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11 de jan. de 2017

Entrevista com Francisco Macena sobre a Teologia da Missão Integral (1/2)


O pastor presbiteriano, Francisco Macena da Costa, mestre em Teologia Sistemática e profícuo pesquisador da Teologia Latino Americana, concedeu ao nosso editor, Thiago Oliveira, uma entrevista primorosa (por escrito), que devido a sua extensão, será postada em duas partes para um melhor aproveitamento da leitura por parte de quem nos acompanha. Acreditamos que as linhas a seguir sejam de grande valia para quem deseja entender um pouco mais sobre a temática. 

Vamos a entrevista:

Macena, o que te levou a pesquisar sobre a teologia latino-americana. E o que mais te surpreendeu, até o momento, em sua pesquisa?

A teologia evangélica latino-americana foi apresentada à minha geração bem cedo. Pelos idos de 1994, quando comecei a frequentar o meio presbiteriano, a revista que servia de roteiro para a EBD era da editora Didaquê. Em suas publicações, vários temas relacionados à teologia da missão integral (TMI), bem como o uso bibliográfico de autores relacionados com a teologia da libertação também eram marcantes.

Anos depois, quando decidi consagrar-me ao ministério pastoral, ingressei no Seminário Teológico de Fortaleza - da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPI). Estudei nessa casa entre 2004 e 2007. Também tive o privilégio de lecionar a cadeira de educação cristã em 2009. Foi um tempo maravilhoso. Não poderia ter a leitura que hoje tenho da teologia latino-americana sem o treinamento que recebi lá. Lá estudei com o Rev. Áureo Oliveira (que atualmente é o moderador da IPI), Carlos Queiroz (um dos principais articulistas da teologia latino-americana no Brasil), Timóteo Carriker (foi meu orientador no TCC). Claro, haviam outros mestres amados, mas estes que citei foram os que me inseriram nos debates contemporâneos da teologia latino-americana. Áureo é um teólogo sistemático fantástico que, como poucos, conhece a teologia do século XX. Carlinhos nos apresentou vários temas da teologia luterana do século XIX, modificados por pensadores como Otto e pela reflexão teológica da teologia da libertação. Quando nem se ouvia falar na Nova Perspectiva em Paulo, Carriker nos incentivava a fazer pesquisas neste campo.

Na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) vivia-se os ecos da era Guilhermino Cunha, e a figura ecumênica do saudoso Rev. Helnir Cortez alimentava esse ambiente de diálogo teológico. Porém, com a eleição do Roberto Brasileiro, a minha geração foi chamada a pensar mais claramente os limites confessionais da denominação. Entre 2009 e 2012 passei estudar com mais afinco os temas da tradição puritana, do neocalvinismo holandês, da tradição latino-americana e da teologia contemporânea, especialmente Moltmann e Pannenberg.

Quando ingressei no Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ) em 2013, o meu projeto de pesquisa já apontava para a relação da metodologia cristológica de “debaixo para cima” como um viés metodológico marcante no discurso da TMI. Era preciso aprofundar essa pesquisa. Minha principal motivação era resolver os dilemas pessoais que surgiram da minha formação latino-americana, seguida pela inserção numa denominação confessional. Eu queria ser o mais coerente possível dentro da denominação. Para isto, escavei temas como a história da confessionalidade da IPB no Ceará e temas sobre a formação histórica da teologia latino-americana. Descobri que a agenda teológica latino-americana já fazia parte da IPB desde 1916, quando da realização do Congresso do Panamá, que teve a participação do destacado pastor presbiteriano Erasmo Braga. Também percebi que historicamente a denominação possui uma atitude de flutuação confessional, ou seja, a teoria da subscrição confessional na denominação se alterna entre tendências mais estritas e menos estritas. Nos cenários onde a teoria de subscrição confessional foi menos clara, somado com a atitude revisionista da teologia evangélica latino-americana a assimilação de padrões mais ecumênicos e voltados para a TMI são evidentes. Este é o caso do presbiterianismo de Fortaleza, por exemplo.

O que mais me surpreendeu ao estudar o espectro da teologia contemporânea foi a sua atitude crítica em relação ao confessionalismo cristão clássico, mais especificamente o católico e o reformado. Logo percebi que era incongruente ser um teólogo comprometido com a subscrição mais estrita dos padrões de Westminster e ao mesmo tempo adotar como filosofia de ministério a teologia da missão integral que surgiu na Fraternidade Teológica Latino-americana.

Durante esses últimos três anos resolvi colocar no papel minhas impressões sobre o choque dessas duas visões de mundo, a confessional e a teologia latino-americana, ressaltando um argumento simples: a teologia da missão integral é basicamente uma concentração cristológica, semelhante ao pensamento de Barth, porém modificada pelos filtros da teologia da esperança, da teologia da história e da teologia da libertação. A TMI é apenas uma forma de articular a cristologia de uma forma mais contemporânea a partir do contexto latino-americano de empobrecimento e miséria. A relação entre a TMI e a teologia dialética, a teologia da esperança e a teologia da história representa um campo de reflexão que ainda me surpreende bastante e continuamente me chama a pensar sobre o resultado desse espírito revisionista latino-americano dentro da minha denominação – IPB - e do pentecostalismo brasileiro, especialmente a parte que está convencida em não dialogar com o calvinismo e com o confessionalismo que ressurgem com força entre os jovens.

