É com prazer que publicamos mais uma entrevista. Agora com o pastor Igor Miguel, que é casado com a Juliana, pai do João, cristão reformado, teólogo, pedagogo e mestre em letras (língua hebraica) pela FFLCH/USP. Trabalhou por 6 anos com crianças e adolescentes vulneráveis como educador e consultor educacional em projetos sociais. Especialista em educação cognitiva na SERVED, uma organização internacional que trabalha com educação em contexto de crise, principalmente no Oriente Médio. Vice-presidente da AKET (Associação Kuyper de Estudos Transdisciplinares) e pastor na Igreja Esperança em Belo Horizonte - MG. Igor também escreve no seu blog Pensar...
Quem realizou a entrevista foi o pastor e nosso articulista Thomas Magnum. A entrevista trata sobre o papel da Igreja na Missão. Desejamos que este conteúdo seja enriquecedor e promova edificação e instrução para toda a Igreja brasileira.
Igor, o assunto
missionalidade ou igreja missional tem tomado boas proporções no Brasil,
principalmente por pensadores calvinistas. O que se quer dizer com igreja missional?
E qual é a diferença de uma abordagem missional para uma missionária?
Missionalidade é um modo de se
fazer missão. A elaboração de um termo novo é adequado quando serve para
identificar uma ênfase necessária ou a especificidade de um modo particular de
se fazer missão. Sabemos que o Evangelho não muda, mas as exigências
contextuais mudam drasticamente. Particularmente, o que se evidencia, é que em contextos urbanos
pós-cristãos e secularizados, ambientes culturais em que evangélicos são
rotulados por causa de maus exemplos (como no caso da imagem produzida pelo
neopentecostalismo) ou ambientes em que a pregação pública do Evangelho é
restrita por forças legais, o modo missional de testemunhar o Evangelho de
Cristo pode ser muito eficaz.
Há muitos livros sobre o conceito
de missionalidade. Mas, uma síntese conceitual que me ajuda a me localizar é
que missionalidade é uma missão encarnacional. Ou seja, ela se inspira no
movimento que o Verbo de Deus fez: o Logos tornou-se gente para se fazer
conhecido aos que salvava (Jo 1:14). A missionalidade é um modo de dar
testemunho, o que exige a presença da igreja de maneira intencional na vida
ordinária e nas relações humanas corriqueiras. Diferente de modelos de
evangelização em que não-cristãos são atraídos à igreja, nesse caso, a igreja
torna-se uma plataforma missional quando equipa e educa cristãos a darem
testemunho de Cristo nas relações concretas com a sociedade, no ambiente das
relações familiares, comunitárias, no trabalho ou na vida cultural. Muito
poderiam objetar a esta altura: “mas a evangelização sempre foi assim, não?” De
certa maneira, mas há uma diferença, quando intencionalmente nos engajamos em
relações humanas para que de maneira orgânica e relacional nossas vidas
legitimam o poder transformador do Evangelho.
Missionalidade exige um profundo
conhecimento da vida humana, exige penetração cultural sem mundanismo. Como
Keller afirma com frequência em seu livro “Igreja Centrada”: um cristão
missional é alguém que é igual e diferente ao mesmo tempo. Isto significa que
um cristão não pode ser um “alien” em termos culturais amplos. Ou seja, não
deve criar barreiras culturais desnecessárias. Por outro lado, seu modo de ver
a vida, de lidar com o sofrimento, com as relações humanas, de encarar o trabalho
e a cultura, dão testemunho de que ele é de outra “cidade”. E, é precisamente
aí, que o testemunho cristão emerge, pois desta maneira ele quebra caricaturas
sobre o que significa ser cristão e abre portas para o testemunho verbal da
boa-nova de Cristo. Por superação de barreiras culturais desnecessárias
entende-se que o cristão deve frequentar espaços comuns, ter conversas em
linguagem comum (evitar o “evangeliquês”), praticar esportes, ter hobbys, ir
aos teatros, ouvir boa música (não somente música gospel) e ter repertório
cultural para criar pontos de contato com a cultura onde está inserido. Claro
que esta relação com a cultura não é acrítica, ao contrário, cristãos tem um
modo particular de lidar com a cultura e tais contextos. E, é esta particularidade
que alavanca e oportuniza o testemunho do Evangelho.
