A ética calvinista do trabalho.
Como toda ética do reformador, a ética
do trabalho baseira-se, portanto, na visão bíblica das realidades sociais. É
uma ética teológica, que pode confirmar, mas não necessariamente, a ética
natural, de uma humanidade atualmente desnaturada. A ética evangélica
destina-se a servir de referência aos seres humanos para ajudá-los a discernir
o bem do mal, porque bem e mal lhes são igualmente naturais, um como o outro.
A dignidade do trabalho humano, quando
em conformidade com o desígnio de Deus, atém-se ao fato de que é, de certa
forma, o prolongamento do trabalho que o próprio Deus empreende para a
manutenção de suas criaturas. É a resposta à vocação que este Deus lhes dirige para que
elas se utilizem das riquezas da criação, postas por ele, gratuitamente, à
disposição delas. A despeito dessa eminente dignidade, a obra humana permanece,
porém, obra profana. Não poderia aspirar à sua sagração. Quem a executa assume
toda a responsabilidade perante Deus e perante os homens.
Todavia, por causa de sua natureza
desnaturada, o homem despreocupa-se da glória de Deus e, por conseguinte, do
bem de seu próximo. Crê poder dispor de seu trabalho como bem lhe parece, de
forma autônoma e egoísta. Pode mesmo fazer dele seu Deus. E pensa,
naturalmente, que pode dispor igualmente, como bem lhe apraz, do trabalho
alheio e, particularmente, dos frutos do trabalho daqueles que por ele são
remunerados. Assim, desligado da ordem de Deus que lhe confere seu sentido e
sua dignidade, esse trabalho pode transformar-se em servidão, maldição, e
tornar-se, para si mesmo e para os outros, fonte de sofrimentos e lágrimas.
Degrada-se o ponto de não ser considerado mais que simples mercadoria, como o
destacarão os economistas do século XIX.
O que se faz mister, portanto, para que
o trabalho recupere seu sentido original? Urge que seja novamente considerado
como serviço e reconhecido como tal, com sua dignidade. E para tanto, faz-se
preciso que o homem restaure sua situação perante Deus. Faz-se necessário que
se associe de novo, pessoalmente, à obra espiritual que Deus persegue
incansavelmente no mundo, para o bem de todas as suas criaturas. E é preciso
que associe igualmente a essa obra divina seu próprio trabalho e o dos outros.
Paradoxalmente, para isso acontecer, o
homem deve parar momentaneamente de trabalhar, a fim de readquirir nova
comunhão com Deus. É necessário que silencie diante dele, para escutá-lo. Esse
é o significado do Deus (Gênesis, c. 20). É o dia da santificação, a saber, da
marcha espiritual, pela qual cada indivíduo é convidado a reencontrar sua
verdadeira identidade de criatura de Deus, motivada e estimulada por seu amor.
Assim, o repouso humano não possui
valor em si mesmo. Se proporciona ao trabalhador um descanso físico e
psicológico desejado, necessário, isso é uma feliz consequência, mas um efeito
secundário. Não é o reencontrar-se com Deus, com a comunidade dos crentes,
retornar às fontes e reencontrar, assim, o sentido da sua vida inteira, e
particularmente de seu trabalho. “Os fiéis”, escreve Calvino, “devem repousar
de seus próprios trabalhos, a fim de permitir que Deus opere neles.” E “agir é,
pois, aderir em todas as coisas à ação de Deus”.
Ora, essa tomada de posição do homem
diante de Deus só é possível pela mediação de Cristo. Para que reconquiste o
justo sentido de sua existência e de seu trabalho, o homem deve entrar na
comunhão com Deus pelo caminho que lhe abre Cristo. É necessário, pois, passar
pelo arrependimento e deixar-se santificar, restaurar, pelo espírito de Deus. E
essa santificação opera-se na comunidade dos fiéis, na comunhão com aqueles que
buscam em conjunto a renovação da sua existência. Assim, somente dessa forma o
trabalho cotidiano pode readquirir seu significado e reencontrar sua
qualificação. Só desse modo pode tornar a ser uma obra em conformidade com o
desígnio de Deus e restabelecer entre os homens relações sociais justas. Eis
porque o mandamento bíblico da santificação do dia do repouso faz menção às
relações do trabalho, ao relacionamento entre senhores e súditos, isto é, em
termos modernos, entre patrões e operários, entre empregadores e empregados,
entre os que fornecem o capital da empresa e os que executam o trabalho. A
espiritualidade cristã, quando autêntica, não é, pois, fuga da interioridade. É
contemplação do agir de Deus, que quer ser, claramente, o árbitro das relações
humanas no trabalho, na cidade e, também, nas trocas comerciais e financeiras.
Aliás, como também em todos os demais domínios da vida. (Mas estes não
constituem objetos das reflexões desta obra.)