Como TMI se tornou um tema bem genérico, é preciso reiterar que quando falo da TMI penso primariamente na teologia que se formou nos CELAS, nos CLADES, na FTL (Fraternidade Teológica Latino-Americana) e que foi ouvida no Congresso de Lausanne, em 1974. A TMI feita nos moldes da FTL é uma coisa, a maneira como o Movimento Lausanne reflete a TMI é outra. Na FTL há uma atitude mais aberta e com maior liberdade hermenêutica que pode ser exemplificada no diálogo com a teologia da libertação, algo que não se vê no Movimento Lausanne, pelo menos na mesma força que acontece na FTL.

Falando especificamente da Teologia da Missão Integral (TMI), você poderia elencar pontos positivos dela?

A TMI, sem dúvidas, trouxe uma contribuição importante para a tradição cristã. Não há como negar o impacto positivo dos latino-americanos na construção do espírito do Pacto de Lausanne (1974), e que, ainda hoje, é um modelo inspirativo para muitas denominações em todo o mundo, e, inclusive a Igreja Presbiteriana do Brasil, que em sua filosofia de missão reafirma a importância de pregar “o evangelho todo para todo homem”.[1] Isto levanta a questão de como as igrejas confessionais podem dialogar como os pontos de Lausanne e, ao mesmo tempo, sugerir uma teologia para a missão integral a partir da cosmovisão reformada. A rica tradição reformada possui pressupostos para dialogar com Lausanne e com TMI clarificando pontos de convergência e deixando claros os pontos de divergência sobre como fazer missão a partir do contexto latino-americano. O ponto a ser demonstrado é que o imperativo confessional não solapa o espírito de Lausanne, antes, ele tem potencial para aprofundar a noção de integralidade da missão. Sem expurgar a dogmática clássica, é possível ver a tradição reformada como aliada da contextualização e não como sua inimiga, sobretudo quando se olha para a catolicidade da igreja. A exatidão teológica dos credos e das confissões de fé reformadas não é o maior impedimento para que existam igrejas capazes de dialogar com cultura de forma transformadora. Antes, é exatamente a falta de limites confessionais claros e abrangentes que dificulta a prática da missão em sua integralidade, diante da ameaça do relativismo e pluralismo. Se o conteúdo proposicional das Escrituras for colocado de lado, não haverá nada para contextualizar, porque não há nada a dizer sobre a fé cristã sem a revelação das Sagradas Escrituras.

De forma específica, pode-se dizer que a principal contribuição da TMI foi nos lembrar constantemente que a responsabilidade social faz parte do dever cristão. Acredito que o Pacto de Lausanne pegou o que tinha de melhor na teologia latino-americana, ao assumir nos seus artigos que, embora a evangelização não seja a responsabilidade social, ambas fazem parte do dever cristão. A tradição confessional, que procura manter seguro os limites da reta doutrina, não pode esquecer a falta de misericórdia para com o próximo também profana o dia do Senhor. Podemos até discordar sobre a ênfase que a TMI dá ao tema da responsabilidade social, mas não podemos negar que ela faz parte do dever cristão.

Ainda sobre a TMI, quais seriam os seus problemas? E até que ponto tais problemas trazem prejuízo a sã doutrina?

Do ponto de vista reformado confessional, o espectro da TMI apresenta algumas inconsistências que, no meu entender, podem sim trazer prejuízo a sã doutrina, e, por conseguinte a atitude da igreja local e das denominações também. As posturas inconsistentes são as seguintes:

a) Atitude excessivamente crítica da tradição dogmática: a TMI reverbera uma atitude crítica no que tange ao formato da teologia sistemática e seu rigor dogmático. Se considerarmos que desde o Iluminismo existe uma tradição crítica dos postulados confessionais, seja pelo lado católico, seja pelo lado protestante, pode-se de dizer, em certo sentido, que a teologia latino-americana prologou esse espírito crítico e o contextualizou como forma de revisão do protestantismo de missão. Escobar resume o bem tal atitude da seguinte maneira:

Na medida em que o movimento missionário e o ensinamento nas igrejas se limitam a transmitir a Cristologia como verdade proposicional definida nas fórmulas de Nicéia ou Calcedônia transmitem imagens de Cristo úteis para a piedade pessoal. (...) As formulações dos credos que definem a humanidade e a deidade de Jesus tornaram-se obstáculos que permitiam captar as dimensões da humanidade de Jesus que seriam muito importantes para modelar a vida e a missão hoje em dia. (ESCOBAR, S. Viver em tempo de missão. p. 101)

Note que a transmissão da verdade, nos termos e nas formas confessionais clássicas e ecumênicas, fora vista como empecilho ao processo de contextualização do Evangelho, especialmente a captação do significado da humanidade de Jesus, ou para ser mais exato, a práxis de Jesus. Bosch analisou esse teor crítico e afirmou que “os teólogos contextuais se abstêm, com razão, de escrever ‘teologias sistemáticas’ em que tudo se encaixa num sistema que tudo abarca e é válido.” (BOSCH, D. J. Missão transformadora: mudanças de paradigmas na teologia da missão. São Leopoldo: EST, Sinodal, 2002. p. 511). Em outro momento Bosch relaciona essa atitude crítica ao Iluminismo. Para ele, “depois do Iluminismo, seria irresponsável não submeter nossa “estrutura fiduciária” a uma crítica severa ou não continuar ponderando a possibilidade de que a Verdade seja, deveras, diferente do que pensávamos que fosse.” (p. 432).

