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1 de dez. de 2016

Entrevista com Igor Miguel - Igreja, Missão e Missionalidade



É com prazer que publicamos mais uma entrevista. Agora com o pastor Igor Miguel, que é casado com a Juliana, pai do João, cristão reformado, teólogo, pedagogo e mestre em letras (língua hebraica) pela FFLCH/USP. Trabalhou por 6 anos com crianças e adolescentes vulneráveis como educador e consultor educacional em projetos sociais. Especialista em educação cognitiva na SERVED, uma organização internacional que trabalha com educação em contexto de crise, principalmente no Oriente Médio. Vice-presidente da AKET (Associação Kuyper de Estudos Transdisciplinares) e pastor na Igreja Esperança em Belo Horizonte - MG. Igor também escreve no seu blog Pensar...  

Quem realizou a entrevista foi o pastor e nosso articulista Thomas Magnum. A entrevista trata sobre o papel da Igreja na Missão. Desejamos que este conteúdo seja enriquecedor e promova edificação e instrução para toda a Igreja brasileira.

Igor, o assunto missionalidade ou igreja missional tem tomado boas proporções no Brasil, principalmente por pensadores calvinistas. O que se quer dizer com igreja missional? E qual é a diferença de uma abordagem missional para uma missionária?

Missionalidade é um modo de se fazer missão. A elaboração de um termo novo é adequado quando serve para identificar uma ênfase necessária ou a especificidade de um modo particular de se fazer missão. Sabemos que o Evangelho não muda, mas as exigências contextuais mudam drasticamente. Particularmente, o que se evidencia, é que em contextos urbanos pós-cristãos e secularizados, ambientes culturais em que evangélicos são rotulados por causa de maus exemplos (como no caso da imagem produzida pelo neopentecostalismo) ou ambientes em que a pregação pública do Evangelho é restrita por forças legais, o modo missional de testemunhar o Evangelho de Cristo pode ser muito eficaz.

Há muitos livros sobre o conceito de missionalidade. Mas, uma síntese conceitual que me ajuda a me localizar é que missionalidade é uma missão encarnacional. Ou seja, ela se inspira no movimento que o Verbo de Deus fez: o Logos tornou-se gente para se fazer conhecido aos que salvava (Jo 1:14). A missionalidade é um modo de dar testemunho, o que exige a presença da igreja de maneira intencional na vida ordinária e nas relações humanas corriqueiras. Diferente de modelos de evangelização em que não-cristãos são atraídos à igreja, nesse caso, a igreja torna-se uma plataforma missional quando equipa e educa cristãos a darem testemunho de Cristo nas relações concretas com a sociedade, no ambiente das relações familiares, comunitárias, no trabalho ou na vida cultural. Muito poderiam objetar a esta altura: “mas a evangelização sempre foi assim, não?” De certa maneira, mas há uma diferença, quando intencionalmente nos engajamos em relações humanas para que de maneira orgânica e relacional nossas vidas legitimam o poder transformador do Evangelho.

Missionalidade exige um profundo conhecimento da vida humana, exige penetração cultural sem mundanismo. Como Keller afirma com frequência em seu livro “Igreja Centrada”: um cristão missional é alguém que é igual e diferente ao mesmo tempo. Isto significa que um cristão não pode ser um “alien” em termos culturais amplos. Ou seja, não deve criar barreiras culturais desnecessárias. Por outro lado, seu modo de ver a vida, de lidar com o sofrimento, com as relações humanas, de encarar o trabalho e a cultura, dão testemunho de que ele é de outra “cidade”. E, é precisamente aí, que o testemunho cristão emerge, pois desta maneira ele quebra caricaturas sobre o que significa ser cristão e abre portas para o testemunho verbal da boa-nova de Cristo. Por superação de barreiras culturais desnecessárias entende-se que o cristão deve frequentar espaços comuns, ter conversas em linguagem comum (evitar o “evangeliquês”), praticar esportes, ter hobbys, ir aos teatros, ouvir boa música (não somente música gospel) e ter repertório cultural para criar pontos de contato com a cultura onde está inserido. Claro que esta relação com a cultura não é acrítica, ao contrário, cristãos tem um modo particular de lidar com a cultura e tais contextos. E, é esta particularidade que alavanca e oportuniza o testemunho do Evangelho.

