Por Thomas Magnum*
Ao declinarmo-nos sobre a literatura do Antigo
Testamento veremos que suas lições são preciosas para a vida comum e que não
somente a lei foi importante para a religião judaica, mas, para o
desenvolvimento da cultura ocidental que foi muito influenciada pela cosmovisão
judaico-cristã. Ao partirmos do primeiro livro de Moisés – o Gênesis – notamos
a magnífica construção teológica, literária e histórica desse livro que
encabeça o grande tomo da revelação de Deus para os homens.
O valor dos ensinos bíblicos para o desenvolvimento
da humanidade tanto nos âmbitos sociais, culturais; no que concerne ao
estabelecimento de leis cívicas, sociais e políticas, também em outras esferas
como a adoração do povo de Deus e a instituição da família como célula mater da
sociedade nos fornecem um espectro que serve como compêndio instrutivo para
entendermos o que Deus disse em sua revelação e qual é a sua vontade para a
sociedade. Ao lermos Gênesis 1.26-31 temos então o que chamamos em teologia de
mandatos da criação, são eles – cultural, social e espiritual. Com base
nesses mandatos dados ao primeiro casal no paraíso e compreendendo a grande
linha interpretativa da Bíblia que podemos dizer que transcorre partindo da
criação, depois a queda, redenção e consumação de todas as coisas.
Ao lermos que o pecado entrou no mundo e com isso a
degeneração moral e espiritual do primeiro casal como representantes da raça
servem como o ponto inicial para compreendermos o que o livro procura mostrar:
que Deus criou o homem, que o homem pecou e foi destituído da glória de Deus,
que Deus providenciou a redenção do homem e que Deus é quem guia a história com
seu plano da promessa até culminar em Cristo no Novo Testamento, é importante
saber que, em Gênesis 3.15 temos o proto-evangelho, a promessa da semente da
mulher que seria a salvação prometida por Deus – Cristo Jesus.
Então ao lermos a narrativa bíblica nos capítulos
seguintes, temos a descendência de Adão e Eva em seus filhos Caim e Sete (Pois
Abel foi morto por seu irmão), vemos que o pecado continuou a multiplicar-se na
semente de Caim. Ao chegarmos ao sexto capítulo do Gênesis lemos que [...] viu o Senhor que a maldade do homem se
multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu
coração era só má continuamente[i]. E
aqui propriamente chegaremos ao ponto de nossa reflexão, lemos neste capítulo a
história de Noé e sua família obedecendo à ordem de Deus em construírem uma
arca porque viria um grande dilúvio. Evidentemente meu ponto aqui caro leitor
não é discutir sobre as possibilidades cientificas do dilúvio ou se ele foi
territorial ou mundial, tomo por linha interpretativa que o dilúvio de fato
aconteceu, é um fato. Com isso partimos para as manifestações da graça divina
nesse capítulo da história humana. Comumente somos levados a acreditar que a
graça de Deus só foi demonstrada no Novo Testamento, isso não procede, a graça
é demonstrada ativamente desde a queda do primeiro casal. Ao chegarmos à
história de Noé lemos que Noé, porém,
achou graça aos olhos do Senhor [ii]. Noé
achou graça não só a despeito do pecado, mas também por causa de sua
integridade (v.9) [iii]. Bruce K. Waltke
nos diz que
Esta afirmação aparece em forma de
clímax no final do relato dos descendentes de Adão. Noé representa um novo
começo, uma inversão que foi antecipada em 5.29. Noé acha graça diante de Deus,
não a despeito do seu pecado, mas em virtude da sua retidão (ver 6.9). O
narrador deixa o seu auditório compreender que a retidão de Noé não é
propriamente sua, mas um dom da graça de Deus, justamente como foi o dom da
soberana graça que no coração de Eva foi posta a inimizade contra a serpente.
Deus opera em Noé, como faz em todos os santos, tanto o querer quanto o
realizar, segundo o seu beneplácito (Fp 2.13) [iv].
