Por Igor Miguel
Inteligência
ou Inteligências?
Se
você está querendo tornar-se um cristão verdadeiro, advirto-lhe que está
embarcando em algo que vai exigir todo o seu ser, o seu cérebro e tudo o mais.
(C.S. Lewis)
A palavra inteligência vem
da combinação de duas palavras latinas "inter" e "lego",
cuja tradução literal seria "escolher dentre". Inteligência tem haver com
"discernimento", "escolha" ou "seleção". Uma possível definição para inteligência, ao
menos a partir da origem da palavra, seria: a capacidade de considerar
determinados fenômenos relevantes e outras irrelevantes a partir de critérios
específicos. Interessante esta
possibilidade, pois em geral, entende-se inteligência como sendo uma
"habilidade mental ou intelectual puramente lógica", uma compreensão
típica de uma sociedade que trata a razão quase como divindade, apesar de
alegarem ser ela ideológica e religiosamente neutra.
Se inteligência for, como
dito, "a capacidade de selecionar, eleger ou escolher coisas ou
fenômenos", logo, este discernimento dependeria de um sistema de crenças
ou uma cosmovisão, onde se organizam os critérios que acolhem o que é
considerado relevante, enquanto excluem aquilo que é considerado
irrelevante. Porém, uma observação
importante deve ser apresentada: cada indivíduo ou grupo de indivíduos possuem
sistemas de crenças (cosmovisões) diferentes, desta forma, cada um deles adota
critérios diferentes para eleger o que consideram relevante ou irrelevante em
sua relação com o mundo e as pessoas a seu redor. Se há diferentes cosmovisões, e diferentes
critérios de seleção ou escolha, logo, há diferentes inteligências, ou
discernimentos.
Educação
cristã: alunos inteligentes?
Em diálogos com educadores
cristãos, o que se percebe é que todos querem formar alunos inteligentes, sem
deixar nada a desejar em relação às melhores escolas não-cristãs, mas a questão
é: que tipo de inteligência a escola cristã quer promover? Não basta que jovens cristãos sejam
estimulados a serem geniais ou cognitivamente habilidosos. Eles precisam ser
inteligentes, sem dúvida, mas acima de tudo, inteligentemente cristãos.
Outra pergunta que deve ser
levantada: que inteligência a educação formal procura promover em nossos
filhos? Muitas de nossas crianças são
submetidas a um programa em prol de uma "inteligência" revolucionária
e progressista. Eles aprendem que a
conspiração e a revolução contra os que estão no poder é sempre o melhor
caminho. Se não, aprendem que a
competitividade e o individualismo pragmático são os melhores caminhos para o
sucesso. Ou ainda, o cientificismo
reducionista que atribui à ciência poderes quase absolutos.
Em casa, pais cristãos são
frequentemente acometidos por um cristianismo raso, sentimentalista, acham que
não precisam de critérios para julgar o presente século, e que a cultura é
importante apenas para que seus filhos sejam bem sucedidos em termos
profissionais. Enquanto, em relação a
fé, o que importa é que devem ir a Igreja, serem batizados, e tornarem-se bons
crentes. Sem dúvida, este não é o melhor
caminho para crianças, adolescentes e jovens cristãos, se o desejo é que eles
sejam culturalmente relevantes, sem caírem na sedução do triunfalismo.
Mas, enfim, o que seria uma
inteligência cristã?
Uma
inteligência cristã
Em
termos gerais, uma inteligência cristã ou uma "mente cristã" (Nancy
Pearcey, 2004) deveria ser, em primeira instância, oposta a qualquer proposta
cognitivista ou racionalista que coloque a inteligência em um status de
neutralidade religiosa ou ideológica.
Logo, o cristão deve assumir explicitamente que sua forma de se relacionar
com o mundo, a sociedade, a cultura e com sua individualidade, depende de um
sistema de crenças fundantes e é pautada em uma inteligência que lhe é
peculiar.
