século XIX.

O que se faz mister, portanto, para que o trabalho recupere seu sentido original? Urge que seja novamente considerado como serviço e reconhecido como tal, com sua dignidade. E para tanto, faz-se preciso que o homem restaure sua situação perante Deus. Faz-se necessário que se associe de novo, pessoalmente, à obra espiritual que Deus persegue incansavelmente no mundo, para o bem de todas as suas criaturas. E é preciso que associe igualmente a essa obra divina seu próprio trabalho e o dos outros.

Paradoxalmente, para isso acontecer, o homem deve parar momentaneamente de trabalhar, a fim de readquirir nova comunhão com Deus. É necessário que silencie diante dele, para escutá-lo. Esse é o significado do Deus (Gênesis, c. 20). É o dia da santificação, a saber, da marcha espiritual, pela qual cada indivíduo é convidado a reencontrar sua verdadeira identidade de criatura de Deus, motivada e estimulada por seu amor.

Assim, o repouso humano não possui valor em si mesmo. Se proporciona ao trabalhador um descanso físico e psicológico desejado, necessário, isso é uma feliz consequência, mas um efeito secundário. Não é o reencontrar-se com Deus, com a comunidade dos crentes, retornar às fontes e reencontrar, assim, o sentido da sua vida inteira, e particularmente de seu trabalho. “Os fiéis”, escreve Calvino, “devem repousar de seus próprios trabalhos, a fim de permitir que Deus opere neles.” E “agir é, pois, aderir em todas as coisas à ação de Deus”.

Ora, essa tomada de posição do homem diante de Deus só é possível pela mediação de Cristo. Para que reconquiste o justo sentido de sua existência e de seu trabalho, o homem deve entrar na comunhão com Deus pelo caminho que lhe abre Cristo. É necessário, pois, passar pelo arrependimento e deixar-se santificar, restaurar, pelo espírito de Deus. E essa santificação opera-se na comunidade dos fiéis, na comunhão com aqueles que buscam em conjunto a renovação da sua existência. Assim, somente dessa forma o trabalho cotidiano pode readquirir seu significado e reencontrar sua qualificação. Só desse modo pode tornar a ser uma obra em conformidade com o desígnio de Deus e restabelecer entre os homens relações sociais justas. Eis porque o mandamento bíblico da santificação do dia do repouso faz menção às relações do trabalho, ao relacionamento entre senhores e súditos, isto é, em termos modernos, entre patrões e operários, entre empregadores e empregados, entre os que fornecem o capital da empresa e os que executam o trabalho. A espiritualidade cristã, quando autêntica, não é, pois, fuga da interioridade. É contemplação do agir de Deus, que quer ser, claramente, o árbitro das relações humanas no trabalho, na cidade e, também, nas trocas comerciais e financeiras. Aliás, como também em todos os demais domínios da vida. (Mas estes não constituem objetos das reflexões desta obra.)

Pode-se, por isso, dizer, com toda justiça, que Calvino conferiu ao trabalho sua dignidade. Mas, é um equívoco censurá-lo por haver instituído a religião do trabalho. Se protestantes, ou mesmo sociedades de origem calvinista, vieram a ceder a essa extravagância, como se pode constatar por vezes (examinar-se-á esse assunto), é porque adotaram ideologias profanas que, como o liberalismo integral ou o marxismo, consideram o trabalho sem levar em conta o sentido que Deus lhe empresta. Fazem dele um valor em si, autônomo, apartado de suas raízes espirituais e da ética que delas deriva, detentoras de seu verdadeiro significado. Acrescentamos que esse sentido do trabalho não é estático, mas dinâmico. A vocação de Deus não enclausura o cristão em atividade imutável. Ao contrário, é apelo para enfrentar, de maneira flexível, as situações novas. Porque Deus, que convoca o homem ao trabalho, age sempre no contexto de uma história concreta e evolutiva, que obriga cada indivíduo a adaptar-se às circunstâncias.

A ociosidade, o desemprego e os lucros abusivos.