Notemos que a causa do juízo de Deus enviando o
dilúvio era o pecado dos homem como vimos descrito no capítulo 6 e versículo 5
de Gênesis, no entanto encontramos em meio a essa manifestação da ira santa de
Deus para com o pecado e consequentemente com pecadores a graça sendo
manifestada através de Noé. Por Noé ter achado graça diante de Deus, agora foi
alcançado por esse favor divino sua família seria preservada do juízo de Deus
sobre a terra. Deus agraciou a família de Noé, não porque eram dignos, mas,
porque a misericórdia divina assim o quis.
Ao lermos com atenção toda a narrativa de Gênesis
veremos que há um contraste entre a queda do homem, sua degradação moral que
desemboca nas instituições que ele está envolvido, na sociedade, na família, em
seus negócios, e a graça de Deus que o beneficia, que o restaura, que o levanta
para cumprir a promessa descrita no início do livro como vimos acima. Noé era um
tipo de Cristo, a tipologia aqui é clara, como sua família foi salva por meio
dele, os homens são salvos por meio de Cristo. Cristo é o cabeça da família, do
seu povo que salvou dos seus pecados (Mt 1.21; Ef 5.25).
Ao lermos Gênesis, o texto nos diz com clareza a
situação do mundo – A terra, porém,
estava corrompida diante da face de Deus; e encheu-se a terra de violência.
E viu Deus a terra, e eis que
estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a
terra [v]. Temos um caos moral devastador instalado, será que
nos lembra algo? Será que nosso tempo é totalmente distante dessa realidade de
pecado? Será que somos diferentes daqueles que viviam no tempo de Noé? Nos diz
o apóstolo Pedro
Os quais noutro tempo foram rebeldes,
quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava
a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água; Que também, como uma verdadeira
figura, agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundícia da carne,
mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de
Jesus Cristo[vi].
O anúncio da graça ainda é ouvido,
através de Cristo e somente dele o homem pode sair do caos espiritual, a
ressurreição de Jesus nos proporciona esse batismo com água, nos dá graça,
vida, paz e misericórdia. Em Noé temos a figura, em Cristo temos a manifestação
perfeita e cabal da graça, Cristo é a pura manifestação da graça, o verbo feito
carne, a porta. Cristo é a arca de Deus. Sua vida nos é comunicada na cruz e na
ressurreição. Por isso a igreja é a comunidade da cruz, porque na cruz e no
túmulo vazio recebemos redenção e justificação. Graça para uma sociedade
corrompida somente em Cristo, a proclamação continua vindo agora da igreja
semelhante a Noé que pregou a justiça de Deus, proclamamos a salvação e o juízo
vindouro sobre toda carne que se volta contra o altíssimo:
E não perdoou ao mundo antigo, mas
guardou a Noé, a oitava pessoa, o pregoeiro da justiça, ao trazer o dilúvio
sobre o mundo dos ímpios[vii].
Diante da emergente situação de
nosso país, diante da imensa problemática em vários setores da sociedade,
diante da crise econômica, educacional, na saúde e até na religião a mensagem
ainda é proclamada aos ouvidos do mundo caído, nos disse o Senhor no Santo
Evangelho de Mateus:
O céu e a terra passarão, mas as
minhas palavras não hão de passar. Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do
céu, mas unicamente meu Pai. E, como
foi nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do homem.
Porquanto, assim como, nos dias anteriores ao dilúvio, comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, E não o perceberam, até que veio o dilúvio, e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do homem [viii].
Nos vale a advertência das Escrituras Sagradas,
Cristo é nossa arca, há graça, há vida, há ressurreição.
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[i] Bíblia Sagrada Corrigida Fiel, Gênesis 6.5.
[ii] Ibd. 6.8.
[iii] Bíblia de Genebra, cit. Comentário. Ed. Cultura Cristã, p.21.
[iv] Waltke, Bruce K. Gênesis. Ed. Cultura Cristã, 2010,
p.143.
[v] Gênesis 6.11,12.
[vi] 1 Pedro 3.20,21.
[vii] 2 Pedro 2.5
[viii] Mateus 24.35-39
* Publicado Originalmente na Revista Olhar Cristão.