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27 de out. de 2016

Wiclif e Huss: A Reforma Pela Palavra

Por Leandro Lima

Introdução

Quando se pensa na Reforma Protestante, dois nomes logo vêm a mente: Lutero e Calvino. Em geral, as pessoas acham que somente esses dois homens foram responsáveis por todo o movimento que deu origem à Reforma. Sem querer diminuir a grande importância deles, precisa ser dito que outros, alguns contemporâneos a Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564), como Zwinglio, Melanchton, Bucer, Ecolampadio, Knox, também podem ser chamados reformadores, e que muito contribuíram para o retorno à fé evangélica. E, mesmo antes de todos esses, houve movimentos reformistas dentro da igreja que, por certo, contribuíram para a Reforma. Vimos em lição anterior, por exemplo, o movimento dos valdenses. Mas, há dois homens, em especial, que podem ser considerados precursores da Reforma Protestante. São eles John Wyclif[1] (1330-1384) e Jan Hus[2] (1374-1415).

I. Os precursores da Reforma

Hus pode ser considerado um discípulo de Wyclif, pelo menos no sentido teológico. Wyclif trabalhou na Inglaterra, foi teólogo de Oxford, reconhecido por sua erudição, bem visto pelo povo e apoiado pelos nobres.
Wyclif começou a entrar em atrito com a igreja quando passou a pregar:
– A “pobreza apostólica”
– A Escritura como única lei da igreja
– Os eleitos são a igreja, não o Papa e os cardeais
– Cristo como o cabeça da igreja, não o Papa
Embora não tenha rejeitado de todo o papado, entendia que um Papa que aspira poder humano e tem ânsias por impostos nem sequer poderia ser um eleito. Essa idéia de eleição, Wyclif a extraiu principalmente dos ensinos de Agostinho. Mas, com certeza a maior contribuição de Wyclif para a Reforma foi ter colocado a Bíblia na língua do povo. Convicto de que ela era a única lei da igreja, direcionou todos os seus esforços para traduzi-la do latim. Com a ajuda de Nicolau de Hereford, que traduziu o Antigo Testamento, a Bíblia foi traduzida para o inglês. A obra durou de 1382 a 1384. Wyclif e seus seguidores, os “lolardos” foram muito perseguidos pela igreja, que considerou heréticos os seus ensinos. Se Wyclif não foi martirizado, isso se deve, humanamente falando, à proteção que possuía dos nobres da Inglaterra. Mas muitos de seus seguidores foram mortos. A igreja esforçou-se para sufocar as idéias de Wyclif e tentou destruir as traduções da Bíblia, mas pelo menos 150 manuscritos sobreviveram. Curiosamente, a maior influência de Wyclif se fez sentir na Boêmia, onde alguns estudantes de Oxford difundiram suas idéias na Universidade de Praga.
Nessa escola estudou e dela mais tarde veio a ser reitor, um filho de camponeses, de Husinecz (donde veio o nome Hus), chamado Jan Hus. As mesmas doutrinas que Wyclif defendeu, foram também defendidas por Hus. Para ele o cabeça da igreja é Cristo, os membros são os predestinados e a lei é a Escritura. Tanto Wyclif quanto Hus tinham suas idéias fundamentadas na Bíblia, o que os tornava ainda mais ardentes na defesa do Cristianismo verdadeiro.
Como Wyclif, Hus também foi perseguido, mas embora fosse um verdadeiro herói nacional da Boêmia, foi traído pelo Imperador Sigismundo que lhe deu um salvo-conduto para se apresentar diante do Concílio de Constança, mas o revogou assim que ele chegou lá.[3] Indefeso diante do Concílio, heroicamente defendeu suas idéias e se recusou a voltar atrás em suas posições, salvo se fosse convencido de erro. Consciente de que suas conclusões eram bíblicas e, portanto, verdadeiras, enfrentou corajosamente a morte, sendo queimado em 6 de julho de 1415. Cem anos depois, Lutero retomaria o caminho de Hus e Wyclif em defesa da Palavra de Deus e da igreja verdadeira.[4]