Pode-se, por isso, dizer, com toda
justiça, que Calvino conferiu ao trabalho sua dignidade. Mas, é um equívoco
censurá-lo por haver instituído a religião do trabalho. Se protestantes, ou
mesmo sociedades de origem calvinista, vieram a ceder a essa extravagância,
como se pode constatar por vezes (examinar-se-á esse assunto), é porque
adotaram ideologias profanas que, como o liberalismo integral ou o marxismo,
consideram o trabalho sem levar em conta o sentido que Deus lhe empresta. Fazem
dele um valor em si, autônomo, apartado de suas raízes espirituais e da ética
que delas deriva, detentoras de seu verdadeiro significado. Acrescentamos que
esse sentido do trabalho não é estático, mas dinâmico. A vocação de Deus não
enclausura o cristão em atividade imutável. Ao contrário, é apelo para
enfrentar, de maneira flexível, as situações novas. Porque Deus, que convoca o
homem ao trabalho, age sempre no contexto de uma história concreta e evolutiva,
que obriga cada indivíduo a adaptar-se às circunstâncias.
A ociosidade, o desemprego e os lucros
abusivos.
Já que o trabalho, sob a ótica
calvinista, é obra pela qual o homem se realiza correspondendo à vocação que
Deus lhe dirige, a ociosidade é vício que corrompe a humanidade. O
repúdio ao trabalho, assim como a preguiça, significa para o homem a negativa
de corresponder à expectativa de Deus, uma forma de ruptura com ele. “A bênção
do Senhor”, escreve Calvino, “está nas mãos daquele que trabalha. É certo que a
preguiça e a ociosidade são malditas por Deus.”
É por isso que Calvino denuncia a culpa
dos que obtêm suas posses do trabalho alheio, sem proporcionar à comunidade
trabalho pessoal, serviço real (remunerado ou não). Descreve esses “ociosos e
inúteis que vivem do suor alheio e, portanto, não prestam contribuição alguma
para ajudar o gênero humano”.
Eis nos novamente bem distantes tanto
dos usos da sociedade feudal anterior à Reforma quanto dos que prevaleceram em
seguida nas sociedades onde floresceu o capitalismo primitivo ou selvagem. Que
nessas sociedades alguns trabalham demasiadamente, enquanto outros são
conduzidos ao repouso forçado, eis um indício grave do esquecimento da ética
cristã ou do desprezo por ela. É por isso que, pelas mesmas razões teológicas
relacionadas com o valor do trabalho, o desemprego não pode ser tolerado, nem admitido,
como uma fatalidade do ponto de vista desta ética. Já que o trabalho é essa
obra indispensável, pela qual o homem se realiza na obediência a Deus, o
desemprego é uma calamidade social que deve ser combatida com o máximo vigor.
Privar o homem do seu trabalho é verdadeiro crime. É, de certa forma,
subtrair-lhe um pouco a vida. “Se bem que recebamos nosso alimento da mão de
Deus”, escreve Calvino, “ele nos ordenou trabalhar, O trabalho é eliminado?
Então a vida humana é aviltada.” “Sabemos que toda a renda de todos os artesãos
e operários decorre de poder ganhar a vida…”. “Então, já que Deus lhes
depositou assim a vida em suas mãos, isto é, no seu trabalho, privá-los dos
bens necessários é como degolá-los.”
A ética reformada do trabalho ordena,
portanto, ação social eficaz para prevenir o desemprego e intervir em
benefícios de suas vítimas.
Tal ética estava na origem das
múltiplas intervenções de Calvino e de seus colegas na luta contra esse
flagelo. Para eles não estava em discussão abandonar-se à filosofia do
“laisser-faire”, que prevaleceu mais tarde na ideologia profana do liberalismo
integral e dos economistas sem imaginação. Preconizavam a intervenção
moderadora do legislador para melhor distribuição de bens em função da
conjuntura. Não imaginavam, tampouco, que o Estado devesse assumir a função
econômica: isso equivaleria a subtrair aos indivíduos suas responsabilidades e
iniciativas, inerentes à sua vocação, preocupada com o próprio trabalho e com o
alheio. E a ociosidade, que a ética cristã combate, não pode ser encorajada,
também, por uma lassidão social tolerante demais para com os preguiçosos.
Sempre em função de seu significado
espiritual e ético, o trabalho de cada indivíduo deve ser respeitado e não é
lícito dele retirar lucro
abusivo. “Deus nos ensina”, escreve ainda Calvino, “que nos cabe tratar com
tal humanidade os que cultivam a terra para nós, que eles não sejam onerados
imoderadamente, mas possam prosseguir no seu trabalho e nele tenham
oportunidade de dar graças a Deus.” Deus quer “corrigir a crueldade que existe
nos ricos, os quais empregam pessoas pobres, mas não as recompensam pelo seu
trabalho”.