Já que o trabalho, sob a ótica calvinista, é obra pela qual o homem se realiza correspondendo à vocação que Deus lhe dirige, a ociosidade é vício que corrompe a humanidade. O repúdio ao trabalho, assim como a preguiça, significa para o homem a negativa de corresponder à expectativa de Deus, uma forma de ruptura com ele. “A bênção do Senhor”, escreve Calvino, “está nas mãos daquele que trabalha. É certo que a preguiça e a ociosidade são malditas por Deus.”

É por isso que Calvino denuncia a culpa dos que obtêm suas posses do trabalho alheio, sem proporcionar à comunidade trabalho pessoal, serviço real (remunerado ou não). Descreve esses “ociosos e inúteis que vivem do suor alheio e, portanto, não prestam contribuição alguma para ajudar o gênero humano”.

Eis nos novamente bem distantes tanto dos usos da sociedade feudal anterior à Reforma quanto dos que prevaleceram em seguida nas sociedades onde floresceu o capitalismo primitivo ou selvagem. Que nessas sociedades alguns trabalham demasiadamente, enquanto outros são conduzidos ao repouso forçado, eis um indício grave do esquecimento da ética cristã ou do desprezo por ela. É por isso que, pelas mesmas razões teológicas relacionadas com o valor do trabalho, o desemprego não pode ser tolerado, nem admitido, como uma fatalidade do ponto de vista desta ética. Já que o trabalho é essa obra indispensável, pela qual o homem se realiza na obediência a Deus, o desemprego é uma calamidade social que deve ser combatida com o máximo vigor. Privar o homem do seu trabalho é verdadeiro crime. É, de certa forma, subtrair-lhe um pouco a vida. “Se bem que recebamos nosso alimento da mão de Deus”, escreve Calvino, “ele nos ordenou trabalhar, O trabalho é eliminado? Então a vida humana é aviltada.” “Sabemos que toda a renda de todos os artesãos e operários decorre de poder ganhar a vida…”. “Então, já que Deus lhes depositou assim a vida em suas mãos, isto é, no seu trabalho, privá-los dos bens necessários é como degolá-los.”

A ética reformada do trabalho ordena, portanto, ação social eficaz para prevenir o desemprego e intervir em benefícios de suas vítimas.

Tal ética estava na origem das múltiplas intervenções de Calvino e de seus colegas na luta contra esse flagelo. Para eles não estava em discussão abandonar-se à filosofia do “laisser-faire”, que prevaleceu mais tarde na ideologia profana do liberalismo integral e dos economistas sem imaginação. Preconizavam a intervenção moderadora do legislador para melhor distribuição de bens em função da conjuntura. Não imaginavam, tampouco, que o Estado devesse assumir a função econômica: isso equivaleria a subtrair aos indivíduos suas responsabilidades e iniciativas, inerentes à sua vocação, preocupada com o próprio trabalho e com o alheio. E a ociosidade, que a ética cristã combate, não pode ser encorajada, também, por uma lassidão social tolerante demais para com os preguiçosos.

Sempre em função de seu significado espiritual e ético, o trabalho de cada indivíduo deve ser respeitado e não é lícito dele retirar lucro abusivo. “Deus nos ensina”, escreve ainda Calvino, “que nos cabe tratar com tal humanidade os que cultivam a terra para nós, que eles não sejam onerados imoderadamente, mas possam prosseguir no seu trabalho e nele tenham oportunidade de dar graças a Deus.” Deus quer “corrigir a crueldade que existe nos ricos, os quais empregam pessoas pobres, mas não as recompensam pelo seu trabalho”.

Então, se a liberdade é indispensável ao exercício da vocação para o trabalho, que Deus dirige a toda pessoa humana, essa liberdade não pode ser considerada isoladamente, independente da busca de justa solidariedade entre os parceiros sociais, todos os atores da economia.

Sabe-se com que vigor Calvino se esforçou para pôr em prática o ensino espiritual e ético que ele ministrava cotidianamente. Interveio constantemente junto às autoridades, tanto para eliminar a ociosidade quanto para combater o desemprego, que se tornava ameaçador quando os refugiados estrangeiros afluíram para a cidade de Genebra. Foi em razão de suas insistências que o Pequeno Conselho, um dos conselhos da cidade, estimulou a criação de novas indústrias, como a tecelagem, depois as manufaturas de tecidos de seda para criar assim novos postos de trabalho e absorver o desemprego.

