Por Leandro Lima
Há algum tempo, tenho recebido diversos pedidos
para escrever algo a respeito deste tema, principalmente, porque muitos sabem
minha posição a respeito, e não poucos a acham estranha, sendo justo, portanto,
dar algumas explicações.
A seguir, vou expor em poucas linhas o que entendo
desse assunto, porém, antes gostaria de fazer algumas ressalvas. Esse não é um
assunto essencial para a fé cristã ou reformada. Não é um assunto que se
deveria criar grandes polêmicas em cima dele, afinal, ninguém vai ganhar nada
(ou perder) se conseguir provar ou deixar de provar sua própria posição.
Portanto, os interessados deveriam apenas ler os argumentos desta ou daquela
posição, e reter o que é bom. Mesmo se achar que não há nada de bom para reter,
é um direito. Qualquer tipo de disputa, nesse sentido, acaba sendo prejudicial
à causa de Cristo, pois expõe nossas divisões entre os incrédulos, impedindo-os
de crer que Jesus é o enviado do Pai (Jo 17.21).
Uma vez que, efetivamente, acredito que alguns anjos caídos
se relacionaram com as mulheres em Gênesis 6, vou apenas expor meus argumentos
a seguir, sem me preocupar em expor a outra posição, a qual advoguei por
bastante tempo, mas hoje, não consigo mais defendê-la, por estar convencido de
que a evidência bíblica é majoritariamente contrária a ela.
Inicialmente, deve ser dito que a simples leitura
de Gênesis 6, não é suficiente para definir a posição:
"Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas, vendo os
filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si
mulheres, as que, entre todas, mais lhes agradaram”. (Gn 6.1-2)
Em si mesma, a passagem poderia ser aplicada
naturalmente à mistura de raças, ou seja, que os descendentes de Sete se
casaram com as descendentes de Caim. Porém, desde os tempos antigos, os rabinos
judeus tiveram dificuldades de aceitar essa posição, e um dos motivos era o
fato de apenas “homens" da descendência de Sete, se casarem com
“mulheres" da descendência de Caim. Por que não vice e versa? Mas, claro,
isso não resolve a questão. Porém, os rabinos notaram que no Antigo Testamento,
em nenhum lugar o termo “filhos de Deus” é aplicado diretamente aos homens. Na
verdade, fora de Gênesis 6, o termo só aparece no livro de Jó e no Salmo 29.1.
No livro de Jó, ele claramente é aplicado aos anjos, entre os quais estava
Satanás: "Num dia em
que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles”. No Salmo 29.1, o termo pode se aplicar também
aos anjos reunidos em assembléia celeste, porém, é impossível ter certeza
disso, pois o texto não explica quem são esses “filhos de Deus”. De qualquer
modo, a única referência explícita no Antigo Testamento do termo é para anjos.
Além disso, os rabinos estranharam o resultados daquela união: “Ora, naquele tempo havia gigantes na terra; e
também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens, as
quais lhes deram filhos; estes foram valentes, varões de renome, na antiguidade” (Gn 6.4). Esses gigantes ou "os nefilins” (הַנְּפִלִים), que é
o termo hebraico para “gigantes", parecem ser o resultado direto daqueles
casamentos impróprios. Provavelmente, o termo nefilim vem da raiz hebraica
“cair”, ou “caído”.
Porém, como eu disse, até aqui, apesar de alguns
indícios interessantes, não se pode fechar a questão. Certamente alguém poderia dizer: o
simples fato dos rabinos judeus crerem que eram anjos não prova nada. É
verdade, eu diria, a menos que o Novo Testamento conceda apoio a essa
interpretação judaica. E o meu ponto é justamente esse: o Novo Testamento
confirma essa interpretação. Eu tentarei mostrar isso abaixo. Mas, antes,
precisaremos ver exatamente o que era que os judeus, especialmente os da
tradição apocalíptica, acreditavam. Há três livros judaicos que mencionam o
fato. O livro dos Jubileus, o Testamento dos Doze Patriarcas, e o Livro de
Enoque. Menções também aparecem no Documento de Damasco, no livro do
Eclesiástico, em 3Macabeus, e em fragmentos dos manuscritos do Mar Morto. Todos
foram escritos entres os séculos um e dois antes de Cristo. Esses livros
judaicos interpretam que anjos, chamados de guardiões, se relacionaram com as
mulheres, gerando gigantes demoníacos, os quais foram exterminados no dilúvio.
A questão é a seguinte: essa interpretação era amplamente conhecida nos dias de
Jesus e do Novo Testamento, como as provas documentais atestam. Se ela
estivesse errada, o Novo Testamento deveria condená-la de alguma maneira.
