Quase todas as alianças
bíblicas são pactos históricos feitos por Deus com suas criaturas. A aliança da
redenção, porém, é um pacto eterno entre as pessoas da Trindade. O Pai elege um
povo no Filho, como seu mediador, que será levado à fé salvadora por meio do
Espírito. Assim, a aliança feita pela Trindade na eternidade já leva em conta a
queda da raça humana. Escolhidos dentre a massa condenada da humanidade, os
eleitos não são melhores ou mais bem qualificados que o restante. Deus
simplesmente escolheu, de acordo com a sua própria liberdade, demonstrar a sua
justiça e a sua misericórdia, e a aliança da redenção é o ato de abertura desse
drama da redenção.
Já podemos ver como uma
estrutura pactual desafia a ideia de um déspota solitário. O Pai elege um povo
no Filho por meio do Espírito. Nossa salvação, portanto, surge primeiro pela
solidariedade das pessoas da divindade. A alegria de dar e receber, experimentadas
pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo derrama-se, por assim dizer, sobre o
relacionamento Criador-criatura. Na aliança da redenção, o amor do Pai e do
Espírito pelo Filho é demonstrado na dádiva de um povo que o terá como sua
cabeça viva. Ao mesmo tempo, o amor do Filho pelo Pai e pelo Espírito é
demonstrado pelo seu compromisso de redimir essa família a um grande custo
pessoal.
É por isso que não devemos
procurar o decreto secreto de Deus na predestinação ou tentar encontrar
evidência dela em nós mesmos, mas, como insistia Calvino, ver Cristo como o
“espelho” de nossa eleição. A predestinação de Deus nos é escondida, mas Cristo
não é. O desvendar do mistério oculto em eras passadas, a pessoa e a obra de
Cristo, torna-se o único testemunho confiável da nossa eleição. Aqueles que
confiam em Cristo pertencem a Cristo e são eleitos em Cristo.
Até aqui ofereci algumas
definições, mas ainda não apresentei qualquer defesa bíblica. Essa aliança da
redenção é produzida por especulação teológica ou por cuidadosa interpretação
bíblica?
Em resposta a essa
pergunta, devemos observar primeiro que alguns teólogos reformados
contemporâneos sugerem que a Escritura é silenciosa sobre essa aliança eterna.
Contudo, esse mesmos escritores afirmam a doutrina reformada tradicional da
eleição: Deus escolheu muitos da raça condenada de Adão para estarem em Cristo,
à parte de qualquer coisa pertencente ou prevista naqueles que foram escolhidos
e de acordo somente com a livre graça de Deus. Se nos ativermos simultaneamente
à doutrina da Trindade e da eleição incondicional, não fica claro que objeção
poderia ser feita, a princípio, para descrever esse decreto divino em termos do
conceito de uma aliança eterna entre as pessoas da Divindade. Segundo, não
contamos apenas com argumentos a partir do silêncio. No ministério de Cristo,
por exemplo, o Filho é representado (especialmente no quarto Evangelho) como
tendo recebido do Pai um povo (Jo. 6:39; 10:29; 17:2,4-10; Ef. 1:4-12; Hb. 2:13
citando Is. 8:18), que é chamado e guardado pelo Espírito Santo para a
consumação da nova criação (Rm. 8:29,30; Ef. 1:11-13; Tt.3:5; 1 Pe. 1:5). Na
verdade, afirmar a aliança da redenção é algo mais que afirmar que a
auto-entraga do Filho e a obra regeneradora do Espírito foram a execução do
plano eterno do Pai. Não somente fomos escolhidos em Cristo “antes da fundação
do mundo” (Ef. 1:4), mas também o próprio Cristo é referido como “o Cordeiro
que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap. 13:8).
A aliança da redenção
destaca a soberania e a liberdade de Deus na graça eletiva, como também o
caráter trinitariano e especificamente cristocêntrico desse propósito divino.
Tudo acontece “em Cristo”; assim a ênfase na teologia da aliança sobre o tema
de “Cristo, o mediador”. Mesmo antes da criação e da queda, os eleitos estavam
“em Cristo” em termos do propósito divino para a História, ainda que não na
História em si. Longe de ser resultado de especulação abstrata, esse conceito
da aliança da redenção é um ensinamento revelado da Escritura e a melhor defesa
contra essa especulação. Sempre que a soberania de Deus na predestinação for
fortemente defendida fora de um arcabouço de aliança, a revelação concreta de
nossa eleição em Cristo, de acordo com a promessa do evangelho, cede a debates
teóricos que nos levam a especulações sem fim sobre os conselhos escondidos de
Deus.
Apesar desse consenso
passado, teólogos reformados em nossos dias não estão unanimemente persuadidos
que o decreto eterno pode ser formalizado como uma aliança com base na exegese.