II. A Descoberta da Palavra de Deus (2Rs 22.3-10)
A Reforma do século 16 foi uma volta à Bíblia. O mesmo pode ser dito também dos períodos de genuíno avivamento. Foi assim com Lutero que, ao estudar a carta de Paulo aos Romanos, descobriu que a salvação é pela graça mediante a fé. Calvino também reconduziu o retorno à Bíblia com as suas Institutas e seus comentários de quase todos os livros da Bíblia, enquanto aplicava a reforma da religião cristã na cidade de Genebra. O movimento de Wyclif e Hus também foi uma descoberta da Bíblia. Graças à tradução de Wyclif, que colocou a Bíblia na língua do povo, e ao zelo ardente de Hus pela Palavra de Deus, aquele obscuro período da história da igreja não ficou sem um testemunho fiel.

Em 2 Reis lemos sobre uma ocasião de reforma na vida do povo de Israel que começou com a descoberta da Palavra de Deus. Josias começou a reinar com 8 anos de idade e agradou ao Senhor, andando nos caminhos de Davi (2Rs 22.1,2). Mas ele recebeu um reino deteriorado. Seu pai Amom e seu avô Manassés haviam maus e idólatras. Manassés levantou altares a Baal, fez um poste-ídolo e se prostrou diante dele. Chegou mesmo a colocar ídolos dentro da área do templo do Senhor. Se não bastasse, ainda queimou um de seus filhos como sacrifício aos deuses pagãos (2Rs 21.1-7). Amom, filho de Manassés, andou nos mesmos caminhos de seu pai, serviu aos ídolos e os adorou (2Rs 21.21,22). Dá para imaginar a caótica situação em que se encontrava Judá depois desses dois reis, com a idolatria dominante e o templo abandonado, semidestruído. Josias assumiu o trono e queria mudanças, mas como fazê-las? No décimo oitavo ano de seu reinado ele decidiu reformar o templo. Foi então que, pela misericórdia de Deus, encontrou no próprio templo o livro da lei, provavelmente Deuteronômio. O livro foi achado pelo sacerdote Hilquias que o entregou a Safã, escrivão, que o leu diante de Josias (2Rs 22.8-10). Aquele achado mudou completamente a história da nação. Uma poderosa reforma se estabeleceu a partir daquela descoberta.
III. Quebrantamento pessoal (2Rs 22.11,19)
Muitas pessoas ouvem a Palavra de Deus, mas parece que nada acontece em sua vida. Nenhuma diferença, nenhuma transformação, nenhum quebrantamento. Esse não foi o caso de Josias. O texto diz que, quando o escrivão Safã leu o livro perante ele, “tendo o rei ouvido as palavras do livro da lei, rasgou as suas vestes” (2Rs 22.11). Mais tarde o próprio Senhor disse de Josias: “porquanto o teu coração se enterneceu, e te humilhaste perante o Senhor, quando ouviste o que falei contra este lugar, e contra os seus moradores, que seriam para assolação e para maldição, e rasgaste as tuas vestes, e choraste perante mim, também eu te ouvi, diz o Senhor” (2Rs 22.19). Foi grande o quebrantamento pessoal de Josias ao ouvir a Palavra de Deus. Ele entendeu naquela hora toda a situação em que se encontrava a nação e o castigo iminente de Deus. Ele sabia que suas próprias mãos, por mais que se esforçasse, não eram de todo limpas. Ele entendeu sua pecaminosidade e também a do povo, e entendeu que uma enorme reforma era necessária, não só no templo, mas na vida de toda a nação. É isso o que a Palavra de Deus produz na vida dos verdadeiros crentes. Foi isso que ela produziu na vida de Lutero, Calvino, Hus e Wyclif. O quebrantamento pessoal é o primeiro passo para uma reforma. Sem reconhecimento de culpa não há como o ser humano se aproximar de Deus. Deus não abençoa o soberbo, pois duas vezes a Escritura diz que Deus “resiste aos soberbos, contudo aos humildes concede a sua graça” (Tg 4.6; 1Pe 5.5). E a Escritura ainda afirma: “… assim diz o Alto, o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e vivificar o coração dos contritos” (Is 57.15).
IV. Renovação da Aliança (2Rs 23.1-3)
O próximo passo de Josias foi renovar a aliança da nação com Deus. Ele convocou todo o povo, subiu até a casa do Senhor, e leu diante do povo todas as palavras do livro da aliança (2Rs 23.1,2). Em seguida, “o rei fez aliança ante o Senhor, para o seguirem, guardarem os seus mandamentos, os seus testemunhos e os seus estatutos, de todo coração e de toda a alma” (2Rs 23.3). Todo o povo concordou com aquela aliança.
Esse ato do rei de fazer aliança com Deus decorreu do entendimento que veio da Escritura de que, desde os dias de Manassés, o povo havia quebrado o pacto com o Senhor. O encontro com a Palavra produz essa reafirmação de compromisso que é a segunda etapa de uma reforma autêntica.
Renovar a aliança é necessário para que voltemos a experimentar as expressões divinas de misericórdia e graça e não as de juízo. Deus não se relaciona senão por meio de sua aliança. O povo experimentava as conseqüências de haver transgredido o pacto. Todas as maldições decorrentes dessa quebra já estavam começando a vir e outras bem piores aguardavam no futuro. Mas, quando a aliança é renovada, os pecados são perdoados e a bênção retorna. Foi o que Josias aprendeu no livro redescoberto (Dt 29.1 – 30.20).