Ao tratar sobre missionalidade, qual é a ligação que tal assunto tem com cosmovisão cristã?

A cosmovisão cristã implica um “imaginário social”, pra usar um termo do filósofo Charles Taylor. O cristão imagina a existência a partir da narrativa bíblica criação-queda-redenção. Uma cosmovisão cristã madura e bem-educada fornece critérios, competências culturais e sabedoria para interagir com um ambiente sem ser absorvido por ele. Ao mesmo tempo que consegue discernir os ídolos culturais e denunciá-los com a mensagem do Evangelho. Por outro lado, se entendemos cosmovisão como uma “mentalidade”, sabemos que nossa sociedade pós-moderna não quer apenas “coerência lógica”, ela aspira por narrativas plausíveis, visões de boa vida e sentido. Concordo com James K.A. Smith, filósofo cristão do Calvin College, de que cristãos precisam viver e oferecer, mais do que uma mentalidade, mas uma narrativa alternativa e melhor em lugar das inúmeras narrativas reducionistas das sociedades secularizadas. Temos que ter a capacidade de oferecer uma história definitiva que conduz os homens a seu florescimento, libertação e pautada em virtudes como: fé, esperança e amor.

Autores como Tim Keller - que escreveu Igreja Centrada - e Michael Goheen - que escreveu Igreja Missional - tem contribuído muito para formação de pensadores para missões urbanas. Como devemos encarar esse desafio urbano em nosso atual contexto de igreja no Brasil. Essa urbanidade da missão, de fato a um tipo de contextualização?

A missão urbana não é um luxo ou uma “modinha” misssiológica. É um desafio real e crescente na missão contemporânea. Keller traz dados importantes da ONU sobre a crescente urbanização do mundo. Nas próximas décadas a tendência é que tenhamos mais da metade da população mundial morando em algum grande centro urbano. Ou seja, o cenário futuro da missão é que ela será predominantemente urbana.  Entretanto, a missão urbana exige preparação, há um fluxo muito intenso de diversidade cultural, forças migratórias, trocas simbólicas, efervescência política e social. A cidade é complexa, o que exige uma abordagem missionária igualmente complexa. É fundamental ao missionário e ao cristão urbano um entendimento mais preciso das mazelas da cidade: solidão, individualismo, narcisismo, hedonismo, pobreza e violência. Em contrapartida, o cristão urbano tem que reconhecer as riquezas da cidade: produção cultural, engajamento científico, produção de bens intelectuais, poder de sinergismo humano por causas sociais e políticas legítimas, e influência.

A igreja precisa promover treinamento missional para que cristãos criem relacionamentos significativos, se interessem autenticamente pelas pessoas a seu redor, e que superem as forças de isolamento social que impedem os vínculos necessários para o testemunho evangélico.  Cristãos precisam ser treinados a acolher perguntas honestas para darem respostas honestas aos problemas levantados a respeito da vida, cultura, Deus e espiritualidade.

Claro, este é o lado da penetração cultural da igreja, em contrapartida, a igreja local tem um papel fundamental quando se envolve em alto compromisso em manter seu púlpito cristocêntrico e sermões contextualizados.  Ou seja, o membro da igreja deve se sentir seguro em levar um amigo cético ou de uma outra religião para um culto.  Deve ter certeza que uma linguagem “inclusiva” será utilizada, que a mensagem será transmitida de tal modo que o cristão seja edificado e o não-cristão evangelizado simultaneamente. Claro, isto exige a noção, que Kevin Vanhoozer propõe do “pastor como teólogo público”. Um pastor que fala em resposta às demandas de sua cultura sem alterar a verdade evangélica.

Existem limites para contextualização da missão?