O conceito reformado do salário.

É sempre a partir de considerações teológicas particulares que Calvino define uma ética concreta. E assim é, mais notadamente ainda, a propósito do salário.
    
O salário humano retira seu significado de uma analogia com a recompensa que Deus concede ao homem por suas obras. De fato, ela depende unicamente de seu amor. Tudo o que recebe um ser humano é devido à graça de Deus. É ele que provê gratuitamente a sustentação da vida, por pura misericórdia. “Falando com propriedade”, escreve Calvino, “Deus nada deve a ninguém.” “Qualquer obrigação de que nos desincubamos, Deus não está absolutamente obrigado a pagar-nos salário algum.”

Na sua bondade, porém, Deus não abandona suas criaturas sem lhes dar o que lhes é necessário para viver. Remunera suas obras, não por obrigação, mas por amor. “Por sua bondade gratuita, oferece-nos salário”, escreve ainda o reformador, “aluga nosso trabalho, o qual lhe é devido mesmo sem a remuneração.”
    
O salário humano concedido a todo o trabalhador é, portanto, a expressão tangível do salário gratuito e imerecido com que Deus privilegia a obra de cada indivíduo. Assim, por mais profano que seja, o salário se reporta à obra de Deus. Expressa de forma visível a intervenção de Deus em favor da frágil existência humana. Além disso, porque esse salário é o sinal da graça de Deus, não pode ser considerado como favor, que o dono do trabalho possa dispor como bem lhe aprouver. Dando ao trabalhador a remuneração de seu trabalho, o dono nada mais faz que transferir ao próximo aquilo a que este tem direito da parte de Deus.

Por causa desse significado espiritual e ético conferido ao salário, o produto do trabalho não pertence, portanto, mais ao patrão que ao operário, ambos sócios na atividade comum. Em conjunto, recebem o produto como a recompensa providencial de seu esforço. Patrões e empregados são, em conjunto e igualmente, devedores de Deus segundo os dons que receberam e puseram em atividade, sem mérito maior para uns ou outros. Devem, portanto, repartir esses frutos de comum acordo, livremente, mas levando em conta a contribuição inicial a responsabilidade de cada um. Disso decorre que não se trata simplesmente de regular-se pela lei da oferta e da procura, sem qualquer outra consideração ética. E mesmo que tal ética jamais haja sido aplicada à letra, é sua orientação espiritual que importa observar. A negociação, aqui como em qualquer lugar, deve ocorrer. A negociação é um princípio social superior, que deriva diretamente do fato de que nenhum ator econômico é, sozinho, dono do que produz em conjunto com os outros. O produto permanece sinal concreto da graça de Deus, um dom a partilhar.

Contra a exploração dos trabalhadores.

Por certo Calvino não ignora as regras do mercado. Mas, precisamente estas, não podem ser as únicas que devem ser levadas em conta. Devem ser complementadas e corrigidas de acordo com essas referências espirituais e éticas. Impõe-se especialmente levar em consideração as necessidades e a dignidade de todos os parceiros. É que a avidez ameaça sempre perverter as relações sociais, particularmente quando a conjuntura é adversa para os trabalhadores mais fracos.
    
“Eis como muitas vezes procedem os ricos”, escreve Calvino. “Espreitam as ocasiões favoráveis para reduzir à metade os salários dos pobres, quando estes não têm onde empregar-se. Estes estão desprovidos de tudo, dirá o rico, tê-los-ei por um pedaço de pão, porque precisam, embora contra a vontade, se renderem a mim. Dar-lhes-ei meio salário e têm de contentar-se. Quando, pois, usamos de tal maldade, conquanto não tenhamos negado salário, há sempre crueldade, e lesamos um pobre.”
   
Destarte, em matéria de remuneração, o que é justo sob o aspecto da ética está, muitas vezes distante do que é a norma no mundo econômico.
   