Porém, não só o Novo Testamento não a condena, como a aprova, em pelo menos
quatro livros, que são as duas cartas de Pedro, a carta de Judas, e
indiretamente também no livro do Apocalipse.
Todos esses livros mencionam “anjos em prisão” (1Pe 3.18-20, 2Pe 2.4, Jd
6, Ap 9). A questão é: de onde vem esse conceito de anjos em prisão que todos
esses textos mencionam? E a resposta única é: daqueles livros apócrifos
mencionados acima. Isso é algo literariamente comprovado. O autor da carta de
Judas cita explicitamente o livro de Primeira Enoque, que é o principal livro
da tradição apocalíptica judaica que defende o relacionamento dos anjos caídos
com as mulheres: “Quanto a
estes foi que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que veio o Senhor entre suas santas
miríades, para exercer juízo contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as
obras ímpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes
que ímpios pecadores proferiram contra ele” (Judas
14-15). Esse texto, que inclusive cita o nome de Enoque, está integralmente em
1Enoque 1.9: “Ele virá com milhares
de Santos, para exercer o julgamento sobre o mundo inteiro e aniquilar todos os
malfeitores, reprimir toda carne pelas más ações tão
iniquamente perpetradas e pelas palavras arrogantes que os pecadores
insolentemente proferiram contra Ele”. Apesar dos esforço de alguns intérpretes de
dissociar os dois textos, uma olhada nos dois textos gregos
mostra que Judas citou, embora de forma relativamente livre, o texto do livro de 1Enoque. Mesmo que você não leia grego, pode ver a
semelhança das palavras correspondentes entre os dois textos:
1) Judas 14-15: Ἰδοὺ ἦλθεν κύριος ἐν ἁγίαις μυριάσιν αὐτοῦ, 15 ποιῆσαι κρίσιν κατὰ πάντων καὶ ἐλέγξαι ⸂πάντας τοὺς ἀσεβεῖς⸃ περὶ πάντων τῶν ἔργων ἀσεβείας αὐτῶν ὧν ἠσέβησαν καὶ περὶ πάντων τῶν σκληρῶν ὧν ἐλάλησαν κατʼ αὐτοῦ ἁμαρτωλοὶ ἀσεβεῖς.
2) 1 En 1.9: Ὅτι ἔρχεται σὺν ταῖς μυριάσιν [αὐτοῦ καὶ τοῖς] ἁγίοις αὐτοῦ, ποιῆσαι κρίσιν κατὰ πάντων, καὶ ἀπολέσαι πάντας
τοὺς ἀσεβεῖς, καὶ (ἐ)λέγξαι πᾶσαν σάρκα περὶ πάντων ἔργων τῆς ἀσεβείας αὐτῶν ὧν ἠσέβησαν καὶ σκληρῶν ὧν ἐλάλησαν λόγων κατʼ αὐτοῦ ἁμαρτωλοὶ ἀσεβεῖς.
É inútil tentar fechar os olhos para essa evidência. Judas citou mesmo o
livro apócrifo de 1Enoque. E, praticamente, todos os judeus dos tempos em que o Novo Testamento foi escrito, conheciam aquele livro. Então, preste atenção: Judas claramente conhece o Livro de 1Enoque, pois
o está citando literalmente, e o tal livro fala do relacionamento dos anjos com
as mulheres, então, o que Judas tem a dizer a respeito? Não seria a excelente ocasião
para desmentir essa tão conhecida interpretação judaica, e colocar um fim a
esse equívoco de uma vez por todas?
Mas ele faz o contrário. Ele menciona o pecado dos anjos e cita
novamente o Livro de Enoque diversas vezes para confirmar isso:
"5 Quero,
pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo uma vez por todas, que
o Senhor, tendo libertado um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu,
depois, os que não creram; 6 e a anjos, os que não guardaram o seu estado
original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas
eternas, para o juízo do grande Dia; 7 como Sodoma, e Gomorra, e as cidades circunvizinhas,
que, havendo-se entregado à prostituição como aqueles, seguindo após outra carne, são postas para exemplo do fogo
eterno, sofrendo punição”. (Judas 5-7).