Ao tratar sobre
missionalidade, qual é a ligação que tal assunto tem com cosmovisão cristã?
A cosmovisão cristã implica um
“imaginário social”, pra usar um termo do filósofo Charles Taylor. O cristão
imagina a existência a partir da narrativa bíblica criação-queda-redenção. Uma
cosmovisão cristã madura e bem-educada fornece critérios, competências
culturais e sabedoria para interagir com um ambiente sem ser absorvido por ele.
Ao mesmo tempo que consegue discernir os ídolos culturais e denunciá-los com a
mensagem do Evangelho. Por outro lado, se entendemos cosmovisão como uma
“mentalidade”, sabemos que nossa sociedade pós-moderna não quer apenas
“coerência lógica”, ela aspira por narrativas plausíveis, visões de boa vida e
sentido. Concordo com James K.A. Smith, filósofo cristão do Calvin College, de
que cristãos precisam viver e oferecer, mais do que uma mentalidade, mas uma
narrativa alternativa e melhor em lugar das inúmeras narrativas reducionistas
das sociedades secularizadas. Temos que ter a capacidade de oferecer uma
história definitiva que conduz os homens a seu florescimento, libertação e
pautada em virtudes como: fé, esperança e amor.
Autores como Tim Keller - que escreveu Igreja Centrada - e Michael Goheen - que escreveu Igreja Missional - tem
contribuído muito para formação de pensadores para missões urbanas. Como
devemos encarar esse desafio urbano em nosso atual contexto de igreja no
Brasil. Essa urbanidade da missão, de fato a um tipo de contextualização?
A missão urbana não é um luxo ou
uma “modinha” misssiológica. É um desafio real e crescente na missão
contemporânea. Keller traz dados importantes da ONU sobre a crescente
urbanização do mundo. Nas próximas décadas a tendência é que tenhamos mais da
metade da população mundial morando em algum grande centro urbano. Ou seja, o
cenário futuro da missão é que ela será predominantemente urbana. Entretanto, a missão urbana exige preparação,
há um fluxo muito intenso de diversidade cultural, forças migratórias, trocas
simbólicas, efervescência política e social. A cidade é complexa, o que exige
uma abordagem missionária igualmente complexa. É fundamental ao missionário e
ao cristão urbano um entendimento mais preciso das mazelas da cidade: solidão,
individualismo, narcisismo, hedonismo, pobreza e violência. Em contrapartida, o
cristão urbano tem que reconhecer as riquezas da cidade: produção cultural,
engajamento científico, produção de bens intelectuais, poder de sinergismo
humano por causas sociais e políticas legítimas, e influência.
A igreja precisa promover
treinamento missional para que cristãos criem relacionamentos significativos,
se interessem autenticamente pelas pessoas a seu redor, e que superem as forças
de isolamento social que impedem os vínculos necessários para o testemunho
evangélico. Cristãos precisam ser
treinados a acolher perguntas honestas para darem respostas honestas aos
problemas levantados a respeito da vida, cultura, Deus e espiritualidade.
Claro, este é o lado da penetração
cultural da igreja, em contrapartida, a igreja local tem um papel fundamental
quando se envolve em alto compromisso em manter seu púlpito cristocêntrico e
sermões contextualizados. Ou seja, o
membro da igreja deve se sentir seguro em levar um amigo cético ou de uma outra
religião para um culto. Deve ter certeza
que uma linguagem “inclusiva” será utilizada, que a mensagem será transmitida
de tal modo que o cristão seja edificado e o não-cristão evangelizado simultaneamente.
Claro, isto exige a noção, que Kevin Vanhoozer propõe do “pastor como teólogo
público”. Um pastor que fala em resposta às demandas de sua cultura sem alterar
a verdade evangélica.
Existem limites para
contextualização da missão?
