Por David F. Wells
O marxismo já foi considerado por alguns uma heresia cristã.
Ele tem a forma da fé, mas o conteúdo do humanismo ateu. O marxismo tem fortes
semelhanças com a fé cristã e divergências importantes. A teologia cristã
concorda com a análise inicial de Marx, isto é, a avaliação da discrepância
fundamental do ser humano entre ser e dever ser. Ele concorda com a percepção da
necessidade da mudança moral básica e constante, como de constante consciência
autocrítica. A fé cristã, baseada na Bíblia, lida com essa tarefa moral
socialmente relevante; ela não consiste apenas em um sistema de cosmologia ou
um conjunto peculiar de costumes étnicos. Na verdade, ela insiste na
centralidade da mudança moral e não permite seu desaparecimento periódico em
ondas alternadas de dogmatismo e pragmatismo.
Jesus, depois de alimentar as multidões, não permitiu que o
considerassem apenas um fornecedor estimado de provisões materiais (Jo 6.15). O
cristianismo, também, se importa que todos tenham as necessidades da vida
providas. Mas também sustenta que “nem só de pão viverá o homem, mas de toda
palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4) – versículo algumas vezes citado
por líderes marxistas, embora apenas a primeira parte! Do ponto de vista
cristão, viver consiste em realizar a vontade divina, não buscar o próprio
bem-estar. O materialismo inato aplica um truque sujo no marxismo nesse ponto,
por meio de uma meia-verdade que muitas vezes se apresenta como a plenitude do
evangelho. Na verdade, precisamos de pão, mas não podemos nos contentar quando
o temos. Meios materiais não resolvem problemas morais, certamente não quando
os problemas são vistos sob o domínio do ego.
Além disso, a fé cristã concorda com Marx a respeito da
necessidade de mudança na vida, no trabalho e nos relacionamentos entre os
seres humanos (ou seja, na aplicação individual). Embora o cristianismo
contemple a necessidade de mudanças nas instruções sociais e na legislação,
enfatize o indivíduo principalmente, acima das alterações apenas nos métodos,
estruturas, nas leis ou nos oficiais – e que os marxistas tantas vezes parecem
propagar. O cristianismo é completamente cético em relação a esquemas globais
de salvação social, esquemas que os seres humanos são notoriamente incapazes de
pôr em prática.
Por fim, a teologia cristã concorda com Marx que essa
mudança nos seres humanos deve ocorrer no sentido de que todos se importem com
as outras pessoas e com a humanidade. Marx aqui está bastante certo ao
identificar o enigma da alienação moral da humanidade: a falta de consideração
para com o próximo. Não pode haver lugar no cristianismo para o cinismo que
finge tentar estabelecer uma sociedade mais justa e fraterna. Os problemas
morais envolvidos na manutenção da vida humana e na associação humana não
desaparecem se forem ignorados, mas precisam de constante atenção, não menos no
Ocidente que no Oriente. Como engendrar um comportamento socialmente
responsável é de fato um problema de relevância imediata em países cuja cultura
é dominada pela filosofia da “geração do eu”.
Em suma, a teologia cristã apoia o conceito da conversão
concreta. No entanto, a fé bíblica também chama à conversão completa no sentido
de a pessoa se voltar não apenas para o próximo, mas para Deus. Isso é
fundamental quanto à motivação. A menos que Deus seja o objetivo e o penhor,
não há razão para a manutenção de padrões morais absolutos. Quando Deus é
ignorado, e as mudanças se baseiam apenas na autoridade humana, o relativismo moral
é inevitável porque o poder da determinação moral é dado a indivíduos ou grupos
seletos que facilmente confundem padrões morais com seus interesses. Mesmo no
mais elevado dos casos, a desonestidade, pelo bem da causa, pode tornar-se
desonestidade por causa de algum objetivo pessoal sem possibilidade de correção. O
relativismo moral também significa o fim do discurso moral entre todos os
envolvidos. Ele não pode ser contido, e acaba se voltando contra seus primeiros
defensores mais bem-intencionados. Nesse ponto, o compromisso do cristianismo
com a justiça logicamente exige padrões morais absolutos, e eles são
impensáveis sem a autoridade de Deus.
