Introdução
Quando se pensa na Reforma Protestante, dois nomes logo vêm a mente:
Lutero e Calvino. Em geral, as pessoas acham que somente esses dois homens
foram responsáveis por todo o movimento que deu origem à Reforma. Sem querer
diminuir a grande importância deles, precisa ser dito que outros, alguns
contemporâneos a Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564), como
Zwinglio, Melanchton, Bucer, Ecolampadio, Knox, também podem ser chamados
reformadores, e que muito contribuíram para o retorno à fé evangélica. E, mesmo
antes de todos esses, houve movimentos reformistas dentro da igreja que, por
certo, contribuíram para a Reforma. Vimos em lição anterior, por exemplo, o
movimento dos valdenses. Mas, há dois homens, em especial, que podem ser
considerados precursores da Reforma Protestante. São eles John Wyclif[1] (1330-1384) e Jan Hus[2] (1374-1415).
I. Os precursores da Reforma
Hus pode ser
considerado um discípulo de Wyclif, pelo menos no sentido teológico. Wyclif
trabalhou na Inglaterra, foi teólogo de Oxford, reconhecido por sua erudição,
bem visto pelo povo e apoiado pelos nobres.
Wyclif
começou a entrar em atrito com a igreja quando passou a pregar:
– A “pobreza
apostólica”
– A
Escritura como única lei da igreja
– Os eleitos
são a igreja, não o Papa e os cardeais
– Cristo
como o cabeça da igreja, não o Papa
Embora não
tenha rejeitado de todo o papado, entendia que um Papa que aspira poder humano
e tem ânsias por impostos nem sequer poderia ser um eleito. Essa idéia de
eleição, Wyclif a extraiu principalmente dos ensinos de Agostinho. Mas, com
certeza a maior contribuição de Wyclif para a Reforma foi ter colocado a Bíblia
na língua do povo. Convicto de que ela era a única lei da igreja, direcionou
todos os seus esforços para traduzi-la do latim. Com a ajuda de Nicolau de
Hereford, que traduziu o Antigo Testamento, a Bíblia foi traduzida para o
inglês. A obra durou de 1382 a 1384. Wyclif e seus seguidores, os “lolardos”
foram muito perseguidos pela igreja, que considerou heréticos os seus ensinos.
Se Wyclif não foi martirizado, isso se deve, humanamente falando, à proteção
que possuía dos nobres da Inglaterra. Mas muitos de seus seguidores foram
mortos. A igreja esforçou-se para sufocar as idéias de Wyclif e tentou destruir
as traduções da Bíblia, mas pelo menos 150 manuscritos sobreviveram.
Curiosamente, a maior influência de Wyclif se fez sentir na Boêmia, onde alguns
estudantes de Oxford difundiram suas idéias na Universidade de Praga.
Nessa escola
estudou e dela mais tarde veio a ser reitor, um filho de camponeses, de
Husinecz (donde veio o nome Hus), chamado Jan Hus. As mesmas doutrinas que
Wyclif defendeu, foram também defendidas por Hus. Para ele o cabeça da igreja é
Cristo, os membros são os predestinados e a lei é a Escritura. Tanto Wyclif
quanto Hus tinham suas idéias fundamentadas na Bíblia, o que os tornava ainda
mais ardentes na defesa do Cristianismo verdadeiro.
Como Wyclif, Hus também foi perseguido, mas embora fosse um verdadeiro
herói nacional da Boêmia, foi traído pelo Imperador Sigismundo que lhe deu um
salvo-conduto para se apresentar diante do Concílio de Constança, mas o revogou
assim que ele chegou lá.[3] Indefeso diante do Concílio,
heroicamente defendeu suas idéias e se recusou a voltar atrás em suas posições,
salvo se fosse convencido de erro. Consciente de que suas conclusões eram
bíblicas e, portanto, verdadeiras, enfrentou corajosamente a morte, sendo
queimado em 6 de julho de 1415. Cem anos depois, Lutero retomaria o caminho de
Hus e Wyclif em defesa da Palavra de Deus e da igreja verdadeira.[4]
II. A
Descoberta da Palavra de Deus (2Rs 22.3-10)
A Reforma do século 16 foi uma volta à Bíblia. O mesmo pode ser dito
também dos períodos de genuíno avivamento. Foi assim com Lutero que, ao estudar
a carta de Paulo aos Romanos, descobriu que a salvação é pela graça mediante a
fé. Calvino também reconduziu o retorno à Bíblia com as suas Institutas e seus comentários de quase todos os
livros da Bíblia, enquanto aplicava a reforma da religião cristã na cidade de
Genebra. O movimento de Wyclif e Hus também foi uma descoberta da Bíblia.
