Por Thiago Oliveira
Recentemente deu-se uma
polêmica envolvendo o pastor batista Marcos Granconato, devido a um vídeo em
que o mesmo fala que Jesus não é onisciente quando se considerado as relações
intratrinitárias, limitando sua onisciência às relações extratrinitárias. Em
outras palavras, Granconato disse que Jesus só seria onisciente na relação da
Trindade com as coisas criadas, pois, segundo o mesmo diz em sua mensagem,
Deus-Pai guardou certas coisas apenas para si. Alguns o acusaram de heresia, já
outros foram mais brandos, discordando de sua posição, todavia não o chamando
de herege. O fato é que o Granconato foi infeliz em afirmações, ditas ao expor
o difícil texto de Mateus 24.36, que diz o seguinte: “Mas a respeito daquele dia e hora
ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão o Pai”. Mais à
frente voltarei a esse texto, mas antes gostaria de dizer o porquê considero o
ensino do Marcos Granconato perigoso.
Dizer que Deus-Pai guarda
coisas para si que não são reveladas ao Deus-Filho, inferioriza Jesus. Ele não poderia ser uma divindade da mesma
“estatura” do Pai, já que não seria onisciente por completo, sendo que a
onisciência é um atributo divino. Mas, a máxima cunhada por Tertuliano, que foi
reafirmada pela ortodoxia cristã diz “uma
substância, três pessoas”. Por substância, devemos entender que é o elo
incomum entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, no qual se baseia a unidade da
Trindade. É devido à substância ser a mesma que não ocorre uma divisão entre as
três pessoas da Deidade, gerando uma unidade na diversidade. Assim, Pai, Filho
e Espírito Santo desempenham papéis diferentes no plano de salvação (Trindade
econômica), sem que haja a perda dessa unidade.
Após Tertuliano, talvez
Agostinho de Hipona tenha sido o teólogo que mais contribuiu com a doutrina
trinitária, principalmente na tradição ocidental. Ele então afirma que não se
pode subordinar (ontologicamente) as pessoas da Trindade. Na eternidade eles são
iguais em atributos, poder e glória. Portanto, se afirmarmos, como fez o
Granconato, que Deus-Pai retém algum conhecimento para si, logo, caímos no
equívoco da subordinação eterna. Contudo, como defende Berkhof[1], a
natureza divina é indivisível, isto é, seus atributos estão presentes de
maneira igual entre todas as pessoas da Trindade. Franklin Ferreira até
recomenda rejeitarmos a prática de enumerar os membros da Deidade (e.g. Jesus é
a segunda pessoa da Trindade) e diz que a razão para não fazermos isso está na
indivisibilidade da natureza divina, inexistindo subordinação entre elas. Logo,
embora sendo três personas distintas,
elas não se somam[2].
Granconato, frente ao que
já foi exposto, ainda pode argumentar que isso não resolve a dificuldade
presente no texto de Mateus 24.36. O que é verdade. Mas o ponto aqui deveria
ser o seguinte: no afã de responder esse mistério, é válido prejudicar a
doutrina trinitariana? Pois, se a Trindade é o cerne da adoração cristã, não
podemos ter uma compreensão equivocada da mesma. Embora reconhecendo que o
assunto é complexo, podemos subir “nos ombros de gigantes” e falar sobre a
Trindade sem que a plena igualdade de seus membros seja distorcida. [3]
Para interpretarmos Mateus
24.36, a teoria da kenosis não seria
a melhor resposta, como alguns deram ao Granconato em debates nas redes
sociais. Pois, dizer que Cristo se esvazia, no sentido de deixar de ter seus
atributos, seria o mesmo que afirmar que ele não mais teria a substância que
concede unicidade à Trindade. O esvaziamento a que a Escritura se refere (vide
Fp 2.6-8) não é referente a atributos, mas sim a posição de Cristo, que sendo
igual a Deus-Pai em soberania e glória, encarna, e num estado de humilhação se
coloca em condição de subserviência.
Então, para sermos coerentes
com a doutrina reformada da unipersonalidade de Cristo, presente nas confissões
e catecismos, que dizem existir no Salvador duas naturezas, divina e humana, na
mesma pessoa, isto é, não são duas pessoas, mas apenas uma que comporta concomitantemente
o status divino-humano, devemos observar a contribuição do extra-calvinisticum[4].