Há um preconceito sedimentado de que a teologia sistemática tem sido orientada por séculos pela filosofia grega platônica que engendrou uma dicotomia entre o mundo das ideias como o mundo verdadeiro, e mundo fenomênico como o mundo de sombras, e, portanto, inferior ao mundo das ideias. No dizer de Roldán, o problema da teologia sistemática é interesse estéril pela formulação de conceitos e ideias abrangentes, e o pouco interesse pelos processos sociais. Para ele, o jeito de ser da teologia sistemática é constantemente tentado pela idolatria das ideias, que significa deixar com que a teologia seja um meio, para se tornar em um fim. A consequência disso é insensibilidade, intolerância e atitude persecutória. Como se pode superar a idolatria das ideias? Para Roldán, “há apenas um caminho: achegar-se à realidade em si não às interpretações, ou seja, achegar-se a Jesus Cristo.” (ROLDÁN, A. F. Para que serve a teologia? p. 49)

Em minha opinião, é exatamente essa atitude da teologia latino-americana contra a dogmática que configura um dos pontos que mais prejudica a TMI, especialmente porque na perspectiva reformada, a questão do dogma não é uma questão de apego ao passado, pelo contrário, a relevância do dogma está antes de tudo na verdade que ele comunica e conserva. A teologia sistemática, os credos e as confissões reformadas funcionam como limites doutrinários fixos, exatamente onde a Escritura é clara. Eles são resumos da sã doutrina. Isso não implica na equiparação do dogma com a Bíblia ou na pretensão de que ele diga tudo. Pode-se concordar com Stott, quando ele diz:

O dogmatismo cristão é (ou deveria ser limitado). Está longe de saber tudo. Porém, em se tratando daquilo que está claramente revelado na Bíblia, os cristãos não devem ser duvidosos nem apologéticos, procurando justificativas para essas revelações. O Novo Testamento está repleto de afirmações claras que começam com “sabemos”, “estamos certos”, “estamos convictos”. (...) Eles expressam uma alegre convicção que, infelizmente, está faltando em muitas áreas da igreja hoje e precisa ser resgatada. (STOTT, J. As controvérsias de Jesus. Viçosa: Ultimato, 2015. p. 17)

O problema da TMI ao adotar uma postura bélica e ácida em relação a herança confessional clássica da igreja apenas torna o seu espectro ainda mais genérico.  Além do mais, a falta de norte doutrinário, com limites teológicos claros desorienta a práxis. Não é a “percepção” da realidade que deve preceder a ação da Igreja, mas uma consciência enraizada nas Escrituras inerrantes e infalíveis. Em termos simples, a ética cristã deve estar arraigada na dogmática, ou seja, na autoridade da Palavra de Deus que a igreja confessa. Logo, quando a TMI esvazia o senso de relevância da dogmática clássica, ela na verdade esvazia a própria práxis que ela tenta enfatizar. Dogmática e práxis estão intimamente entrelaçados. Como bem diz Bavinck: “A dogmática é o sistema do conhecimento de Deus; a ética é o sistema do serviço de Deus. As duas disciplinas, longe de se defrontarem como duas entidades independentes, formam, juntas, um sistema único; elas são membros articulados de um mesmo organismo.” (BAVINCK, H. Prolegômena. p. 58)

b) Concentração cristológica reducionista: Toda teologia genuinamente cristã deve ser cristocêntrica. Jesus Cristo é centro das Escrituras. Contudo, o movimento da teologia latino-americana caminha na direção da cristologia como ponto de partida, segundo o viés típico da teologia do século XX. Pode-se concordar com Roldán, quando ele diz que “a influência da neo-ortodoxia na teologia latino-americana merece um estudo à parte. Por hora apenas queremos assinalar que a escola neo-ortodoxa, especialmente Karl Barth, tem exercido influência notória na reflexão teológica latino-americana.” (ROLDÁN, A.F. Para que serve a teologia? p. 105).

Reconhecendo esse contexto teológico é possível afirmar que TMI é basicamente cristologia. Os principais eixos de definição da TMI dependem exclusivamente de uma concentração cristológica modificada para dar mais ênfase ao Jesus histórico. Para Padilla

O Cristo do cristianismo ocidental tradicional não podia oferecer uma base adequada para a responsabilidade social e política cristã. As imagens tradicionais de Cristo puseram em evidência o fato de que um cristianismo que deixa de fora o Jesus histórico pode servir à piedade popular ou como religião civil, porém não é nem fiel ao testemunho das Escrituras acerca de Jesus, nem é pertinente historicamente. (PADDILA, C. R. Em busca de uma cristologia evangélica contextual. p. 6) 

Como resultado da concentração cristológica, temas como a Cristologia, o Reino de Deus e a práxis estão completamente interligados no modelo da TMI. O Jesus histórico fundamenta o Reino de Deus e ao mesmo tempo lhe serve como paradigma contextual. O Reino se manifesta na libertação abrangente. É libertação da alma e do corpo, não apenas no Reino futuro, mas aqui e agora, ainda que como antecipação proléptica do futuro de Deus. Esses pontos ocupam a prioridade não apenas da missão contextual, mas, estabelecem uma nova agenda ecumênica aplicada transversalmente ao espectro denominacional latino-americano.