Graças à tradução de Wyclif, que colocou a Bíblia na língua do povo, e ao zelo
ardente de Hus pela Palavra de Deus, aquele obscuro período da história da
igreja não ficou sem um testemunho fiel.
Em 2 Reis
lemos sobre uma ocasião de reforma na vida do povo de Israel que começou com a
descoberta da Palavra de Deus. Josias começou a reinar com 8 anos de idade e
agradou ao Senhor, andando nos caminhos de Davi (2Rs 22.1,2). Mas ele recebeu
um reino deteriorado. Seu pai Amom e seu avô Manassés haviam maus e idólatras.
Manassés levantou altares a Baal, fez um poste-ídolo e se prostrou diante dele.
Chegou mesmo a colocar ídolos dentro da área do templo do Senhor. Se não
bastasse, ainda queimou um de seus filhos como sacrifício aos deuses pagãos
(2Rs 21.1-7). Amom, filho de Manassés, andou nos mesmos caminhos de seu pai,
serviu aos ídolos e os adorou (2Rs 21.21,22). Dá para imaginar a caótica
situação em que se encontrava Judá depois desses dois reis, com a idolatria
dominante e o templo abandonado, semidestruído. Josias assumiu o trono e queria
mudanças, mas como fazê-las? No décimo oitavo ano de seu reinado ele decidiu
reformar o templo. Foi então que, pela misericórdia de Deus, encontrou no
próprio templo o livro da lei, provavelmente Deuteronômio. O livro foi achado
pelo sacerdote Hilquias que o entregou a Safã, escrivão, que o leu diante de
Josias (2Rs 22.8-10). Aquele achado mudou completamente a história da nação.
Uma poderosa reforma se estabeleceu a partir daquela descoberta.
III.
Quebrantamento pessoal (2Rs 22.11,19)
Muitas
pessoas ouvem a Palavra de Deus, mas parece que nada acontece em sua vida.
Nenhuma diferença, nenhuma transformação, nenhum quebrantamento. Esse não foi o
caso de Josias. O texto diz que, quando o escrivão Safã leu o livro perante
ele, “tendo o rei ouvido as palavras do livro da lei, rasgou as suas vestes”
(2Rs 22.11). Mais tarde o próprio Senhor disse de Josias: “porquanto o teu
coração se enterneceu, e te humilhaste perante o Senhor, quando ouviste o que
falei contra este lugar, e contra os seus moradores, que seriam para assolação
e para maldição, e rasgaste as tuas vestes, e choraste perante mim, também eu
te ouvi, diz o Senhor” (2Rs 22.19). Foi grande o quebrantamento pessoal de
Josias ao ouvir a Palavra de Deus. Ele entendeu naquela hora toda a situação em
que se encontrava a nação e o castigo iminente de Deus. Ele sabia que suas
próprias mãos, por mais que se esforçasse, não eram de todo limpas. Ele
entendeu sua pecaminosidade e também a do povo, e entendeu que uma enorme
reforma era necessária, não só no templo, mas na vida de toda a nação. É isso o
que a Palavra de Deus produz na vida dos verdadeiros crentes. Foi isso que ela
produziu na vida de Lutero, Calvino, Hus e Wyclif. O quebrantamento pessoal é o
primeiro passo para uma reforma. Sem reconhecimento de culpa não há como o ser
humano se aproximar de Deus. Deus não abençoa o soberbo, pois duas vezes a
Escritura diz que Deus “resiste aos soberbos, contudo aos humildes concede a
sua graça” (Tg 4.6; 1Pe 5.5). E a Escritura ainda afirma: “… assim diz o Alto,
o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no alto
e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para
vivificar o espírito dos abatidos e vivificar o coração dos contritos” (Is
57.15).