A contribuição em questão, que foi o ponto de discordância entre calvinistas e
luteranos, diz, em suma, que os atributos divinos não devem ser limitados pela
encarnação. Embora haja completa divindade no Verbo encarnado, pois a natureza
divina se uniu a natureza humana numa mesma pessoa, seus atributos não estão
confinados na carne, eles estão presentes dentro e fora do corpo de Cristo. Por
isso que quando Cristo morre na cruz, a divindade não morreu, pois, a natureza
divina não participa da fraqueza humana. Assim como também, as limitações da
natureza humana não alcançam os atributos divinos. Por isso que Cristo foi
limitado circunstancialmente, mesmo que na sua eterna essência ele nunca tenha
deixado de lado a sua onisciência. Esta é uma posição que se enquadra com os
postulados de Calcedônia e que faz jus ao fato de Cristo responder que não
sabia o futuro, todavia sem deixar de ser onisciente.
Para ficar mais claro,
tomemos outro atributo como exemplo: a onipresença. Quando Jesus, em sua forma
corpórea deslocava-se de um lugar para o outro, não seria ele, como membro da
Trindade, um ser onipresente? O conceito
extra-calvinisticum vai dizer que
mesmo ele ascendendo aos céus corporalmente, e estando à destra do Pai, se faz
presente na ceia. Logo, a encarnação não pode delimitar a divindade de Cristo.
Vejamos o que nos diz o Catecismo de Heidelberg:
Pergunta 47- “Mas não está Cristo conosco até o
fim do mundo, como nos prometeu?”
Resposta - “Cristo é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem; quanto à sua natureza humana, agora já não está na terra;
mas, quanto à sua divindade, majestade, graça e espírito, em nenhum momento
está ausente de nós.”
Pergunta 48 – “Se a sua humanidade não está onde
quer que esteja a sua divindade, então não estão as duas naturezas de Cristo
separadas uma da outra?”
Resposta - “Certamente não. Visto que a
divindade não está limitada e está presente em toda parte, fica evidente que a
divindade de Cristo está certamente além dos limites da humanidade que ele
tomou, mas ao mesmo tempo sua divindade está em e pessoalmente permanece unida
à sua humanidade.”
Como bem observa o Dr.
Heber Campos[5]
“Segundo o pensamento reformado, o Logos
está no Cristo total, mas a natureza divina do Logos extrapola os limites
físicos da natureza humana”. Pois, o infinito não cabe no finito. Se esta
não é uma resposta totalmente
satisfatória, é de longe a melhor resposta para lhe dar com a
dificuldade em questão, pelo simples fato de não trazer prejuízo a cristologia,
e nem desembocar numa concepção equivocada da Trindade.
Concluo dizendo que entendo
a complexidade do assunto e que todo teólogo está sujeito a dar suas
“escorregadas”. O pastor Marcos Granconato é alguém teologicamente gabaritado e
que possui anos e anos de labor ministerial, contudo, não está imune aos erros.
No entanto, acredito que ele tenha escolhido muito mal a sua resposta frente a
uma questão difícil. Talvez, diante da dificuldade de expor o texto, seria
melhor apenas dizer que a questão da união hipostática é um mistério inefável,
para usar palavras do próprio Calvino. E não negar a ontológica onisciência do
divino Logos, como preferiu. Não apenas por sua imagem, mas por zelo pela sã
doutrina, cairia bem uma revisão de sua concepção, reconhecendo que seu ensino abre
um precedente muito perigoso que pode resultar em noções heréticas da doutrina
trinitária.
***
P.S. Gostaria de
esclarecer três coisas: A primeira delas é que optei por fazer um texto breve,
por achar mais propício devido à densidade do assunto. A segunda é que o Granconato é um irmão em Cristo, não o trato como um adversário. E por fim, não
tenho a mínima intenção de gerar um debate cheio de desdobramentos, portanto,
esse texto será o único em que exponho o que outros autores já expuseram com
maestria. Destaco aqui o Dr. Heber Campos e suas obras sobre a união hipostática das naturezas de Cristo.
[1]
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Ed. Cultura Cristã,
p.84.
[2]
Franklin Ferreira usa como referência a obra de Basílio
de Cesaréia para defender a plena igualdade entre a trindade. Veja em: https://www.youtube.com/watch?v=bfmLE6SjpLI.
[3]
Mesmo havendo alguns teólogos renomados que defendem uma
subordinação ontológica, como o Wayne Grudem e Bruce Ware,
isso não pode ser tomado como argumento favorável. John
Stott, um dos mais eminentes e profícuos teólogos do século XX, defendeu o aniquilacionismo, e
nem por isso a ideia ortodoxa do castigo eterno foi flexibilizada apenas porque
o Stott ensinou o oposto.
[4] Um
ótimo
texto sobre o Extra-Calvinisticum escrito
pelo Rev. Alan Rennê Alexandrino está disponível
em http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=370.
[5]
CAMPOS, Heber Carlos de. A União das Naturezas do Redentor. Ed. Cultura
Cristã, p.284.
Acredito que ele se referia a Jesus naquele tempo, antes de ser crucificado. Sendo assim, faz todo o sentido a posição dele.
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