Sem dúvida! A contextualização não pode ser fundada em uma “ortodoxia generosa” como propõem protagonistas do movimento chamado “igreja emergente” ou similares. No afã de nos tornarmos relevantes corremos o risco de nos secularizarmos ou de sermos assimilados por aspectos culturais estranhos ao Evangelho. Este, na verdade, é o grande desafio da contextualização. Algumas igrejas, por receio de serem “mundanizadas”, escolheram o caminho do isolamento cultural (como se isso fosse possível), o que ironicamente conduzirá essa igreja à irrelevância por sua incapacidade de comunicar antigas e importantes verdades em uma linguagem compreensível e que alcance as questões mais profundas da vida humana. Por outro lado, não podemos permitir que sejamos acometidos por uma ansiedade que nos leve a abrirmos precedentes que acabam comprometendo, em não raros casos, o núcleo da verdade evangélica.

Temos visto no Brasil um reflorescer do pensamento voltado para a integralidade da missão, vemos também que o que tem estado presente nesse reflorescimento é um relacionamento ideológico que não era presente em 1974 por exemplo quando muito se discutia sobre missão integral. Como você vê essa questão da ideologia sendo mesclada com a teologia cristã da missão e quais são os perigos e talvez pontos positivos dessa abordagem?

Indico os diversos textos escritos pelo teólogo Guilherme de Carvalho sobre o tema, suas críticas são importantes e não podem ser desprezadas no atual debate sobre a relação entre ideologia e a teologia da missão integral. O livro Ortodoxia Integral, do filósofo Pedro Dulci, também traz uma importante e atual contribuição para a reflexão.

Sendo muito direto: a missão cristã é “proto-ideológica”, ou seja, antes do conceito moderno da possibilidade de controle histórico da realidade, seja por livre iniciativa racional ou monopólio estatal-coletivista, o cristianismo já estava em missão pelo mundo. O que não significa que a missão cristã seja apolítica. Obviamente que não! Afirmamos um Senhor que é soberano sobre toda realidade, e que Cristo, crucificado e ressuscitado, subverteu todos os poderes deste século assumindo “todo poder nos céus e na terra”. Por esta razão, cristãos impulsionados pela Grande Comissão anunciam que não há área neutra e que todos os homens são convidados, uma vez regenerados e justificados, a se tornarem membros do Reino de Deus. A missão cristã deve ser integral no sentido de que a totalidade de Cristo atinge a totalidade da vida humana, bem nos termos do Pacto de Lausanne. Porém, o velho debate tem sido em termos metodológicos, ou seja, de que maneira podemos fazer uma missão que seja integral? Pra muita gente, Cristo se restringe à esfera confessional, seu senhorio e sua obra parecem perder força quando chegam à esfera pública. A tentação é tão grande para alguns, que parecem não encontrar recursos na fé evangélica para atuarem na dimensão da pobreza, da vulnerabilidade, nos direitos humanos e em políticas públicas. O que fazem então? Optam por uma ideologia e uma metodologia secular com raízes na noção de autonomia humana (neste ponto nem a direita ou a esquerda são inocentes), e assim, acabam comprando parcial ou totalmente o pacote progressista como referência missiológica.

Temos que reconhecer que muitos irmãos que estão no espectro progressista possuem sensibilidades que não podem ser desprezadas: a profunda desigualdade social, alguns abusos antiéticos por parte de corporações financeiras, relações abusivas inspiradas em racismo, o machismo, a misoginia, os índices altíssimos de jovens negros mortos em comunidades vulneráveis, a exclusão e a objetificação da mulher. Reconheço, me preocupo e até me envolvo pessoalmente com algumas dessas pautas. (É importante mencionar que nem todos esses problemas são adequadamente qualificados por militantes ou adeptos a ideologias à esquerda). De qualquer forma, meu questionamento não se dirige à pauta, mas à metodologia. Quando sirvo o pobre com alguma ajuda financeira, ou criando oportunidades, ou quando trabalho no campo da ciência para a promoção da pesquisa a partir de uma mentalidade cristã, ou ainda, quando me engajo no campo político, a glória não pode ser de Darwin, Howkings ou Marx, deve ser de Cristo. Para isso, preciso me valer de uma metodologia baseada no radical senhorio de Jesus, e todas as implicações inerentes a uma vida sob seu governo. Claro que, pra muita gente, isso seria confundido com movimentos que se apropriaram de nomes como Kuyper e Dooyeweerd e que propõem uma espécie de “dominação” teonomista da realidade. Nenhum dos autores mencionados concordariam com tal experimento. Cristãos operam no mundo, sem pretensões triunfalistas, ao mesmo tempo que evitam o quietismo anabatista.