O mesmo é verdadeiro no campo da motivação. O grupo, o
coletivo, a sociedade e o Estado são fundamentalmente incapazes como
motivadores do altruísmo. A vontade individual sem dúvida questiona as
exigências morais alheias. Lidamos aqui com o problema da possibilidade da
existência da moralidade sem a religião. Parece haver profunda sabedoria nas
cláusulas do Antigo Testamento que apoiam exigências éticas na autoridade
divina: “Não explorem um ao outro […]. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv
25.17; cf. Gn 50.9).
Outro problema é como as exigências morais objetivas podem
ser subjetivadas ou internalizadas. A teologia cristã duvida da capacidade da
educação, ou da mera apresentação de ideias, para produzir a mudança moral. O
marxismo prossegue com esse discurso, e deve ser visto como idealista. Às vezes
se tem a impressão, em países socialistas, que as fortes forças do nacionalismo
são empregadas como motivadores em direção à meta moral pretendida. Mas isso,
como a reintrodução periódica dos princípios capitalistas no caminho para o
socialismo, parece apenas mais uma tentativa de “atravessar o rio nas costas do
crocodilo”; o nacionalismo sem dúvida não cria o “homem novo” da “irmandade humana”,
mas pode facilmente se tornar uma das mais potentes e desagradáveis encarnações
do “velho homem”.
“Medidas administrativas”, ou que pressionem as pessoas para
que se comportem com correção, provaram-se ineficientes. A aplicação da força –
onde, lembremos, busca-se a mudança moral fundamental – produz apenas
hipocrisia, falta de confiança e, de maneira generalizada, reconstitui com
exatidão o que se considerava o problema, no início. Educação e acompanhamento
são medidas externas que não penetram no coração. É inútil pensar que o pecador
pode realizar a própria conversão, ou pior, a dos outros. Não ocorrerá a
conversão do próximo sem a conversão de Deus. A redescoberta do próximo sem a
redescoberta de Deus e vã; o ateísmo marxista causa estragos com suas próprias
metas elevadas.
Por isso o jovem Marx, depois de ter esboçado o problema do
homem como o único ser na criação que não cumpre seu objetivo, continuou a
afirmar que o cristianismo é necessário para o desenvolvimento moral completo.
O cristianismo, acima de tudo, ressalta a questão da internalização do bem, de
modo que ele se torne uma expressão espontânea do crente. Onde as pessoas
encontraram Jesus, a mudança moral (como na história de Zaqueu, o cobrador de
impostos) não surgiu como consequência de uma ordem, mas apareceu de modo
espontâneo, a evolução de uma necessidade, não de coerção. Também por isso
Agostinho, Bernardo e Calvino se referem ao “testemunho interno” do Espírito de
Deus, que autoriza a mensagem objetiva anunciada e se torna a propriedade mais
íntima da pessoa. Isso efetua a mudança no “coração”, no centro de motivação, e
ultrapassa a mudança moral como postulado. Fala do amor como dom divino,
derramado em nosso coração (Rm 5.5). Sem ele, procuraremos em vão pela mudança
moral que combine autocrítica e a dedicação inabalável aos padrões absolutos do
que é certo.
O idealismo dos marxistas muitas vezes é admirável, mas a
sua visão e programa são fatalmente falhos pela avaliação do egoísmo e da
injustiça, e do perdão e da mudança. No entanto, por mais triste que a história
da fé cristã às vezes seja, ela gerou no mundo homens e mulheres criativos e de
coragem que mudaram profundamente o curso da vida. E isso pode acontecer de
novo! Pois o mesmo Deus que sustenta a vida, governa nosso mundo, regula a
ordem moral e dirige o curso da história ainda está chamando pessoas, da mesma
maneira, por meio do mesmo evangelho, na mesma vida baseada na ressurreição de
Jesus para servi-lo e preservar o que é bom, reto e honroso no mundo. As ondas
de materialismo, prático ou teórico, parecem montanhas imponentes, com enorme
poder e apelo irresistível, mas sempre elas, também, batem contra a dura
realidade da vida. Homens e mulheres foram feitos por Deus. Apesar do alardeado
idealismo, de um lado, e dos artigos de consumo e Porsches, de outro, o coração
humano está sempre inquieto, até encontrar seu descanso em Deus.
***
Trecho extraído da obra “Volte-se para Deus – A conversão
cristã como única, necessária e sobrenatural”, de David F. Wells, publicado por
Shedd Publicações: São Paulo, 2016, p. 182-187. Traduzido por Vivian do
Amaral Nunes. Publicado com permissão. Via: Tuporém