Sem dúvida! A contextualização
não pode ser fundada em uma “ortodoxia generosa” como propõem protagonistas do
movimento chamado “igreja emergente” ou similares. No afã de nos tornarmos
relevantes corremos o risco de nos secularizarmos ou de sermos assimilados por
aspectos culturais estranhos ao Evangelho. Este, na verdade, é o grande desafio
da contextualização. Algumas igrejas, por receio de serem “mundanizadas”,
escolheram o caminho do isolamento cultural (como se isso fosse possível), o
que ironicamente conduzirá essa igreja à irrelevância por sua incapacidade de
comunicar antigas e importantes verdades em uma linguagem compreensível e que
alcance as questões mais profundas da vida humana. Por outro lado, não podemos
permitir que sejamos acometidos por uma ansiedade que nos leve a abrirmos
precedentes que acabam comprometendo, em não raros casos, o núcleo da verdade
evangélica.
Temos visto no Brasil um
reflorescer do pensamento voltado para a integralidade da missão, vemos também
que o que tem estado presente nesse reflorescimento é um relacionamento
ideológico que não era presente em 1974 por exemplo quando muito se discutia
sobre missão integral. Como você vê essa questão da ideologia sendo mesclada
com a teologia cristã da missão e quais são os perigos e talvez pontos
positivos dessa abordagem?
Indico os diversos textos
escritos pelo teólogo Guilherme de Carvalho sobre o tema, suas críticas são
importantes e não podem ser desprezadas no atual debate sobre a relação entre
ideologia e a teologia da missão integral. O livro Ortodoxia Integral, do filósofo
Pedro Dulci, também traz uma importante e atual contribuição para a reflexão.
Sendo muito direto: a missão
cristã é “proto-ideológica”, ou seja, antes do conceito moderno da
possibilidade de controle histórico da realidade, seja por livre iniciativa
racional ou monopólio estatal-coletivista, o cristianismo já estava em missão
pelo mundo. O que não significa que a missão cristã seja apolítica. Obviamente
que não! Afirmamos um Senhor que é soberano sobre toda realidade, e que Cristo,
crucificado e ressuscitado, subverteu todos os poderes deste século assumindo
“todo poder nos céus e na terra”. Por esta razão, cristãos impulsionados pela
Grande Comissão anunciam que não há área neutra e que todos os homens são
convidados, uma vez regenerados e justificados, a se tornarem membros do Reino
de Deus. A missão cristã deve ser integral no sentido de que a totalidade de
Cristo atinge a totalidade da vida humana, bem nos termos do Pacto de Lausanne.
Porém, o velho debate tem sido em termos metodológicos, ou seja, de que maneira
podemos fazer uma missão que seja integral? Pra muita gente, Cristo se
restringe à esfera confessional, seu senhorio e sua obra parecem perder força
quando chegam à esfera pública. A tentação é tão grande para alguns, que
parecem não encontrar recursos na fé evangélica para atuarem na dimensão da
pobreza, da vulnerabilidade, nos direitos humanos e em políticas públicas. O
que fazem então? Optam por uma ideologia e uma metodologia secular com raízes
na noção de autonomia humana (neste ponto nem a direita ou a esquerda são
inocentes), e assim, acabam comprando parcial ou totalmente o pacote
progressista como referência missiológica.
Temos que reconhecer que muitos
irmãos que estão no espectro progressista possuem sensibilidades que não podem ser
desprezadas: a profunda desigualdade social, alguns abusos antiéticos por parte
de corporações financeiras, relações abusivas inspiradas em racismo, o
machismo, a misoginia, os índices altíssimos de jovens negros mortos em
comunidades vulneráveis, a exclusão e a objetificação da mulher. Reconheço, me
preocupo e até me envolvo pessoalmente com algumas dessas pautas. (É importante
mencionar que nem todos esses problemas são adequadamente qualificados por
militantes ou adeptos a ideologias à esquerda). De qualquer forma, meu
questionamento não se dirige à pauta, mas à metodologia. Quando sirvo o pobre
com alguma ajuda financeira, ou criando oportunidades, ou quando trabalho no
campo da ciência para a promoção da pesquisa a partir de uma mentalidade cristã,
ou ainda, quando me engajo no campo político, a glória não pode ser de Darwin,
Howkings ou Marx, deve ser de Cristo. Para isso, preciso me valer de uma
metodologia baseada no radical senhorio de Jesus, e todas as implicações
inerentes a uma vida sob seu governo. Claro que, pra muita gente, isso seria
confundido com movimentos que se apropriaram de nomes como Kuyper e Dooyeweerd
e que propõem uma espécie de “dominação” teonomista da realidade. Nenhum dos
autores mencionados concordariam com tal experimento. Cristãos operam no mundo,
sem pretensões triunfalistas, ao mesmo tempo que evitam o quietismo anabatista.