Então, se a liberdade é indispensável
ao exercício da vocação para o trabalho, que Deus dirige a toda pessoa humana,
essa liberdade não pode ser considerada isoladamente, independente da busca de
justa solidariedade entre os parceiros sociais, todos os atores da economia.
Sabe-se com que vigor Calvino se esforçou para pôr em prática o ensino espiritual e ético que ele ministrava cotidianamente. Interveio constantemente junto às autoridades, tanto para eliminar a ociosidade quanto para combater o desemprego, que se tornava ameaçador quando os refugiados estrangeiros afluíram para a cidade de Genebra. Foi em razão de suas insistências que o Pequeno Conselho, um dos conselhos da cidade, estimulou a criação de novas indústrias, como a tecelagem, depois as manufaturas de tecidos de seda para criar assim novos postos de trabalho e absorver o desemprego.
Sabe-se com que vigor Calvino se esforçou para pôr em prática o ensino espiritual e ético que ele ministrava cotidianamente. Interveio constantemente junto às autoridades, tanto para eliminar a ociosidade quanto para combater o desemprego, que se tornava ameaçador quando os refugiados estrangeiros afluíram para a cidade de Genebra. Foi em razão de suas insistências que o Pequeno Conselho, um dos conselhos da cidade, estimulou a criação de novas indústrias, como a tecelagem, depois as manufaturas de tecidos de seda para criar assim novos postos de trabalho e absorver o desemprego.
O conceito reformado do salário.
É sempre a partir de considerações
teológicas particulares que Calvino define uma ética concreta. E assim é, mais
notadamente ainda, a propósito do salário.
O salário humano retira seu significado
de uma analogia com a recompensa que Deus concede ao homem por suas obras. De
fato, ela depende unicamente de seu amor. Tudo o que recebe um ser humano é
devido à graça de Deus. É ele que provê gratuitamente a sustentação da vida,
por pura misericórdia. “Falando com propriedade”, escreve Calvino, “Deus nada
deve a ninguém.” “Qualquer obrigação de que nos desincubamos, Deus não está
absolutamente obrigado a pagar-nos salário algum.”
Na sua bondade, porém, Deus não
abandona suas criaturas sem lhes dar o que lhes é necessário para viver.
Remunera suas obras, não por obrigação, mas por amor. “Por sua bondade
gratuita, oferece-nos salário”, escreve ainda o reformador, “aluga nosso
trabalho, o qual lhe é devido mesmo sem a remuneração.”
O salário humano concedido a todo o
trabalhador é, portanto, a expressão tangível do salário gratuito e imerecido
com que Deus privilegia a obra de cada indivíduo. Assim, por mais profano que
seja, o salário se reporta à obra de Deus. Expressa de forma visível a
intervenção de Deus em favor da frágil existência humana. Além disso, porque
esse salário é o sinal da graça de Deus, não pode ser considerado como favor,
que o dono do trabalho possa dispor como bem lhe aprouver. Dando ao trabalhador
a remuneração de seu trabalho, o dono nada mais faz que transferir ao próximo
aquilo a que este tem direito da parte de Deus.
Por causa desse significado espiritual
e ético conferido ao salário, o produto do trabalho não pertence, portanto,
mais ao patrão que ao operário, ambos sócios na atividade comum. Em conjunto,
recebem o produto como a recompensa providencial de seu esforço. Patrões e
empregados são, em conjunto e igualmente, devedores de Deus segundo os dons que
receberam e puseram em atividade, sem mérito maior para uns ou outros. Devem,
portanto, repartir esses frutos de comum acordo, livremente, mas levando em
conta a contribuição inicial a responsabilidade de cada um. Disso decorre que
não se trata simplesmente de regular-se pela lei da oferta e da procura, sem
qualquer outra consideração ética. E mesmo que tal ética jamais haja sido
aplicada à letra, é sua orientação espiritual que importa observar. A
negociação, aqui como em qualquer lugar, deve ocorrer. A negociação é um
princípio social superior, que deriva diretamente do fato de que nenhum ator
econômico é, sozinho, dono do que produz em conjunto com os outros. O produto
permanece sinal concreto da graça de Deus, um dom a partilhar.
Contra a exploração dos trabalhadores.
Por certo Calvino não ignora as regras
do mercado. Mas, precisamente estas, não podem ser as únicas que devem ser
levadas em conta. Devem ser complementadas e corrigidas de acordo com essas
referências espirituais e éticas. Impõe-se especialmente levar em consideração
as necessidades e a dignidade de todos os parceiros. É que a avidez ameaça
sempre perverter as relações sociais, particularmente quando a conjuntura é
adversa para os trabalhadores mais fracos.