IV.
Renovação da Aliança (2Rs 23.1-3)
O próximo
passo de Josias foi renovar a aliança da nação com Deus. Ele convocou todo o
povo, subiu até a casa do Senhor, e leu diante do povo todas as palavras do
livro da aliança (2Rs 23.1,2). Em seguida, “o rei fez aliança ante o Senhor,
para o seguirem, guardarem os seus mandamentos, os seus testemunhos e os seus
estatutos, de todo coração e de toda a alma” (2Rs 23.3). Todo o povo concordou
com aquela aliança.
Esse ato do
rei de fazer aliança com Deus decorreu do entendimento que veio da Escritura de
que, desde os dias de Manassés, o povo havia quebrado o pacto com o Senhor. O
encontro com a Palavra produz essa reafirmação de compromisso que é a segunda
etapa de uma reforma autêntica.
Renovar a
aliança é necessário para que voltemos a experimentar as expressões divinas de
misericórdia e graça e não as de juízo. Deus não se relaciona senão por meio de
sua aliança. O povo experimentava as conseqüências de haver transgredido o
pacto. Todas as maldições decorrentes dessa quebra já estavam começando a vir e
outras bem piores aguardavam no futuro. Mas, quando a aliança é renovada, os
pecados são perdoados e a bênção retorna. Foi o que Josias aprendeu no livro
redescoberto (Dt 29.1 – 30.20).
V. Reforma no culto (2Rs 23.4-23)
Depois de
renovar a aliança, Josias se lançou a uma difícil, mas importante tarefa.
Reformar o culto da nação. Já vimos um pouco sobre os atos de Amom e Manassés.
De fato, era caótica a situação religiosa do povo. A primeira atitude de Josias
foi tirar do templo de Deus todos os utensílios profanos e os queimar fora de
Jerusalém (2Rs 23.4). Esses utensílios eram impróprios para o templo. Não
deviam estar ali.
Uma reforma
verdadeira purifica o templo das coisas que não são lícitas. Wyclif e Hus
lutaram contra o misticismo e o sacramentalismo de sua época. Para esses homens
e seus discípulos, somente o que a Bíblia autorizava podia ser usado no culto a
Deus. O que a Bíblia proíbe não pode ser mantido na adoração do povo de Deus.
A próxima
atitude de Josias foi destituir os sacerdotes que haviam sido instituídos para
queimarem incenso aos deuses (2Rs 23.5). Também tirou o abominável poste-ídolo
que estava dentro da casa do Senhor e o queimou no vale do Cedron (2Rs 23.6).
Uma reforma tira todos os ídolos da casa de Deus e destitui do serviço sagrado
aqueles que não são dignos de estarem aí. Em seguida, Josias derrubou as casas
de prostituição-cultual, que haviam sido colocadas dentro da casa do Senhor.
Essas prostitutas eram tidas como sagradas e moravam dentro do templo, mantendo
relações sexuais com todos os que quisessem, sendo que isso era considerado não
só uma diversão, mas um ato de culto aos deuses ou deusas da fertilidade.
Depois Josias começou a reformar a nação fora do templo. Profanou altos,
destruiu altares, arruinou homenagens que eram dadas aos deuses e não poupou
qualquer tipo de idolatria ou perversão.
A reforma do
culto realizada por Josias não consistiu apenas de retirar coisas impróprias.
Ele também incluiu o que era certo e que havia sido abandonado. Josias havia
lido no livro da lei sobre a importância de celebrar a Páscoa ao Senhor. Então
convocou todo o povo para essa celebração. Foi a maior Páscoa celebrada em
Jerusalém desde que a nação havia sido estabelecida (2Rs 23.21,22). Isso
significa que o culto voltou a ser bíblico e fervoroso, de acordo com a vontade
do Senhor.