Temos realmente uma
necessidade de lermos a missão por uma ótica das ciências sociais?
Orientados pelas Escrituras,
temos que ler a missão por uma ótica radicalmente centrada no conhecimento do
Deus Trino pelo drama messiânico de Jesus Cristo: encarnação, nascimento, vida,
sofrimento, crucificação, sepultamento, ressurreição, ascensão e retorno. E, os
desdobramentos da missão de Deus na história da Igreja. Temos as Escrituras e
de maneira secundária a tradição cristã como fonte para esse conhecimento. Essa
seria a matriz de uma sabedoria cristã que pode fundamentar e orientar a
missiologia cristã. Por outro lado, dependendo da área em que a missão cristã
está engajada, as diversas ciências, por graça comum, podem fornecer
importantes ferramentas e informações sobre fenômenos ou comportamentos, que
podem ser úteis para o missionário. Mas,
isso é muito diferente de produzir ou ler a missão a partir de um determinado
campo científico. O contrário seria verdadeiro: a partir da matriz que inspira
a missão cristã já mencionada, ler as ciências (seja social, biológica,
psicológica etc) inclusive para discernir o que deve ser acolhido com ações de
graças, criticado ou rejeitado.
Você tem estado envolvido
com trabalhos em comunidades carentes. Ao olharmos para as críticas de
pensadores mais voltados para a teologia calvinista clássica, vemos um calor na
crítica a missão integral, mas, talvez, não tanto calor em desenvolver
trabalhos relevantes em relação ao problema da pobreza. Como a igreja deve
lidar com isso e como você analisa esse fato de reformados não estarem tão
preocupados com a práxis cristã?
Engraçado, nesses 6 anos
diretamente envolvido com comunidades vulneráveis, particularmente crianças e
adolescentes, e em contato e conhecendo vários projetos nessa direção aqui no
Brasil e em outros lugares no mundo, como África, América Central e Oriente
Médio, o que tenho percebido, ironicamente, é que os mais engajados com
vulneráveis não são nem gente com uma missiologia mais à esquerda, e tampouco
calvinistas, mas o pentecostal ou o evangelical no sentido mais simples do
termo. Essa é a ironia da década, a meu ver. E, eles não estão ali por razões
ideológicas, ou porque possuem uma missiologia sofisticada, simplesmente
entendem que precisam servir tais comunidades com o evangelho e com o serviço
de misericórdia. Claro que existem excelentes trabalhos nos dois grupos
mencionados, de fato, conheço projetos sociais de gente inspirada em
missiologias mais progressistas, como há igrejas calvinistas que possuem
comprometimento social. Mas, precisamos reconhecer que, sem entrar no mérito da
eficiência, é fato que a maioria das iniciativas nessa área são de gente que
vive uma fé evangélica simples e com a Bíblia na mão, muitos pentecostais
históricos. Talvez o que a igreja mais necessite neste momento seja exatamente
isso: que ela seja mais evangélica. Nestes termos, entendo que nossos irmãos
reformados possuem a lenha, mas eles podem ter o fogo, a disposição evangélica
de conectar o que se crê com o que se deve fazer. Em contrapartida, nossos
irmãos evangelicais podem ser mais profundos e mais competentes, superando a
tentação do anti-intelectualismo. E, nossos irmãos ainda hipnotizados ou
ideologicamente intoxicados, podem abraçar e redescobrir o frescor da velha e
boa evangelicalidade. Todos nós somos passíveis de extremos, manter-se no
centro dessa conversa exige muita energia, eventualmente escorregaremos, mas precisamos
sempre regular nossas intenções a partir da centralidade do Evangelho e da
suficiência da obra de Cristo, sem quem, nenhuma missão é possível.