V. Reforma no culto (2Rs 23.4-23)           
Depois de renovar a aliança, Josias se lançou a uma difícil, mas importante tarefa. Reformar o culto da nação. Já vimos um pouco sobre os atos de Amom e Manassés. De fato, era caótica a situação religiosa do povo. A primeira atitude de Josias foi tirar do templo de Deus todos os utensílios profanos e os queimar fora de Jerusalém (2Rs 23.4). Esses utensílios eram impróprios para o templo. Não deviam estar ali.
Uma reforma verdadeira purifica o templo das coisas que não são lícitas. Wyclif e Hus lutaram contra o misticismo e o sacramentalismo de sua época. Para esses homens e seus discípulos, somente o que a Bíblia autorizava podia ser usado no culto a Deus. O que a Bíblia proíbe não pode ser mantido na adoração do povo de Deus.
A próxima atitude de Josias foi destituir os sacerdotes que haviam sido instituídos para queimarem incenso aos deuses (2Rs 23.5). Também tirou o abominável poste-ídolo que estava dentro da casa do Senhor e o queimou no vale do Cedron (2Rs 23.6). Uma reforma tira todos os ídolos da casa de Deus e destitui do serviço sagrado aqueles que não são dignos de estarem aí. Em seguida, Josias derrubou as casas de prostituição-cultual, que haviam sido colocadas dentro da casa do Senhor. Essas prostitutas eram tidas como sagradas e moravam dentro do templo, mantendo relações sexuais com todos os que quisessem, sendo que isso era considerado não só uma diversão, mas um ato de culto aos deuses ou deusas da fertilidade. Depois Josias começou a reformar a nação fora do templo. Profanou altos, destruiu altares, arruinou homenagens que eram dadas aos deuses e não poupou qualquer tipo de idolatria ou perversão.
A reforma do culto realizada por Josias não consistiu apenas de retirar coisas impróprias. Ele também incluiu o que era certo e que havia sido abandonado. Josias havia lido no livro da lei sobre a importância de celebrar a Páscoa ao Senhor. Então convocou todo o povo para essa celebração. Foi a maior Páscoa celebrada em Jerusalém desde que a nação havia sido estabelecida (2Rs 23.21,22). Isso significa que o culto voltou a ser bíblico e fervoroso, de acordo com a vontade do Senhor.
Uma reforma produz esse tipo de mudança. Tudo o que não é próprio é retirado. É hora de ser radical. Mesmo que muitos gostem. Aliás, o objetivo máximo do culto não é agradar o povo, mas o Senhor. Mas, não basta retirar o que está errado. É preciso também acrescentar os elementos bíblicos ausentes. Uma das principais lutas de Jan Hus foi com relação à Ceia do Senhor. Hus e seus seguidores insistiam em administrar o cálice de vinho ao povo e não somente aos sacerdotes, como já era prática na igreja romana.
VI. Reforma na vida (2Rs 23.24,25)
Josias preocupou-se também em mudar a vida do povo. Tirou os ídolos do templo e também das casas (2Rs 23.24). Isso é fundamental numa reforma religiosa. Não adianta mudar apenas a instituição religiosa se a prática cotidiana permanece corrompida. Sabiamente, Josias aboliu os feiticeiros, os médiuns, e todos os ídolos que se viam na terra de Judá.
Mas, certamente o maior exemplo de mudança foi ele próprio, de quem se diz que “antes dele não houve rei que lhe fosse semelhante, que se convertesse ao Senhor de todo o seu coração, e de toda a sua alma, e de todas as suas forças, segundo toda a lei de Moisés; e depois dele nunca se levantou outro igual” (2Rs 23.25). Todos os aspectos da vida foram afetados pela conversão e pela Palavra. Não foi um crente só de aparência. Verdadeiramente viveu a Palavra, mudou externa e internamente. Wyclif, Hus e Josias são exemplos do que o encontro com a Palavra de Deus produz. Hus teve coragem de até morrer por sua fé, pois sabia que não estava defendendo preceitos ou tradições dos homens, mas a pura e verdadeira Palavra de Deus. 
Conclusão
Toda Reforma verdadeira começa com a descoberta da Palavra de Deus e prossegue de acordo com a fidelidade a essa Palavra. Isso ficou bem claro no caso de Josias, e pode ser visto também na Reforma Protestaste, e como vimos, antes mesmo, nos chamados pré-reformadores John Wyclif e John Hus. O respeito desses homens à Escritura, bem como o desejo de que ela fosse acessível a todos os homens é uma das mais importantes marcas da obra deles. Precisamos de reforma hoje também, mas ela precisa começar pela Palavra de Deus, pois somente assim, teremos a garantia de que será bem sucedida.
Aplicação
Que efeitos a Palavra de Deus tem produzido na sua vida? Será que, o ouvir, domingo após domingo a Palavra tem feito de você um crente mais fiel? O que você pode fazer para que uma reforma também aconteça na sua vida e na vida da sua igreja?

