Introdução
O mais recente livro do teólogo e pastor Franklin Ferreira é
uma obra de teoria política sob o viés bíblico-teológico. Seu título é Contra a
Idolatria do Estado – O papel do cristão na política. O livro é editado por
Edições Vida Nova, possui um número total de 280 páginas e foi lançado em Março
do presente ano. Recebeu o endosso de renomados teólogos, como Solano Portela e
Jonas Madureira, além de nomes como o da jornalista e âncora do principal
telejornal do SBT, Rachel Sheherazade e do escritor e filósofo Luiz Felipe
Pondé, que se denomina uma pessoa não agraciada com o dom da fé, ou
seja, não é um cristão professo. Em seu endosso, Pondé escreve o seguinte: “O
livro do Franklin Ferreira é exemplo de como a teologia pode dialogar com o
pensamento político sem ter vergonha de dizer quem é, coisa rara hoje em dia”.
O livro apresenta a seguinte estrutura: Agradecimentos,
Introdução e 8 capítulos divididos em 4 seções. Por fim, a Declaração Teológica
de Barmen é colocada como apêndice. O conteúdo e o contexto histórico da
declaração supracitada são trabalhados dentro dos capítulos, todavia, é
publicada na íntegra após o capítulo que conclui a obra. Deixando de lado a
introdução e o apêndice, esta resenha, em sua abordagem, contemplará apenas a
substância dos capítulos desenvolvidos por Ferreira.
Primeira Parte:
Fundamentos Bíblicos
Iniciando o livro com a história de Ester no Capítulo 1,
Ferreira tenciona que a angústia do povo judeu, sob a ameaça do extermínio, e a
atuação política de Ester e Mardoqueu para evitá-lo sirva de exemplo para a
atuação política dos cristãos no momento crítico de nossa conjuntura sociopolítica.
Ferreira destaca a oração e a dependência à Deus como características
indeléveis do cristão que anseia atuar no serviço político. Para o autor, líderes que
tenham as qualidades de servo, que sejam encorajadores e visionários devem
compor a equipe do político cristão para bem assessorá-lo e ajudá-lo na
construção de projetos que sejam agentes de transformação social.
Ferreira também argumenta que o conhecimento de diversas
disciplinas acadêmicas é de muita utilidade para que o político cristão
desenvolva uma cosmovisão robusta o suficiente para identificar os pressupostos
filosóficos (e também religiosos) e assim, responder satisfatoriamente a sociedade,
sem deixar de lado a sua base cristã. O autor parece endossar o
conceito habersiano[2] da tradução cooperativa dos termos religiosos. Em suma,
trata-se de tornar acessível os argumentos que mesmo oriundos de um credo,
seriam transmitidos a uma sociedade plural através de uma linguagem
desvinculada da terminologia religiosa. Ferreira nos lembra de que o livro de Ester
não cita em nenhum momento o nome de Deus e sugere, a partir de uma explicação
secundária, que a ausência nos remete a ideia de que a linguagem da fé não
precisa e nem deve estar presente no âmbito das esferas políticas.[3]
No segundo capítulo, há uma interpretação política da Carta
aos Romanos, interpretação que sofre uma influência direta do teólogo alemão
Karl Barth. É um capítulo muito rico que demonstra o quanto que a mensagem do
Evangelho confronta o culto a personalidade política. Nele somos informados que
em nenhum momento o termo “poder” é usado para designar as autoridades
governamentais. Apenas Cristo é o detentor do poder e, por isso, toda e qualquer
autoridade política está debaixo do seu senhorio. Para Ferreira, embasado em
outros comentaristas, o conteúdo da epístola paulina traz em seu bojo uma
teologia subversiva, negando aos imperadores de Roma a deificação. A mensagem
da carta é, em resumo, um encorajamento para que os crentes romanos mantenham a
sua devoção exclusivamente à pessoa de Cristo e sejam leais ao evangelho.