Sem que, nem por isso, recomende a revolução dos assalariados explorados, o reformador constata que Deus está atento às reclamações dos trabalhadores espoliados: ele não se esquece dos empregadores que abusam deles. De fato, “com que maior violência se pode deparar”, escreve, “do que fazer morrer de fome e de miséria os que nos fornecem o pão com o seu trabalho? E, apesar disso, essa maldade tão absurda é muito comum. É que existem muitas pessoas que possuem temperamento tirânico e pensam que a humanidade foi feita somente para eles. São Tiago afirma que o salário grita, porque tudo o que os homens retêm em seu poder, ou por fraude, ou por violência ou força, clama vingança aos gritos. Faz-se imperioso observar o que acrescenta: o grito dos pobres chega até os ouvidos de Deus, a fim de que saibamos que as maldades, que lhes são feitas, não ficarão impunes”.

Ainda nessa matéria, Calvino interveio junto aos seus colegas para que a ética da justa remuneração fosse aplicada na sua cidade. Àquela época, como na maioria dos países vizinhos, a população atravessava período difícil, caracterizado por alta generalizada do custo de vida. Os salários não acompanhavam essa elevação. Os assalariados menos aquinhoados, o proletariado, entraram em agitação. Em 1559, o Conselho, para prevenir qualquer rebelião, proibiu a reunião de trabalhadores, suprimindo seu direito a associação. Advieram perturbações sociais, entre os gráficos principalmente. Sob a iniciativa dos pastores, o Conselho, de comum acordo com os representantes da profissão, tomou medidas para regulamentar a atividade gráfica. Graças a essa intervenção e à ponderação dos interessados, Genebra evitou as greves que perturbaram Lion e Paris naqueles tempos. Essa paz social, obtida mediante a negociação entre todas as partes, contribuiu para a recuperação da economia de Genebra e para seu desenvolvimento rápido em comparação com as economias vizinhas.

Legitimidade do comércio, das trocas e da divisão do trabalho.

Enquanto a sociedade medieval menosprezava o comércio, o Cristianismo reformado o reabilitou inspirando-se, uma vez mais, no ensinamento bíblico. Já que Deus convocava cada indivíduo para uma missão particular, explica Calvino, torna-o dessa forma dependente do trabalho e dos serviços alheios. Assim, pois, cada indivíduo tem necessidade de usufruir das outras atividades humanas. Certa divisão do trabalho está, portanto, em conformidade com o desígnio de Deus. Ela manifesta a interdependência de suas criaturas e acentua a utilidade dos vínculos que a atividade econômica tece na sociedade. Cada indivíduo é dependente dos outros. Desse modo expressa-se a solidariedade que liga os homens entre si. E tal solidariedade implica troca permanente entre os indivíduos, reciprocidade de serviços. O comércio, por consequência, é o corolário da vocação individual para um trabalho particular. As trocas são por conseguinte indispensáveis para que se realize a ordem social harmoniosa que Deus quer ver reinar entre os homens. Nenhum deles pode bastar-se.

É pouco provável, porém, que Calvino tenha aplicado essas observações, tais quais foram feitas, à divisão industrial do trabalho que não conheceu, levada ao exagero, como o foi, a partir do século XIX. É que tal divisão, que reduziu o homem a simples máquina, destruiu a própria natureza do trabalho criador, individual, resposta a uma vocação personalizada.

Como todas as outras atividades humanas, as trocas somente são úteis se estão em conformidade com a vontade de Deus, à ética cristã. Mas o homem desnaturado inclina-se a falsear esse tipo de relações econômicas. A fraude e a desonestidade insinuam-se nas trocas e desnaturam-nas. “Quando não mais se pode comprar nem vender”, diz Calvino, “a companhia dos homens é como que destruída.”

Ora, os autores de tal subversão são acima de tudo os especuladores e os açambarcadores, já numerosos no século XVI, que, por todos meios artificiais, entravam a circulação dos bens e dos produtos, causando-lhes a raridade e aumentando destarte os lucros.
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Fonte: A Força Oculta dos Protestantes. Ed. Cultura Cristã. P. 124-131. 

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