Num mundo que não comporta mais as sínteses confessionais abrangentes, a TMI articula três temas: encarnação, reino e práxis. Todos os pontos dependem do Jesus histórico. O Jesus Cristo de Nazaré é o Deus que se fez carne, é o Reino em pessoa, e sua práxis manifesta a presença do Reino de definitiva para os seus seguidores. Valdir Steuernagel, é claríssimo ao dizer que “a missão da igreja hoje tem na vida de Jesus sua fonte de autoridade e inspiração.” (STEUERNAGEL, V. O Evangelho integral. IN: WINTER, R. D [et all] (ORG). Perspectivas no movimento cristão mundial. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 185) 

Ainda sobre o contexto da TMI, os teólogos batistas Alessandro Rodrigues e Marcio Simões afirmaram que “a fonte da fé cristã é Jesus Cristo tal qual este é apresentado nas páginas do Novo Testamento. (...) A encarnação revela-se, portanto, um dos mais importantes assuntos (senão o mais importante) assunto da teologia.” (ROCHA, A. R; VASCONCELOS, M. S. O poder da palavra na força do Espírito – elementos da fé cristã na perspectiva da Teologia da Missão Integral. São Paulo: Garimpo, 2016. p. 50)

O teólogo brasileiro, de tradição congregacional, Manoel Bernardino de Santana, numa pesquisa densa sobre o impacto da teologia de Karl Barth na teologia latino-americana, procurou mostrar que a “presença de Barth se faz sentir nos escritos de teólogos e teólogas católicos e protestantes do continente.” Na análise de Manoel Bernardino, personagens emblemáticos da teologia latino-americana como José Mígues Bonino, Richard Shaull, John Mackay, Gustavo Gutiérrez, Elsa Támez foram impactados pelo pensamento de Karl Barth. Mapeando as conexões da teologia de Barth no labor de Bonino, por exemplo, Bernardino chegou até o II CELA[2] (1961), que foi presidido por um membro da Igreja Presbiteriana do Brasil, chamado Benjamim de Moraes. Fazendo uma análise do documento final, Bonino discerniu a seguinte tendência: No plano teológico, elas podem ser elencadas da seguinte forma: a) distância do liberalismo e clara adesão à teologia neo-ortodoxa; b) centralidade da soberania de Jesus Cristo; c) primazia da iniciativa divina; d) caráter objetivo da verdade de Deus dada em Cristo. (FILHO, M. B. F. Karl Barth e sua influência na teologia latino-americana: palavra, evento e práxis de libertação. São Paulo: ASTE: Associação Basileia, 2015. p. 245) 

Embora a teologia deva ser cristocêntrica não é sábio ser tão radical ao ponto de não considerar o contexto das Escrituras, não apenas como a moldura que transmite o evento, mas como igualmente Revelação. A TMI não deve estar associoada a uma concentração cristológica que não expressa vigorosamente a inerrância e suficiência de TODA a Escritura. Conforme lembra Frame: “A natureza cristológica da revelação não nos permite de maneira alguma menosprezar as palavras pessoais de Deus. Pelo contrário, acentua a autoridade e poder delas. (...) Nas palavras pessoais de Deus, o próprio Cristo vem para encarregar-nos de nossa crença e obediência.” (FRAME, J. M. A doutrina da Palavra de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. p. 58) Uma noção cristológica do tipo barthiana embora tenha seu ponto positivo na luta contra o liberalismo que construía seus retratos hipotéticos, não é de forma alguma, uma cristologia apropriada quando diminui o valor da Palavra de Deus. Uma teologia para a missão integral precisa pregar Cristo integralmente: sua pessoa, sua obra e suas palavras.

c) Ênfase na responsabilidade social como fato de relevância: Do ponto de vista do contexto latino-americano, o mais importante não é o debate sobre Jesus e a história em resposta aos problemas da modernidade, mas a afirmação da práxis de Jesus na história como sinal do Reino de Deus, a partir dos problemas de fome e miséria que historicamente rondam a América Latina. A cristologia é, ao mesmo tempo, o fundamento das noções do Reino de Deus e do paradigma contextual para a América Latina. Nesses termos, o Documento de Porto Alegre reitera a seguinte proposta de missão:

Isso nos leva a perguntar o que significa encarnar Cristo em nossa missão. Significa, em primeiro lugar, que não podemos reduzir a encarnação a uma categoria teológica abstrata, nem ver a vida encarnada como meros espectadores, sem nos envolver em situações concretas. Não queremos continuar sendo produtos alienígenas deslocados na paisagem tropical, mas sim fazer justiça à dinâmica do evangelho do Reino em meio às realidades sociais, políticas e econômicas do Brasil. Queremos que as nossas igrejas se tornem comunidades alternativas, verdadeiros sinais de esperança do Reino para toda a sociedade, sem se tornarem comunidades paralelas que procurem duplicar a ordem social em seu conjunto, propondo um sucedâneo global à sociedade secular. (Documento de Porto Alegre. In: IN: Boletim teológico 6. p. 43)