Veja que ele está citando três maus exemplos no texto, de atitudes
condenáveis, lá do passado. O exemplo da geração que saiu do Egito, o exemplo dos anjos, e o
exemplo de Sodoma e Gomorra. Antes de entrar especificamente nos termos
aplicados aos anjos, veja que ele diz algo interessante ao mencionar o pecado
de Sodoma e Gomorra: “que, havendo-se entregado à prostituição como aqueles, seguindo após outra carne”. Quem são
esses “aqueles” que se entregaram à prostituição em termos semelhantes ao “ir
após outra carne” de Sodoma e Gomorra? Ora, ele só mencionou os dois exemplos
antes, o exemplo da geração que saiu do Egito, e o exemplo dos anjos que
pecaram. Então, precisa ser um desses dois grupos. “Aqueles" é um pronome
demonstrativo adjetival masculino plural. Nesse sentido, realmente poderia ser aplicado a
qualquer dos dois grupos anteriores, apesar de fazer mais sentido referir-se ao
grupo mais próximo já mencionado, que é exatamente o grupo dos anjos. E note
que o pecado da geração do Egito foi explicitamente mencionado acima:
“incredulidade”. Eles não creram que Deus poderia dar a terra de Canaã, pois
ficaram com medo dos povos que moravam lá. O pecado da geração do Egito não tem
relação com “prostituição" e “ir após outra carne”, pois o próprio Judas
disse que foi incredulidade, e o Pentateuco confirma isso. Alguns argumentam
que quando Moisés estava no Sinai, o povo lá embaixo se entregou à
prostituição. Isso é verdade, porém, isso não os impediu de entrar em Canaã,
pois Deus perdoou o pecado do povo. Eles não entraram em Canaã porque ficaram
com medo do relato dos espias. Foram incrédulos. E por causa disso, toda aquela
geração morreu no deserto. Somente Josué e Calebe entraram na terra. Então, o pecado da geração que saiu do Egito não
um "ir após outra carne", mas falta de fé. Por outro lado, o pecado dos anjos, ele não mencionou explicitamente.
Portanto, logicamente e exegeticamente, quando ele diz que “aqueles” se
prostituíram e foram após outra carne, ele está falando dos anjos, e explicando o pecado deles. O pecado do homossexualismo de Sodoma foi de fato um “ir após
outra carne”, pois foi algo contrário à natureza dos homens. Do mesmo modo, o
pecado dos anjos com as mulheres foi algo contrário à natureza angélica, uma espécie também de "ir após outra carne".
Esse pecado dos anjos é justamente o pecado que o Livro de Enoque
menciona, o livro que Judas está citando literalmente. Na verdade, e agora avançamos
ainda mais nessa compreensão, cada uma das palavras usadas por Judas para
descrever a transgressão dos anjos no verso 6 são encontradas no Livro de
Enoque. Abaixo destaco as principais palavras e os temas correspondentes que
aparecem no Livro de Enoque, tanto em português quanto em grego:
3) Judas 6 - e a anjos, os que não guardaram o seu estado
original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas
eternas, para o juízo do grande Dia — ἀγγέλους τε τοὺς μὴ τηρήσαντας τὴν ἑαυτῶν ἀρχὴν ἀλλὰ ἀπολιπόντας τὸ ἴδιον οἰκητήριον εἰς κρίσιν μεγάλης ἡμέρας δεσμοῖς ἀϊδίοις ὑπὸ ζόφον τετήρηκεν·
4) 1 En 10.12: (amarra-os por sete gerações nos vales da terra, até o dia do seu julgamento, até o dia do Juízo Final!) — δῆσοναὐτοὺς ἑβδομήκοντα γενεὰς εἰς τὰς νάπας τῆς γῆς μέχρι ἡμέρας κρίσεως αὐτῶν καὶ συντελεσμοῦ, ἕως τελεσθῇ τὸ κρίμα τοῦ αἰῶνος τῶν αἰώνων
5) 1 En
12.4 (Escriba da Justiça, vai e anuncia aos Guardiões do céu que perderam as alturas do paraíso e os lugares santos e eternos) — “ὁ γραμματεὺς τῆς δικαιοσύνης Πορεύου καὶ εἰπὲ τοῖς ἐγρηγόροις τοῦ οὐρανοῦ οἵτινες ἀπολιπόντες τὸν οὐρανὸν τὸν ὑψηλόν
6) 1 En 14.5: (Daqui por diante nunca mais havereis de subir ao
céu; mas foi determinado que sejais acorrentados aqui
na terra por todos os tempos) —— *ἵνα μηκέτι εἰς τὸν οὐρανὸν ἀναβῆτε ἐπὶ πάντας τοὺς αἰῶνας, καὶ *ἐν τοῖς δεσμοῖς τῆς γῆς ἐρρέθη δῆσαι ὑμᾶς εἰς πάσας τὰς γενεὰς τοῦ αἰῶνος”
7) 1 En 15.3 (Por que motivo abandonastes o alto do céu, santo e eterno) — “διὰ τί ἀπελίπετε τὸν οὐρανὸν τὸν ὑψηλὸν τὸν ἅγιον τοῦ αἰῶνος”
8) 1 En 15.7 (Por isso eu não criei para
vós mulheres, pois os espíritos do céu possuem no céu a sua morada) — “καὶ διὰ τοῦτο οὐκ ἐποίησα ἐν ὑμῖν θηλείας· τὰ πνεύμα(τα) τοῦ οὐρανοῦ, ἐν τῷ οὐρανῷ ἡ κατοίκησις αὐτῶν”.