É ainda no segundo capítulo que a passagem de Romanos 13.1-7
é analisada. Esta passagem foi e é vista por muitos como uma orientação
conformista, pois, indica que os cristãos devem obedecer as autoridades, que
são designadas por Deus. Acontece - como Ferreira bem demonstra - que a
obediência é um dever desde que a autoridade seja legítima. O cristão fica
desobrigado a obedecer a um governo que desconsiderou a designação divina da
sua função. Quando uma ordem governamental entra em conflito com uma ordem
de Deus, ou quando não exerce sua autoridade para cumprir o propósito de punir o
mal e recompensar os que fazem o bem (Rm 13.3), cumpre ao cristão desobedecer
tal governo. Assim sendo, diante do contexto em que a carta foi escrita, em que
havia o culto ao Imperador, os verdadeiros cristãos foram martirizados por não
sacramentar o poder de César e não reconhecer outro Senhor que não fosse Cristo
Jesus.
Segunda Parte:
Questões Conceituais
Esta seção é polêmica por questionar alguns conceitos
repetidos alhures pela opinião pública. Uma das principais polêmicas é traçar
um comparativo entre o nazismo e o comunismo, pois, para muitos o nazismo é
conceituado como sendo conservador e de direita. Ferreira vai de encontro a esta
concepção afirmando que os regimes totalitários sob a tutela de Stalin e
Hitler, que respectivamente governavam a extinta União Soviética e a Alemanha,
tratam-se de “irmãos gêmeos heterozigotos”. O autor se baseia em autores como João Pereira Coutinho e Hannah Aredent, citando apenas duas de um variado
leque de outras fontes, para fundamentar o seu argumento. Este é o mote do
excelente terceiro capítulo.
Tratando da divisão esquerda-direita, o capítulo seguinte
traz uma apologia clara ao modelo político que tem por base a democracia e uma
economia liberal, ideologia que ainda não é popular no Brasil, visto que - com
a exceção do partido Novo - recém-criado, todas as outras legendas partidárias
são de esquerda ou centro, isto é, em maior ou menor grau pregam uma
regulamentação Estatal. Ferreira classifica a esquerda como sendo um modelo
onde o Estado se agiganta, transcendendo a esfera que lhe é de direito
governar. Ele continua demonstrando que a ideologia esquerdista e a sua
aplicação nos regimes comunistas são de pouca ou nenhuma liberdade individual.
Analisando o contexto político brasileiro, Ferreira conclui
que está arraigado no pensamento brasileiro um antiliberalismo, visto que todos
os governos desde a proclamação da república adotaram medidas protecionistas e
um Estado regulador. Aqui temos a idolatria estatal que é rechaçada logo no
título da obra, pois, é na ideologia esquerdista que o Estado adquire contornos
messiânicos. Ferreira salienta que a lealdade do cristão, assim como a sua esperança,
não pode ser colocada em nenhum sistema de governo ou ideologia política. Nossa
esperança e lealdade devem ser depositadas exclusivamente em Jesus Cristo.
Terceira Parte:
Direções Teológicas
O capítulo 5, que dá início a terceira parte do livro, é uma
recapitulação da “disputa pela igreja”, como ficou conhecido o embate entre os líderes
da Igreja Alemã, que estavam cedendo aos postulados nazistas e a tutela estatal
dentro das igrejas, e os teólogos e pastores que resistiram a esta interferência
e fundaram o que veio a ser chamado de Igreja Confessante. Dois nomes se
destacam entre os que resistiram, são eles o de Barth e o de Bonhoeffer, o
primeiro exilado e o segundo sentenciado a morte. Relatando nuances da disputa
e pinçando trechos da Declaração de Barmen que denunciou e repudiou a síntese
entre o evangelho e a ideologia nazista, o objetivo do autor neste capítulo é
demonstrar que a integridade do conteúdo da fé cristã é inegociável. Nem mesmo
a unidade da igreja pode ser dada como desculpa para tolerar a falsa doutrina.
Os pastores que aderiram a Igreja Confessante foram acusados de causar divisão
na igreja alemã, mas como Ferreira observa, às vezes, é desta forma que a
Igreja é purificada, através da perseguição. O capítulo é encerrado com um trecho da Declaração de Culpa de
Stuttgart, em que os líderes da reconstruída Igreja da Alemanha reconhecem que
erraram por não terem sido mais combativos contra o regime de Adolf Hitler.
Já o capítulo 6 endossa a perspectiva reformada da Soberania
das Esferas, conceito desenvolvido pelo teólogo, jornalista e politico holandês
Abraham Kuyper. Após analisar criticamente a visão dos “Dois Reinos”, comum
entre os luteranos, e a perspectiva dispensacionalista, Ferreira passa a tratar
da concepção reformada que pode ser esboçada através do seguinte gráfico:
Como pode ser visto, Deus transcende toda instituição
terrena, que tem a sua autoridade subsidiada nEle. Não há nenhuma esfera que
teve o seu poder derivado de outra. Todas derivam de Deus e tem uma área de
influência delimitada, apesar de serem interligadas, elas não estão submissas a
nenhuma outra, são autônomas entre si. A soberania derradeira que abarca todas as esferas pertence
somente a Deus.