Na declaração de Porto Alegre, nota-se alguns eixos missiológicos. O primeiro diz respeito ao paradigma encarnacional. A ênfase no Jesus histórico e na imanência do Reino de Deus concorrem para uma categorização da encarnação de Cristo que indica a missão de Deus, e que serve de modelo para a missão da Igreja no mundo. O evento da encarnação do Verbo é interpretado pela TMI como um ato analógico de contextualização. O Eterno se contextualizou ao finito. O Todo-Poderoso Deus se fez carne. Ele entrou na história como um homem, pobre, judeu e marginal. O Senhor se fez servo. Em termos missiológicos o que isto significa para a práxis da igreja? No dizer de Noé Stanley: a finalidade da encarnação de Jesus Cristo é a manifestar o Reino de Deus, o qual consiste em desafazer as obras do diabo, isto é, libertar a humanidade de todos os poderes que a oprimem e se ele nos envia a continuar a obra que ele mesmo começou, então não podemos fugir à conclusão lógica de que só estaremos encarnando Cristo me nossa missão, se tivermos a missão dele, que é a missão do Pai – reconciliar consigo o mundo, libertando-o do jugo que pesa sobre ele. Logo, a Igreja que segue a Cristo deve preocupar-se primeiramente com o mundo pelo qual Cristo morreu e ao qual ele a enviou”. (Ibid., p. 37-38)

Para Stanley, a missão da igreja, que deve ser a Missio Dei, no contexto brasileiro, exige uma releitura crítica de modelos eclesiocêntricos para assumir um modelo missionário mais cristocêntrico e encarnacional. Para ele, o modelo importado do EUA centralizava o templo, de tal forma que no domingo, toda a atividade religiosa e social ficava restrita à igreja, tornando-se assim naturalmente uma sociedade concorrente da sociedade secular. Isso corroborou para a formação de uma espiritualidade docética, cinicamente afastada da sociedade. Para romper com esse modelo é preciso olhar para o Jesus histórico e para o seu projeto de justiça do Reino sendo aplicado aos excluídos. Em termos práticos isto significa que a Igreja: 1) perceba as desigualdades do sistema econômico; 2) os estragos causados pela ditadura militar; 3) e os problemas causados pelo desemprego, saúde e fome; 4) perceba o drama das minorias; 5) e some forças por meio de organismos ecumênicos tomando como terreno comum o Reino de Deus.

De acordo com Padilla, a morte de Jesus foi marcada por fatores sócio-políticos que não se podem ignorar para se fazer uma leitura honesta dos evangelhos. O problema da morte de Jesus não foi apenas a sua mensagem, mas, a sua práxis, realizada na esfera pública, que foi interpretada pelos poderosos como ato de sublevação política. (PADDILA, C. R. Em busca de uma cristologia evangélica contextual. IN: Boletim teológico 6. p. 17) Quais foram as características do ministério de Jesus em termos práticos? No artigo sobre uma cristologia contextual, Padilla destacou algumas dessas características: 1) autoridade profética; 2) espiritualidade singular; 3) proclamação da presença do Reino de Deus na história por meio dos sinais de curas, milagres e pregação do Evangelho aos pobres. Jesus tinha uma preocupação especial com os pobres, marginalizados e oprimidos; 4) crítico da religiosidade do seu tempo; 5) vivia como pobre por uma questão de justiça do Reino e condenava a riqueza; 6) rejeitou a violência, e via poder como exercício de serviço; 7) criou uma rede de discípulos socialmente inconformados e dedicados à construção de uma comunidade de amor e justiça.

Ainda que a responsabilidade social seja um dever do cristão, não podemos esquecer que o Evangelho diz respeito “à encarnação, à vida perfeita de Jesus de Nazaré, e a sua morte e ressurreição. A interpretação dos fatos é que eles ocorreram “para nós, homens e pela nossa salvação.” (GOLDSWORTHY, G. Trilogia. São Paulo: Shedd, 2016. p. 99). Essa realidade não foi esquecida no Pacto Lausanne, antes ela foi reafirmada com clareza: “Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão.”[3] Vistos com essas qualificações, não haverá confusão quando se afirmar que “a pregação e o partilhar do evangelho de Jesus Cristo, por meio de palavras e obras”[4] é parte do dever do cristão. No dizer de Keller “o ministério da palavra e o de obras são distintos, embora nunca separados.” (KELLER, T. Ministérios de misericórdia: o chamado para a estrada de Jericó. São Paulo: Vida Nova, 2016. p. 129)

O pastor presbiteriano Antônio Carlos Costa, engajado na reflexão sobre a teologia da missão integral, afirma categoricamente que a evangelização é uma tarefa central para a igreja cristã. Inclusive o pobre precisa ouvir a pregação do evangelho de Jesus Cristo. Para ele: O pobre precisa de perdão como qualquer outra pessoa. Ele faz parte da humanidade pecadora, que brinca com os céus e vive ferindo o semelhante. A vida na favela quebra qualquer romantismo com relação ao suposto caráter enobrecedor da pobreza. (COSTA, A. C. Convulsão protestante: quando a teologia foge do templo e abraça a rua. São Paulo: Mundo Cristão, 2015. p. 180)