Uma síntese da peculiaridade
da forma de pensar do cristão é aquela encontrada no seguinte excerto do
filósofo cristão holandês Herman Dooyeweerd (1894-1977):
Nesse sentido central e
radical, a palavra de Deus, penetrando na raiz de nosso ser, tem de se tornar o
motivo-poder central do todo da vida cristã na ordem temporal com sua rica
diversidade de aspectos, tarefas e esferas ocupacionais. Como tal, o tema
central da criação, da queda no pecado e da redenção deveria também ser o ponto
de partida central e o motivo-poder de nosso pensamento teológico e
filosófico. (Dooyeweerd, 2010)
Esta citação resume bem a
peculiaridade da inteligência cristã. Em
primeiro lugar, ela se constitui na palavra de Deus, ou seja, na revelação de
Deus através das Escrituras Sagradas (Bíblia).
O sistema de crenças do cristão se constitui neste longo material
canônico que preserva os valores e o sentido que ele (o cristão) atribui ao
mundo. Os fenômenos culturais ou
naturais são compreendidos a partir das crenças construídas desde a narrativa
bíblica. A partir desta concepção da
vida, como revelada nas Escrituras, o cristão se relaciona de forma particular
nas "esferas ocupacionais" e com as "tarefas" sociais e
culturais com as quais está envolvido.
Porém, o mais importante desta
citação é: a Bíblia preserva um tema central. Um tema cuja narrativa envolve
uma história que abrange: a criação do mundo por Deus, a queda e o fracasso do
ser humano e o plano de resgate ou redenção de Deus em relação ao homem e seu
mundo. Desta forma, diz-se que a
narrativa bíblica orbita ao redor do tema: criação, queda e redenção.
Inteligência
bíblica e narrativa
A Bíblia é um livro complexo
e não é necessariamente uma obra sistemática com uma estrutura analítica. A revelação bíblica encontra-se em forma de
"história" e "coleções" textuais e é portadora de quadros,
dramas, pressuposições, leis, instruções, provérbios e poemas, que formam um
universo complexo e rico. Mas, a chave
para navegar neste oceano é compreender o tema criação, queda e redenção.
a. criação: tudo é relativo
ao absoluto
Para um cristão, a criação
(natureza) não é um acidente físico-químico contingente que se estruturou em
leis autônomas e impessoais. Ao contrário, Deus mesmo (o incondicionado) fez
todas as coisas a partir de sua sábia vontade.
Para muitos, a imagem de Deus como criador pode soar infantil. Mas, é importante uma leitura mais cuidadosa
a respeito do que a tradição judaico-cristã chama de criação.
Para o cristão, Deus é
absolutamente inteligente e criativo, e por este motivo, pode-se perceber
determinados padrões nos fenômenos naturais, um ordem, ou como se chama: ordo
creationis (ordem da criação). Deus é
colocado como o absoluto e todas as coisas são relativas a Ele. As implicações aqui são incríveis, pense por
exemplo, que a afirmação cristã de um "Absoluto" (Deus) evita que o
cristão caia no reducionismo, absolutizando os fenômenos naturais ou sociais,
que para ele (o cristão) são relativos a ordem do Deus absoluto. Nestes termos, a inteligência cristã oferece
uma posição epistemologicamente privilegiada, pois a partir da crença de Deus
como o absoluto, o cristão pode interagir com a diversidade dos fenômenos
presentes na criação sem cair na tentação idólatra de absolutizá-los. Exemplo de reducionismos são os que ocorrem,
por exemplo, com o psicologismo, sociologismo, culturalismo e outras
tentativas, de explicar o homem e o mundo, a partir de apenas um aspecto ou
fenômeno. A inteligência cristã, neste
sentido, é irredutível e multidisciplinar.
b. queda: fragilidade e
desconfiança
A fé cristã é viril e
corajosa, no sentido que não está disposta a lidar com a natureza humana de
forma ingênua. Ela faz uma denúncia,
como destacou o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, em entrevista à Revista
Veja: "O cristianismo [...] fala do pecador, de sua busca e de seu
conflito interior. [...] o cristianismo reconhece que o homem é fraco, é
frágil." Esta é a doutrina da
queda, preservada nos textos de Paulo, explorada pela tradição agostiniana e
reafirmada pela reforma protestante, que a chama de "depravação
total". O homem é portador das
reminiscências de uma dignidade antiga que foi perdida por causa de sua atual
frágil condição, decorrente de uma brusca alteração de sua relação com Deus
como Criador. O fracasso do homem em se
manter ligado a Deus, por causa de seu pretenso desejo por autonomia, resultou
em um distanciamento, a que chamamos pecado.