Temos realmente uma necessidade de lermos a missão por uma ótica das ciências sociais?

Orientados pelas Escrituras, temos que ler a missão por uma ótica radicalmente centrada no conhecimento do Deus Trino pelo drama messiânico de Jesus Cristo: encarnação, nascimento, vida, sofrimento, crucificação, sepultamento, ressurreição, ascensão e retorno. E, os desdobramentos da missão de Deus na história da Igreja. Temos as Escrituras e de maneira secundária a tradição cristã como fonte para esse conhecimento. Essa seria a matriz de uma sabedoria cristã que pode fundamentar e orientar a missiologia cristã. Por outro lado, dependendo da área em que a missão cristã está engajada, as diversas ciências, por graça comum, podem fornecer importantes ferramentas e informações sobre fenômenos ou comportamentos, que podem ser úteis para o missionário. Mas, isso é muito diferente de produzir ou ler a missão a partir de um determinado campo científico. O contrário seria verdadeiro: a partir da matriz que inspira a missão cristã já mencionada, ler as ciências (seja social, biológica, psicológica etc) inclusive para discernir o que deve ser acolhido com ações de graças, criticado ou rejeitado.

Você tem estado envolvido com trabalhos em comunidades carentes. Ao olharmos para as críticas de pensadores mais voltados para a teologia calvinista clássica, vemos um calor na crítica a missão integral, mas, talvez, não tanto calor em desenvolver trabalhos relevantes em relação ao problema da pobreza. Como a igreja deve lidar com isso e como você analisa esse fato de reformados não estarem tão preocupados com a práxis cristã?

Engraçado, nesses 6 anos diretamente envolvido com comunidades vulneráveis, particularmente crianças e adolescentes, e em contato e conhecendo vários projetos nessa direção aqui no Brasil e em outros lugares no mundo, como África, América Central e Oriente Médio, o que tenho percebido, ironicamente, é que os mais engajados com vulneráveis não são nem gente com uma missiologia mais à esquerda, e tampouco calvinistas, mas o pentecostal ou o evangelical no sentido mais simples do termo. Essa é a ironia da década, a meu ver. E, eles não estão ali por razões ideológicas, ou porque possuem uma missiologia sofisticada, simplesmente entendem que precisam servir tais comunidades com o evangelho e com o serviço de misericórdia. Claro que existem excelentes trabalhos nos dois grupos mencionados, de fato, conheço projetos sociais de gente inspirada em missiologias mais progressistas, como há igrejas calvinistas que possuem comprometimento social. Mas, precisamos reconhecer que, sem entrar no mérito da eficiência, é fato que a maioria das iniciativas nessa área são de gente que vive uma fé evangélica simples e com a Bíblia na mão, muitos pentecostais históricos. Talvez o que a igreja mais necessite neste momento seja exatamente isso: que ela seja mais evangélica. Nestes termos, entendo que nossos irmãos reformados possuem a lenha, mas eles podem ter o fogo, a disposição evangélica de conectar o que se crê com o que se deve fazer. Em contrapartida, nossos irmãos evangelicais podem ser mais profundos e mais competentes, superando a tentação do anti-intelectualismo. E, nossos irmãos ainda hipnotizados ou ideologicamente intoxicados, podem abraçar e redescobrir o frescor da velha e boa evangelicalidade. Todos nós somos passíveis de extremos, manter-se no centro dessa conversa exige muita energia, eventualmente escorregaremos, mas precisamos sempre regular nossas intenções a partir da centralidade do Evangelho e da suficiência da obra de Cristo, sem quem, nenhuma missão é possível.

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