As igrejas históricas devem demonstrar um maior engajamento social tanto na esfera denominacional como na esfera das igrejas locais. Certamente, a pregação do Evangelho é cerne da transformação da cultura. Mas, a igreja também precisa manifestar sua responsabilidade social. Contudo, não se deve incorrer no erro de elevar a práxis como o critério de verdade, a partir da ideia que as pessoas podem discordar do que se fala, mas não podem discordar do bem. Não se trata de fazer uma opção entre o Evangelho e o testemunho santo. Os cristãos devem manter os dois. É preciso ter cuidado com a ideia de que o cristão terá melhores resultados evangelísticos e apologéticos se tiver mais ética do que argumentação. Samuel Escobar e Pedro Salinas parecem defender a ideia que a práxis pode ter resultados mais favoráveis que os argumentos. Para eles,
Nesta era pós-moderna não podemos esconder a nossa vida por trás de grandes argumentos racionais, porque agora os mesmos não impressionam mais. Nesta era, mais do que com palavras, evangelizamos com ações, com uma postura de amor pelos outros, com uma epistemologia mediada por compaixão, com uma axiologia saturada pela ética e pelos valores do reino, e com uma mensagem encarnada, que saia dos templos e que se misture com geração desencantada e cheia de superstições que perambula como “ovelhas sem pastor.” (...) Nossa tarefa nesta era pós-moderna é apresentar uma pessoa: Jesus, mais do que um sistema lógico de crenças. (SALINAS, D; ESCOBAR, D. Pós-modernidade: novos desafios à fé cristã. São Paulo: ABU, 2002. p. 45,48.)

Evidentemente que a Igreja deve falar com a boca e com a vida. Mas, falar com o testemunho não é uma garantia de sucesso apologético. Se o fosse, as religiões meritocráticas estariam comunicando com muito mais eficiência a sua mensagem. O problema com a argumentação de Escobar e Salinas é que a fenda que Kant abriu foi tão grande que nem mesmo a prática do bem se tornou um balizador. No dizer de Hannah Arendt

O imperativo categórico é postulado como absoluto e, em sua absolutez, introduz no âmbito inter-humano – que, por sua natureza, consiste em relações – algo que ocorre em sentido contrário à sua relatividade fundamental. A inumanidade ligada ao conceito de uma verdade única surge com especial clareza na obra de Kant justamente por ter tentado encontrar a verdade na razão prática; é se ele, que indicara não inexoravelmente os limites cognitivos do homem, não conseguisse suportar a ideia de que, também na ação, o homem não pode se comportar como um deus. (ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das letras, 2008. p. 36)

Com a modernidade, nem as ideias e nem as práticas devem ser assumidas como forma de verdade absoluta. Nesse sentido investir tudo na práxis como fator de relevância no espaço público em detrimento do dogma parece ser como trocar seis por meia dúzia. Em vista disso, o cristão deve procurar manter tanto a pregação da verdade do Evangelho como a práxis do seguimento de Jesus Cristo, deixando claro sua posição perante o mundo em defesa da verdade absoluta da Palavra de Deus. Não apenas na ajuda ao pobre, mas, em todas as esferas da sociedade, o cristão deve ser sal e luz. Assim como não podemos separar a obra de Cristo do seu ensino, não podemos pensar em separar a pregação do testemunho. Um cristianismo ortodoxo e robusto deve testemunhar com a vida o Evangelho de Jesus. Isto tem a ver com remoção do escândalo para o nome de Cristo não seja envergonhado. Pregar o que não se vive é uma hipocrisia. A igreja não pode esperar ser ouvida se os membros vivem uma religião teatral e vazia.

Uma teologia para a missão integral precisa desafiar não apenas quanto à ajuda ao pobre, mas também deve conclamar a igreja à testemunhar o senhorio de Jesus Cristo na política, na economia, nas artes, na filosofia e em tantas outras áreas. Missão parcial não é apenas pregar o evangelho pensando na salvação da alma. O teólogo, Guilherme de Carvalho, propõe que os evangélicos brasileiros também questionem se não há missão parcial por parte daqueles que procuram dedicar-se, por exemplo, à busca de justiça no mundo, mas consideram cristianismo de ‘torre de marfim’ o dedicar-se por exemplo, à arte, à ciência, à filosofia, à hospitalidade, à educação escolar, ao jornalismo e à comunicação, como se integralidade se reduzisse à questão da pobreza. (CARVALHO, G. Igreja católica: as dimensões da missão. IN: DULCI, P. L. Igreja sinfônica: um chamado radical pela unidade dos cristãos. São Paulo: Mundo Cristão, 2016. p. 81)

d) A complexidade do círculo hermenêutico: O método da TMI preconiza uma circulação hermenêutica que é semelhante à Teologia da Libertação. A dinâmica do método procura abarcar a realidade, para depois julgá-la por meio da Palavra, e daí propor uma nova práxis libertadora (releitura) para o contexto. Os teólogos latinos americanos fizeram uma opção pela hermenêutica circulatória para conseguir dar conta do projeto de ser bíblico e ao mesmo tempo ser contextual. Isto trouxe um forte processo de isolamento crítico da bagagem estrangeira que veio “já contextualizada” da Europa e dos EUA. Nas palavras de Juan Stam: “A tarefa hermenêutica de confrontar o texto bíblico diretamente com o nosso contexto latino-americano implica, necessariamente na tarefa de isolar os fatores teológica, cultural e socialmente alienantes do movimento missionário anglo-europeu, alheios tanto ao pensamento bíblico quanto à realidade latino-americana”. (STAM, J. A Bíblia, o leitor e seu contexto histórico: pautas para uma hermenêutica evangélica contextual. IN: Boletim teológico 3. São Leopoldo: Fraternidade Teológica Latino-Americana, 1984.  p. 94)