Por causa da doutrina da
"queda" a inteligência cristã desconfia de estruturas humanas e de
qualquer teoria que alegue um "purismo" humano, como propunha a
antropologia de Jaques Rosseau.
Obviamente, todos os sistemas filosóficos, sejam os de implicações
políticas ou econômicas, pautadas em um suposto "poder autônomo" da
natureza humana, são tratados criticamente pelo cristão. A visão de homem do cristão, o que se chama
antropologia, é que ele foi criado a imagem de Deus (imago Dei), mas hoje,
encontra-se disforme em relação a sua dignidade original. Por esta razão, ele carece de redenção, d
graça e providência, para ter restituída sua condição primeira.
Se por um lado, a
inteligência cristã considera a dignidade do homem e da criação, por outro, não
ignora uma "antítese", uma "tensão", no cerne da criação, o
qual é o homem mesmo e suas pretensas iniciativas. O que também não significa ignorar alguma
dignidade na produção cultural humana, afinal, o mundo ainda tem alguma
"estabilidade", por causa do compromisso escatológico de Deus, de
trazer a humanidade de volta pra casa (redenção/resgate).
c. redenção: esperança
cristã
Se a doutrina cristã for
reduzida apenas a uma visão de "queda", consequentemente, isto
resultaria em uma inteligência pessimista e cínica. Como dito, em algum
sentido, o cristão não cria muitas expectativas quanto aos projetos
não-cristãos de civilização, mas, mesmo assim, entende que seu lugar é aí no
que chamam de "projeto civilizatório". Tome por exemplo, o profeta Daniel, que
exerceu sua vocação na côrte babilônica, sem se deixar absorver por aquela
cultura.
O cristão opera como um
agente de esperança, engaja-se na instauração de jardins de graça em uma cidade
cinzenta, sem cor. O cristão pauta sua
existência na eficácia da obra que Jesus Cristo realizou em seu sacrifício, a
imagem mais assombrosa e mais sóbria dos planos de Deus para a humanidade.
Jesus é chamado de segundo Adão (Romanos cap. 5), Ele é o Homem, a fonte e o
fator de humanização. O cristão é um
homem arrependido, que reconheceu sua precariedade e distância, e que se volta
em "mudança de mente" (gr. metanóia - arrependimento) e com fé no
mistério e evento chamado Jesus Cristo.
A fé cristã é cristocêntrica e pauta-se em uma inteligência
"cruciforme", no formato da cruz, no sentido que ela opera pela
eficácia da cruz ("já"), mas aguarda a concretização no tempo e no
espaço do que já está consumado ("ainda não"). O "já, mas ainda não" remete
esteticamente as barras verticais e horizontais da cruz. O cristianismo não tem problemas com
paradoxos.
A inteligência cristã não
deve ser triunfalista, a doutrina da queda não permite muita confiança em
projetos de dominação. Porém, por outro
lado, entende que deve sinalizar um Reino prestes a vir, antecipa-o
parcialmente, para que o mundo tenha esperança naquele que há de vir. Por causa desta esperança e esta antecipação
escatológica, opera no mundo, como que se vivesse no outro, naquele redimido e
novo (Ap. 21). O impacto desta crença na
ação cultural do cristão é singular. Ele
vai ao laboratório, à universidade, à rotina do trabalho e do dia-a-dia, portando
as ferramentas dispostas nas Escrituras e na longa experiência cristã, de modo
a testemunhar Jesus e manifestar seu Reino de amor. O anúncio do Evangelho dá-se por uma ação que
comunica o triunfo de Cristo sobre a morte.