***

[3] Nos dias de Hus ocorreu uma crise de autoridade na Igreja Católica. Em 1305, sob pressão do rei da França, a sede do papado foi transferida de Roma para Avignon, na França, onde permaneceu por 70 anos (Esse período é chamado de Cativeiro Babilônico do papado.). Em 1376 o papa retornou para Roma. Mas logo depois ele morreu e os cardeais, franceses na maioria, estavam dispostos a eleger um papa francês. O povo de Roma se opôs, temendo que um papa francês reconduzisse a sede do papado para a França. Os cardeais, então, elegeram um papa italiano, mas os delegados da França reuniram-se em outro lugar e elegeram um papa francês, alegando que a primeira eleição fora inválida. Assim passou a haver dois (depois três) papas. O Concílio de Constança foi convocado para resolver o impasse. Um dos papas reconheceu os poderes do Concílio e abdicou. O Concílio proclamou que sempre tinha havido um só papa verdadeiro, depôs os outros dois e elegeu um novo para, encerrando assim o que passou à História como “O Grande Cisma”. Como Hus ensinava que o papado não provinha de Deus, sua posição não podia ser nem de longe tolerada. Acusado de heresia, foi queimado em julho de 1415.

[4] Os seguidores de Hus tornaram-se conhecidos como Irmandade Tchecae mais tarde como Os Moravianos. A Igreja Morávia sobrevive até hoje. No século 16 exerceu considerável influência sobre o movimento luterano. Após Lutero haver afixado as suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, cartoons e graffti passaram a sugerir que ele era herdeiro espiritual de Hus.

Fonte: Ultimato

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