Ou seja, claramente o conceito de anjos que abandonaram sua morada
celeste, e agora estão aprisionados, por terem pecado, é um conceito explícito do
Livro de Enoque. Neste livro, é defendido abertamente que esse pecado foi o
relacionamento deles com as mulheres em Gênesis 6. Novamente deve ser dito, se Judas
entendesse que isso estava errado, uma vez que citou o referido livro, ele tinha a obrigação de esclarecer
seus leitores de que aquela história era falsa. Mas, não apenas ele não faz
isso, como claramente confirma a história!
Isso não significa que Judas considerasse o livro de Primeira Enoque
inspirado, nem que tudo o que está escrito no referido livro seja verdade, mas
deve ser entendido que aquela parte do livro de Enoque era verdade porque é
verdade de Deus, independente da fonte. Se alguém disser que, então, Judas
citou uma mentira, pois a frase é do falso Enoque e não do verdadeiro, em
resposta podemos dizer que a frase talvez seja do Enoque verdadeiro, mas que
foi preservada até ser
escrita no livro de 1Enoque
através da tradição oral. De qualquer modo, temos um autor do Novo Testamento,
inspirado pelo Espírito Santo, confirmando essa parte do ensino do Livro de
Enoque. Precisamos aceitar, portanto, que essa parte é verdadeira, ou rejeitarmos a carta de Judas.
Na verdade, a própria estrutura que Judas usa, de citar os três exemplos
do passado, ou seja, geração do Egito, geração de Sodoma, e anjos do dilúvio,
segue um padrão que pode ser encontrado em vários outros livros (Cairo Damascus (CD–A Col. ii:13); Eclesiástico 16.7-10, 3Mac
2.4-7, Testamento de Naftali 3.4–5, m. Sanhedrin 10:3). E nesses livros, reconhece-se que o pecado dos
anjos é o relacionamento com as mulheres. Como Judas poderia usar a mesma estrutura
amplamente conhecida pelos judeus se quisesse provar algo diferente, sem
mostrar que estava querendo provar algo diferente?
Mas não adiantaria tirar Judas do Cânon. O Apóstolo Pedro confirma o ensinamento de Judas e do Livro de Enoque sobre
anjos em prisão também usando termos do livro de Enoque, e ainda por cima
parece ligar o fato diretamente com o dilúvio: "Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram,
antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas,
reservando-os para juízo; e não poupou o mundo antigo, mas preservou a Noé, pregador da justiça, e mais sete pessoas, quando fez vir o dilúvio sobre o mundo deímpios” (2Pe 2.4-5). Quando o autor diz que Deus “não poupou aqueles anjos”,
ele está fazendo uma menção direta ao fato de que, apesar daqueles anjos terem
pedido clemência e misericórdia no referido livro, Deus não os poupou e os
aprisionou no abismo. Veja essa
parte daquele livro: "Enoque, tu, o Escriba da Justiça, vai e anuncia aos Guardiões do céu que perderam as alturas do paraíso e os lugares santos e eternos, que se
corromperam com mulheres à moda dos
homens, que se casaram com elas, produzindo assim grande desgraça sobre a
terra; anuncia-lhes: `Não encontrareis nem paz nem perdão'. Da mesma forma como
se alegram com seus filhos, presenciarão também o massacre dos seus queridos, e suspirarão com a sua desgraça. Eles
suplicarão sem cessar, mas não obterão nem clemência nem paz!" (1Enoque
12). Várias vezes no livro, é mencionado que Deus não concederia clemência e
que eles seriam aprisionados em abismos de trevas.
E na primeira carta, Pedro
mencionou explicitamente que os “espíritos em prisão” foram aqueles que pecaram
nos dias do dilúvio: "no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais,
noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos
dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos,
a saber, oito pessoas, foram salvos, através daágua” (1Pe 3.19-20). O texto
está dizendo que Jesus, após sua ressurreição, no poder do Espírito, foi até
esse lugar de prisão, e proclamou sua vitória sobre aqueles espíritos que,
noutro tempo, ou seja, no passado, foram desobedientes, nos dias de Noé[1]. E após fazer isso, ele subiu
ao céu, deixando os principados e potestades debaixo de seus pés (1Pe 3.22).