Por meio da circulação hermenêutica, a TMI procurou articular uma práxis missionária histórica, contextual e livre da epistemologia abstrata, idealista e esquelética da teologia sistemática. De certa forma, apostar em uma nova hermenêutica foi a maneira que os teólogos latino-americanos encontraram para manter uma constante trincheira de resistência contra o fundamentalismo, que por sua vez seria, usando a linguagem do espiritismo, uma reencarnação do escolasticismo protestante – período onde surgiram as principais confissões da fé reformada clássica.

Em vista disso, a TMI demonstra ser mais simpática com a teologia bíblica e os movimentos que articulam a história da salvação, tendo em vista que a teológica sistemática, via de regra, se confunde com aquilo que é a-histórico, enquanto que a teologia bíblica procura ser uma abordagem mais histórica. Antes de tudo, a TMI lembra que Cristo é o maior exemplo hermenêutico, pois ele entrou na história. Logo, a hermenêutica deve ter o mesmo cuidado com o contexto histórico das Escrituras e o contexto histórico atual.

O círculo hermenêutico também buscou equilibrar a demanda de objetividade e subjetividade. A TMI procurou conhecer e depurar o círculo hermenêutico de Heidegger e Gadamer. A ideia é a seguinte: todos levamos nossos preconceitos para dentro do processo hermenêutico. A interpretação deve modificar os preconceitos para que haja uma nova compreensão do assunto. A ideia de objetividade passou por um forte processo de inquirição. No campo da teologia, isso significa que a exegese sempre está ancorada em preconceitos teológicos. Para gerar uma nova compreensão, é preciso estar consciente dos preconceitos e também disposto a modificá-los. Deve-se lembrar que esse método, curiosamente surgiu para resolver demandas de interesse teórico e abstrato. A teologia evangélica latino-americana resolveu então colocar este método “de cabeça para baixo.” Assim, ele passou a ser uma hermenêutica da realidade. A nova realidade latino-americana nos chama para interpretar a Palavra e para mudar a realidade. Isso exige uma atitude de suspeita teórica e dessa atitude emergirá uma nova atitude hermenêutica diante da Escritura, possibilitando assim novas atitudes e releituras. No caso latino-americano, surgiu um novo rosto da missão, teoricamente mais prático, histórico, contextual e constantemente crítico.[5]

Devido à complexidade do contexto e da integralidade que a missão requer, o método da TMI recorre a outras mediações. Enquanto a teologia clássica recorre à mediação filosófica para depurar seus conceitos e adaptá-los aos fins cristãos, a TMI usa o leque de opções das ciências para interpretar o contexto. O uso das ciências surge como aproximação da realidade, e não como o momento para a formulação de uma doutrina evangélica. Aliás, a TMI não articula um sistema doutrinário, ela subscreve princípios teológicos como a concentração cristológica, a centralidade do Reino de Deus, e a presentificação dos sinais do reino como modelo para a práxis da igreja. Esses são os paradigmas, ou seja, os eventos salvadores. Eles são modelos e precisam ser sempre conjugados de novo em cada contexto onde são pronunciados. É dessa forma que a teologia latino-americana procura ser moderna sem ser liberal e ser conservadora, sem ser fundamentalista. O seu interesse está em como praticar a missão do Jesus Cristo de Nazaré a partir do contexto latino-americano.

Como os evangélicos latino-americanos não querem falar dogmaticamente, embora isso seja em si algo dogmático, procura-se falar teologicamente de maneira mais aberta e circulatória.  No momento em que um movimento de expulsão da teologia reformada clássica foi erigido, se tornou necessário a construção de uma nova hermenêutica. Nessa nova hermenêutica a percepção precede a ação. Assim como Jesus “viu” as multidões, pode-se depreender imediatamente um imperativo para ver a conjuntura sócio-histórica. Para realizar essa tarefa, os teóricos da TMI recorrem ao uso de várias mediações. No caso, recorre-se à sociologia para entender a complexidade social; recorre-se à psicologia para entender o comportamento e o sofrimento humano; recorre-se à economia para entender os processos do mercado e de como ele pode influenciar a vida das pessoas. Deve-se usar quantas ciências forem necessárias no processo de mediação.