“Eis como muitas vezes procedem os
ricos”, escreve Calvino. “Espreitam as ocasiões favoráveis para reduzir à
metade os salários dos pobres, quando estes não têm onde empregar-se. Estes
estão desprovidos de tudo, dirá o rico, tê-los-ei por um pedaço de pão, porque
precisam, embora contra a vontade, se renderem a mim. Dar-lhes-ei meio salário
e têm de contentar-se. Quando, pois, usamos de tal maldade, conquanto não
tenhamos negado salário, há sempre crueldade, e lesamos um pobre.”
Destarte, em matéria de remuneração, o
que é justo sob o aspecto da ética está, muitas vezes distante do que é a norma
no mundo econômico.
Sem que, nem por isso, recomende a
revolução dos assalariados explorados, o reformador constata que Deus está
atento às reclamações dos trabalhadores espoliados: ele não se esquece dos
empregadores que abusam deles. De fato, “com que maior violência se pode
deparar”, escreve, “do que fazer morrer de fome e de miséria os que nos
fornecem o pão com o seu trabalho? E, apesar disso, essa maldade tão absurda é
muito comum. É que existem muitas pessoas que possuem temperamento tirânico e
pensam que a humanidade foi feita somente para eles. São Tiago afirma que o
salário grita, porque tudo o que os homens retêm em seu poder, ou por fraude,
ou por violência ou força, clama vingança aos gritos. Faz-se imperioso observar
o que acrescenta: o grito dos pobres chega até os ouvidos de Deus, a fim de que
saibamos que as maldades, que lhes são feitas, não ficarão impunes”.
Ainda nessa matéria, Calvino interveio
junto aos seus colegas para que a ética da justa remuneração fosse aplicada na
sua cidade. Àquela época, como na maioria dos países vizinhos, a população
atravessava período difícil, caracterizado por alta generalizada do custo de
vida. Os salários não acompanhavam essa elevação. Os assalariados menos
aquinhoados, o proletariado, entraram em agitação. Em 1559, o Conselho, para
prevenir qualquer rebelião, proibiu a reunião de trabalhadores, suprimindo seu
direito a associação. Advieram perturbações sociais, entre os gráficos
principalmente. Sob a iniciativa dos pastores, o Conselho, de comum acordo com
os representantes da profissão, tomou medidas para regulamentar a atividade gráfica.
Graças a essa intervenção e à ponderação dos interessados, Genebra evitou as
greves que perturbaram Lion e Paris naqueles tempos. Essa paz social, obtida
mediante a negociação entre todas as partes, contribuiu para a recuperação da
economia de Genebra e para seu desenvolvimento rápido em comparação com as
economias vizinhas.
Legitimidade do comércio, das trocas e
da divisão do trabalho.
Enquanto a sociedade medieval
menosprezava o comércio, o Cristianismo reformado o reabilitou inspirando-se,
uma vez mais, no ensinamento bíblico. Já que Deus convocava cada indivíduo para
uma missão particular, explica Calvino, torna-o dessa forma dependente do
trabalho e dos serviços alheios. Assim, pois, cada indivíduo tem necessidade de
usufruir das outras atividades humanas. Certa divisão do trabalho está,
portanto, em conformidade com o desígnio de Deus. Ela manifesta a
interdependência de suas criaturas e acentua a utilidade dos vínculos que a
atividade econômica tece na sociedade. Cada indivíduo é dependente dos outros.
Desse modo expressa-se a solidariedade que liga os homens entre si. E tal
solidariedade implica troca permanente entre os indivíduos, reciprocidade de
serviços. O comércio, por consequência, é o corolário da vocação individual
para um trabalho particular. As trocas são por conseguinte indispensáveis para
que se realize a ordem social harmoniosa que Deus quer ver reinar entre os
homens. Nenhum deles pode bastar-se.
É pouco provável, porém, que Calvino
tenha aplicado essas observações, tais quais foram feitas, à divisão industrial
do trabalho que não conheceu, levada ao exagero, como o foi, a partir do século
XIX. É que tal divisão, que reduziu o homem a simples máquina, destruiu a
própria natureza do trabalho criador, individual, resposta a uma vocação
personalizada.
Como todas as outras atividades
humanas, as trocas somente são úteis se estão em conformidade com a vontade de
Deus, à ética cristã. Mas o homem desnaturado inclina-se a falsear esse tipo de
relações econômicas. A fraude e a desonestidade insinuam-se nas trocas e
desnaturam-nas. “Quando não mais se pode comprar nem vender”, diz Calvino, “a
companhia dos homens é como que destruída.”
Ora, os autores de tal subversão são
acima de tudo os especuladores e os açambarcadores, já numerosos no século XVI,
que, por todos meios artificiais, entravam a circulação dos bens e dos
produtos, causando-lhes a raridade e aumentando destarte os lucros.
___________
Fonte: A Força Oculta dos Protestantes. Ed. Cultura Cristã. P. 124-131.