Concluída a exposição do conceito
kuyperiano da Soberania das Esferas, Ferreira diz que os valores republicanos
estão historicamente vinculados aos cristãos, que os defendem por ver neles
concordância com o ethos do cristianismo. Esta conclusão é obtida
através de inferências da Escritura.
Quarta Parte: Aplicações Práticas
Chegando aos dois capítulos que
encerram a obra, lemos sobre a ineficiência estatal, sobretudo do governo
petista em zelar pela segurança dos cidadãos brasileiros. Ferreira nos mostra
números alarmantes do aumento da violência. Ele critica os altos impostos que não
são revertidos para a segurança e nem para o deleite da sociedade. Outra
questão bastante criticada é a ideologização promovida pela esquerda no debate
sobre a violência. Ao dizer que o bandido é vítima da sociedade, esta ideologia
vitimiza o criminoso ao invés de puni-lo. Ferreira expõe a deficiência do
sistema prisional brasileiro e a instrumentalização dos Direitos Humanos pela intelligentsia
a serviço do Estado.
E qual seria a atuação da igreja
frente ao aumento da violência? Ferreira sugere que ela ore e que permaneça fiel
a pregação expositiva das Escrituras, pois esta gera vida e é marca da igreja
verdadeira. O livro é finalizado com dez pontos elencados a respeito de uma
agenda cristã para um voto consciente.
Considerações Finais
Contra a Idolatria do Estado é leitura que deveria ser
cobrada a todo pastor. O livro deveria ser endossado nos seminários, pois,
temos uma carência no segmento cristão evangélico brasileiro referente a uma
visão política que esteja embasada numa cosmovisão escriturística. A obra é
bíblica, mas não apenas isso, ela é riquíssima em matéria de referencial
teórico. Ferreira se apoia em diversos autores e fontes, colocando a teologia no
cerne da esfera pública. São 19 páginas de bibliografia, demonstrando a
profundidade da pesquisa realizada pelo autor.
A obra também se destaca por não
ter equivalentes. Até então, nenhum teólogo brasileiro havia se lançado a
escrever um livro sobre política tecendo críticas pontuais direcionadas a um
governo ainda vigente e defendendo um modelo político-econômico que fosse liberal[4].
Embora existam alguns artigos em periódicos e na blogosfera, nada que se
compare a proposta da obra de Ferreira, que preenche uma lacuna de nossa
literatura teológica. É importante que mais teólogos lancem luz a este tema, produzindo
outros escritos que sirvam de referência para a construção de uma cosmovisão
cristã no âmbito político.
Àqueles que não têm familiaridade
com obras políticas podem ler Contra a Idolatria do Estado, fazendo
desta obra uma introdução ao assunto. Embora existam conceituações que possam
parecer estranhas ao leitor primário, Ferreira preocupou-se em estruturar o
livro de uma maneira bem didática, permitindo aos iniciantes nos estudos da
política adquirirem uma compreensão geral de seu argumento basilar.
[1]
Thiago Oliveira é pastor da Igreja Evangélica Livre em Itapuama-PE. Graduado em
História pela Fundação de Ensino Superior de Olinda com especialização em
Ciência Política. É casado com Samanta Oliveira.
[2]
Termo derivado do nome do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, que
dedicou a sua vida a estudar a democracia e desenvolveu em suas obras o
conceito de “Esfera Pública”.
[3] A
explicação primária para a ausência do nome de Deus no livro de Ester seria o nível de assimilação cultural. Ester e Mardoqueu
representam uma parte dos judeus que preferiram continuar vivendo no centro da
Pérsia ao invés de regressar a Jerusalém nos tempos de Ciro II, que era avô do
rei Xerxes, o governante que desposou Ester.
[4]
É preciso entender que liberal neste caso significa a posição que defende as
liberdades individuais e o mínimo de interferência estatal, não tendo nenhuma
relação com o liberalismo teológico e nem se referindo à frouxidão dos padrões
morais bíblicos.