Uma reforma
produz esse tipo de mudança. Tudo o que não é próprio é retirado. É hora de ser
radical. Mesmo que muitos gostem. Aliás, o objetivo máximo do culto não é
agradar o povo, mas o Senhor. Mas, não basta retirar o que está errado. É
preciso também acrescentar os elementos bíblicos ausentes. Uma das principais
lutas de Jan Hus foi com relação à Ceia do Senhor. Hus e seus seguidores
insistiam em administrar o cálice de vinho ao povo e não somente aos
sacerdotes, como já era prática na igreja romana.
VI. Reforma na vida (2Rs 23.24,25)
Josias
preocupou-se também em mudar a vida do povo. Tirou os ídolos do templo e também
das casas (2Rs 23.24). Isso é fundamental numa reforma religiosa. Não adianta
mudar apenas a instituição religiosa se a prática cotidiana permanece
corrompida. Sabiamente, Josias aboliu os feiticeiros, os médiuns, e todos os
ídolos que se viam na terra de Judá.
Mas,
certamente o maior exemplo de mudança foi ele próprio, de quem se diz que
“antes dele não houve rei que lhe fosse semelhante, que se convertesse ao
Senhor de todo o seu coração, e de toda a sua alma, e de todas as suas forças,
segundo toda a lei de Moisés; e depois dele nunca se levantou outro igual” (2Rs
23.25). Todos os aspectos da vida foram afetados pela conversão e pela Palavra.
Não foi um crente só de aparência. Verdadeiramente viveu a Palavra, mudou
externa e internamente. Wyclif, Hus e Josias são exemplos do que o encontro com
a Palavra de Deus produz. Hus teve coragem de até morrer por sua fé, pois sabia
que não estava defendendo preceitos ou tradições dos homens, mas a pura e
verdadeira Palavra de Deus.
Conclusão
Toda Reforma
verdadeira começa com a descoberta da Palavra de Deus e prossegue de acordo com
a fidelidade a essa Palavra. Isso ficou bem claro no caso de Josias, e pode ser
visto também na Reforma Protestaste, e como vimos, antes mesmo, nos chamados
pré-reformadores John Wyclif e John Hus. O respeito desses homens à Escritura,
bem como o desejo de que ela fosse acessível a todos os homens é uma das mais
importantes marcas da obra deles. Precisamos de reforma hoje também, mas ela
precisa começar pela Palavra de Deus, pois somente assim, teremos a garantia de
que será bem sucedida.
Aplicação
Que efeitos
a Palavra de Deus tem produzido na sua vida? Será que, o ouvir, domingo após
domingo a Palavra tem feito de você um crente mais fiel? O que você pode fazer
para que uma reforma também aconteça na sua vida e na vida da sua igreja?
***
[3] Nos dias de Hus ocorreu uma crise de autoridade na Igreja Católica. Em 1305, sob pressão do rei da França, a sede do papado foi transferida de Roma para Avignon, na França, onde permaneceu por 70 anos (Esse período é chamado de Cativeiro Babilônico do papado.). Em 1376 o papa retornou para Roma. Mas logo depois ele morreu e os cardeais, franceses na maioria, estavam dispostos a eleger um papa francês. O povo de Roma se opôs, temendo que um papa francês reconduzisse a sede do papado para a França. Os cardeais, então, elegeram um papa italiano, mas os delegados da França reuniram-se em outro lugar e elegeram um papa francês, alegando que a primeira eleição fora inválida. Assim passou a haver dois (depois três) papas. O Concílio de Constança foi convocado para resolver o impasse. Um dos papas reconheceu os poderes do Concílio e abdicou. O Concílio proclamou que sempre tinha havido um só papa verdadeiro, depôs os outros dois e elegeu um novo para, encerrando assim o que passou à História como “O Grande Cisma”. Como Hus ensinava que o papado não provinha de Deus, sua posição não podia ser nem de longe tolerada. Acusado de heresia, foi queimado em julho de 1415.
[4] Os seguidores de Hus tornaram-se conhecidos como Irmandade Tchecae mais tarde como Os Moravianos. A Igreja Morávia sobrevive até hoje. No século 16 exerceu considerável influência sobre o movimento luterano. Após Lutero haver afixado as suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, cartoons e graffti passaram a sugerir que ele era herdeiro espiritual de Hus.
Fonte: Ultimato