Apenas para título de exemplo, consideramos alguns casos, em que nas situações de extrema pobreza exista alguém na família com uma grave depressão. A ideia da TMI é que para tratar do homem todo, é preciso conhecer a sua alma. Nesse caso, o missionário, ou pastor, terá de ser requisitado para lidar com essa situação. Para agir, ele precisa perceber. Qual percepção das ciências ele vai aproveitar? Ao adentrar o ambiente da psicologia ele irá lidar com um universo de várias abordagens: comportamental, cognitiva, biológica, fenomenológica e psicanalítica. Quais teóricos ele irá usar para dialogar com aquele contexto? Skinner, Freud, Jung ou Lacan. O nível de produção literária é tão extenso que os próprios manuais exprimem a questão da seguinte forma:

Decidir como classificar essas investigações em tópicos e como apresenta-los na ordem mais significativa é tarefa difícil. Será que devemos saber como as pessoas percebem o mundo, a fim de compreendermos como aprendem novas coisas? Ou será que a aprendizagem determina como percebemos nosso ambiente? Devemos discutir o que motiva uma pessoa à ação para podermos compreender sua personalidade? Ou será que a motivação pode ser melhor compreendida, se primeiro observamos como a personalidade desenvolve-se ao longo do curso da vida? (ATKINSON, R. L. [et al] Introdução à psicologia. Porto Alegre: Artes médicas, 1995. p. 27)

Considerando apenas esse exemplo, como aplicação do ato de “ver” para poder “agir”, nota-se a complexidade que é trazer as ciências sociais para a construção de uma teologia da missão integral. Além de, potencialmente, elitizar o processo missionário, torna-o demasiadamente complexo, pois, coloca-se como exigência, não uma leitura intuitiva da realidade, mas uma leitura teórica da mesma, atitude essa, em tese, rejeitada pela TMI quando se tratou do âmbito da teologia sistemática. O questionamento é inevitável: se a dogmática não serve para o contexto latino-americano, por que as ciências se tornam automaticamente aplicáveis ao contexto? Com isso, não se quer negar que a ciência, por graça comum, não tenha seus momentos de verdade. A verdade será sempre verdade de Deus. Por isso, as “observações da psicologia podem ajudar muito no preparo do conselheiro e na condução do processo de aconselhamento, conquanto seja resguardada a soberania da fé cristã revelada na Escritura como elemento crítico da sua validade.” (GOMES, W. M. Aconselhamento Redentivo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 9)

No ponto de vista da tradição reformada clássica e confessional é mais seguro que a Revelação preceda a ação. Os antigos filósofos procuravam superar o espanto, não pelas opiniões, mas pela filosofia. O cristão transcende o espanto por meio da Revelação de Deus nas Sagradas Escrituras. Nesse sentido, ter uma cosmovisão ancorada nas Escrituras garante que o missionário terá norte para lidar com as demandas do contexto. O discernimento bíblico controlando todas as outras camadas da visão de mundo é que fornece a direção certa diante das coisas que percebemos. Nesse caso, a TMI precisa urgentemente rever a prioridade temporal da percepção, pela prioridade lógica de uma visão de mundo ancorada nas Sagradas Escrituras. Ainda discorrendo sobre o uso das ciências sociais, é importante lembrar o que disse o Dr. Augustus Nicodemus, ao discorrer sobre as várias hermenêuticas usadas pelos cristãos, especialmente quando se estabelece o diálogo com teorias seculares (que pensam de acordo com o século): “O grande problema começa quando os evangélicos importam para a academia conceitos e dogmas dos movimentos seculares sem rejeitar os pressupostos ateístas e agnósticos desses movimentos.” (LOPES, A. N. A Bíblia e seus interpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. p. 238)



[1] “Fazer missão é levar o evangelho do Senhor Jesus Cristo em sua totalidade para o suprimento e resgate do ser humano em sua totalidade no Brasil e no mundo. Conforme o propósito e o alvo do Pacto de Lausanne, cuja lema foi: O Evangelho todo para o homem todo - (The Whole Gospel for the Whole Man), diz: 1) A natureza da missão: é a comunicação das boas novas de Deus em Cristo; 2) O propósito da missão: é dar aos indivíduos e povos uma válida oportunidade de ouvir do amor de Deus por eles; 3) O alvo da missão: é introduzir homens e mulheres de todas as raças, povos e etnias na comunidade dos remidos do Senhor.” (ver: http://apmt.org.br/filosofia-de-missoes acessado em 20 de outubro de 2016)

[2] Conferência Evangélica Latino-Americana

[5] Essa atitude hermenêutica também existe no meio pentecostal que procura diálogo com a Teplogia da Liberyação [TdL]. Sobre isto, Carlos Cunha diz: “Diferentemente de algumas tendências da HP [hermenêutica pentecostal], a HdL [hermenêutica da libertação] mostra que a Bíblia não deve ser vista como um livro fechado que já disse tudo. A morte dos primeiros redatores dos textos bíblicos proporciona vida aos textos dando a eles a capacidade de redizer o que foi dito. A tentativa que fizeram de enclausurar o seu sentido acaba por abrir a possibilidade de novos sentidos. Essa possibilidade realça um tipo de leitura que se aproxima da HP: a tarefa do intérprete de introduzir sentido no texto com novos questionamentos que produzirão, por sua vez, novas respostas, novos sentidos.” (CUNHA, C. Hermenêutica libertadora: encontro entre católicos e pentecostais. São Paulo: Garimpo, 2016. p. 186).

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