Isso fecha o cerco bíblico em torno do tema. O Novo Testamento está abertamente
apoiando a ideia de que o pecado dos anjos em Gênesis 6 foi o de se relacionar
com as mulheres. Não é sem motivo que, atualmente, a esmagadora maioria dos
comentaristas bíblicos sérios e conservadores, que escreveram comentários dos livros de Judas e
Pedro, para as mais conceituadas séries de comentários bíblicos atuais, não
hesitam em defender isso explicitamente. Exemplos são:
SCHREINER, T. R. (2003). 1, 2 Peter, Jude (Vol. 37, p. 336). Nashville: Broadman & Holman Publishers.
DAVIDS, P. H. (2006). The letters of 2 Peter and Jude (p. 49). Grand Rapids, MI: William B.
Eerdmans Pub. Co.
BAUCKHAM, R. J. (1998). 2 Peter, Jude (Vol. 50, p. 52). Dallas: Word, Incorporated.
KELLY, J. N. D. (1969). The
Epistles of Peter and of Jude (p. 256). London: Continuum.
Em último lugar, é preciso
notar que o único argumento efetivo usado contra a ideia é o que Jesus disse em
Lucas 20:35-36 "mas os que são havidos por
dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os mortos não casam,
nem se dão em casamento.Pois não podem mais morrer,
porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição”. Note que Jesus está
falando do futuro, quando os crentes ressuscitarem, e mesmo tendo corpos, não
se casarão mais. A questão, entretanto, não parece ser a impossibilidade de que
isso aconteça, mas o fato de que Deus decidiu que isso não deve acontecer. Assim, como nós hoje podemos nos casar,
mas no futuro não poderemos mais, aqueles anjos do passado desobedeceram, e fizeram
aquilo que não devia ser feito, e a partir de então, não podem mais fazer. Essa passagem,
portanto, ao contrário de contradizer o assunto, até mesmo o reforça, pois
chama os crentes ressuscitados de “iguais aos anjos, filhos de Deus”, o título dado a eles em Jó e em Gn 6.
Sobre a pergunta a respeito
de, se aquele pecado representa a queda original dos anjos, e, portanto, ela não
teria acontecido em Gênesis 3, deve ser notado que apenas Satanás é mencionado
em Gênesis 3, e nenhum outro anjo. De qualquer modo, entendo que o pecado dos
anjos no tempo do dilúvio não foi a queda original dos anjos, mas o
aprofundamento da mesma, por parte de alguns anjos
que já estavam seguindo Satanás em sua rebelião. Somente esses anjos foram aprisionados. Satanás mesmo, não
participou do pecado em Gn 6. Sobre se isso ainda pode acontecer hoje, a
resposta é: não. Deus lançou todos aqueles anjos no tártaro (2Pe 2.4), e
certamente estabeleceu uma proibição que impossibilita os anjos de fazerem isso
outra vez.
Não cabe aqui especular
qual foi a forma utilizada, se eles assumiram formas humanas, ou se possuíram
homens. Não temos nenhuma informação na Bíblia sobre como isso se deu, mas
sabemos que anjos podiam comer e exercer atividades físicas próprias de um
homem (Gn 18.7-8, Hb 13.2).
E, por fim, é interessante
lembrar que, aquilo que aqueles anjos caídos tentaram realizar, ou seja, unir a
natureza angélica à natureza humana, e que foi considerado abominável por Deus,
o próprio Jesus realizou de uma maneira sublime e santa: ele uniu a própria
natureza divina à natureza humana, tornando-se “Deus-homem”. Por isso, talvez,
após sua ressurreição, com o corpo glorificado, ele tenha ido aquele lugar de
prisão anunciar sua vitória sobre aqueles antigos anjos caídos.
[1] A interpretação de que
Jesus pregou em espírito, através de Noé, é forçada no texto. A estrutura
temporal da passagem não deixa dúvidas. Toda ela se desenvolve a partir dos
três grandes eventos redentivos realizados por Cristo: morte, ressurreição e
ascensão. Ele morreu na carne, mas foi vivificado em espírito, ou seja
ressuscitou (v. 18). Então, foi e pregou aos espíritos em prisão (v. 19). E
após isso, subiu ao céu na ascensão (v. 22). Os versos 20 e 21 são uma
digressão temporal, uma explicação do pecado daqueles espíritos em prisão, o
qual se deu nos dias de Noé. As marcações temporais da passagem, portanto, não
permitem outra interpretação.
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