Sabedoria: não-racionalista,
não-sentimentalista e não-ativista
A vida cristã orbita em um
tripé, estruturado sobre os seguintes princípios:
1. ortodoxia: uma
preocupação constante pela crença ou doutrina correta
2. ortopatia:
sentimento ou sensações corretas
3. ortopraxia: comportamento
ou ação correta
Agora, veja bem, se um
cristão se concentra em algum destes aspectos, ele estará se distanciando da
inteligência cristã. Se concentrar muito
de sua vida apenas ao "pensamento crítico", em uma "mentalidade
cristã", ou em um zelo "lógico", se esquecendo que sua vocação
também é para ter sua afeição (ortopatia) e vida prática (ortopraxia) sob o
governo de Cristo, logo, se tornará um formalista árido. Da mesma forma, se um cristão, se preocupa
apenas em se "sentir bem" ou vive em busca de um conforto
"sentimental", cairá no sentimentalismo, em uma busca frenética por
"sensações" e "experiências religiosas". E finalmente, se um cristão preza
excessivamente pela "prática", "ações" e "obras",
ignorando que tais ações precisam ser pautadas em uma vida com sentimentos e
crenças bem alinhadas à vontade de Deus, cairá em um ativismo alienante ou em
um tipo de legalismo.
Quanto mais equilibrados
sobre estes três princípios, mais próximo o cristão estará de uma inteligência
cristã. Ele não será um racionalista,
mas procura organizar suas crenças e sua forma de pensar a partir das
Escrituras. Não será um sentimentalista,
pois procura submeter sua identidade e afeição aos critérios da revelação de
Deus em Cristo. E finalmente, não sendo legalista, se engaja em ação, obras e
obediências pautadas nos feitos da graça de Deus.
Mas, enfim, que nome se dá a
esta combinação entre ortodoxia, ortopatia e ortopraxia? Tenho uma sugestão: sabedoria. Sabedoria, na narrativa bíblica, refere-se a
uma vida em que pensamento, afeto e ação se integram formando um todo, que
projeta o cristão para uma existência que glorifique a Deus em Jesus
Cristo. Nestes termos, uma inteligência
cristã é fundamentalmente uma inteligência sapiencial, o que Doug Bloomberg, educador
reformacional, chamaria de "epistemologia sapiencial"(Blomberg,
2007).
ortodoxia
+ ortopatia + ortopraxia = sabedoria
Últimos
ditos...
Há outras características
que compõe uma inteligência cristã, como o comunitarismo, uma percepção
trinitária de Deus e da realidade, uma percepção da missão como uma tarefa
encarnacional e ainda uma compreensão das diversas esferas da realidade criada
por Deus.
Agora, que algumas pistas
sobre uma inteligência cristã foram apresentadas, pense nas implicações pedagógicas,
filosóficas e culturais, de um cristão que desenvolveu tal habilidade. Há diversos exemplos na história da fé cristã
de "gênios" que viveram a partir de uma inteligência cristã. Poderíamos, citar alguns deles, já sabendo
que alguns serão omitidos, uma inevitável injustiça. Porém, dentre os inteligentemente cristãos
estão: Paulo, Agostinho, Pascal, Calvino, Kuyper, Chesterton, C.S. Lewis e
muitos outros, que ficam aí como exemplo e inspiração para tal jornada.
Finalmente, é importante
reafirmar, que não basta cristãos inteligentes, se eles são cativos de
modalidades de inteligências que não correspondem aos fundamentos de sua
fé. Este cristão não fará qualquer
diferença, ele será como uma não-cristão em termos de envolvimento com a
cultura. Entretanto, se um cristão se
envolve criativamente com a integração entre sua crença e a vida, o testemunho
de um Cristo que é Senhor de todas coisas se tornará evidente. Em outras palavras, não basta ao cristão ser
inteligente, ele deve ser inteligentemente cristão.
Referências
Dooyeweerd, Herman. No
Crepúsculo do Pensamento. São Paulo: Hagnos, 2010.
Blomberg, Doug. Wisdom and
Curriculum: christian schooling after postmodernity. Sioux Center, Iowa: Dordt College Press:
2007.
Pearcey, Nancy. Total Truth:
liberating christianity from its cultural captivity. Wheaton, Illinois: Crossway Books, 2004.
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Fonte: blog Pensar