Por exemplo, O. Palmer Robertson reconhece o decreto eterno:
Mas
afirmar o papel da redenção nos conselhos eternos não é o mesmo que propor a
existência de uma aliança pré-criação entre Pai e Filho. Um sentido de
artificialidade tempera o esforço de estruturar em termos pactuais os mistérios
dos conselhos eternos de Deus. A Escritura simplesmente não diz muito sobre o
formato pré-criação dos decretos de Deus. Falar concretamente sobre uma
“aliança” intertrinitariana [sic] com termos e condições entre Pai e Filho,
mutuamente aprovados antes da fundação do mundo, é estender os limites da
evidência das Escrituras além do que é próprio [1].
Além do mais, como uma
“disposição soberana” poderia ser verdadeira no caso da Trindade?
Aqui vemos novamente os
perigos inerentes a uma definição estreita demais de aliança. Nas passagens
citadas acima, parece claro que as pessoas da Trindade estavam envolvidas numa
disposição “pré-temporal” de alguma espécie: a eleição de um povo dado ao Filho
como mediador a ser preservado pelo Espírito. Nessas passagens, especialmente
no Evangelho de João, Jesus fala repetidas vezes de “aqueles que tu me deste”
(17:6,9,11,12). A própria noção de mediação soteriológica requer alguma espécie
de concordância de juramento. Na verdade, é exatamente essa aliança
trinitariana que é capaz de contrabalancear uma tendência hipercalvinista de
soteriologia unitariana em que “Deus” (isto é, o Pai) soberanamente decreta a
salvação e reprovação sem ser pela operação do Filho e do Espírito. Uma
soteriologia trinitariana emerge necessariamente dessa ênfase. “Assim como a bênção de Deus existe na
relação livre das três Pessoas do Ser adorável, do mesmo modo, o homem
encontrará bênção no relacionamento pactual com Deus”, escreve Vos [2].
Parte da dificuldade para
os intérpretes é que essas passagens não identificam especificamente o decreto
como uma aliança. No entanto, como já vimos, a aliança davídica só foi
reconhecida como tal pelos profetas muito mais tarde (Sl. 89 e 132). Apesar de
sua acusação de que essa doutrina de aliança é especulativa, o próprio
Robertson introduz alianças antes jamais ouvidas. Além das alianças com Noé,
Abraão, Moisés e Davi, ele acrescenta “uma aliança de começo” (com Adão
pós-lapsariano) e uma “aliança de consumação” (Cristo) , nenhuma das quais é
identificada especificamente como aliança na Escritura. Certamente a Escritura
não reconhece o tipo de tratado de suserano-vassalo entre as Pessoas da
Trindade. Afinal, cada pessoa é igualmente divina: não há senhores e servos no
relacionamento trinitariano eterno. Além do mais, não existe uma estrutura
formal de tratado nessa aliança da Escritura – nenhum prólogo histórico, nem
estipulações, nada de sanções, e assim por diante. Já vimos, porém, que nem
todas as alianças bíblicas se encaixam no estilo de suserania. Só uma definição
exageradamente restrita de aliança poderia justificar a ideia de que a aliança
da redenção é especulativa e não bíblica.
Portanto, a aliança da
redenção é tão claramente revelada na Escritura quanto a Trindade e o decreto
eterno de eleger, redimir, chamar, justificar, santificar e glorificar um povo
para o Filho. Ao mesmo tempo, esse propósito eterno teria permanecido escondido
de nós se não tivesse sido realizado em nosso tempo e espaço. É aí que se dá
maior atenção bíblica. Enquanto a aliança da redenção é eterna e tem como
participantes as pessoas da Divindade, as alianças da criação e da graça se
desenrolam na história humana e tem como parceiros o Criador e criatura.
Uma das declarações mais
sucintas desse esquema das duas alianças históricas se encontra no capítulo
sete da Confissão de Fé de Westminster:
A
distância entre Deus e a criatura é tão grande que, embora as criaturas
racionais lhe devam obediência como seu Criador, nunca poderiam fruir nada
dele, como bem-aventurança e recompensa, senão por voluntária condescendência
da parte de Deus, a qual agradou a ele expressar por meio de um pacto. O
primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras; nesse pacto foi a vida
prometida a Adão e, nele, à sua posteridade, sob condição de perfeita e pessoal
obediência. Tendo-se o homem tornando, pela sua queda, incapaz de ter vida por
meio desse pacto, o Senhor dignou-se a fazer um segundo pacto, geralmente
chamado de pacto da graça; nesse pacto da graça ele livremente oferece aos
pecadores a vida e a salvação por meio de Jesus Cristo, exigindo deles a fé
nele, para que sejam salvos, e prometendo o seu Santo Espírito a todos os que
estão ordenados para a vida, a fim de dispô-los e habilitá-los a crer.
___________
[1] Robertson, Christ of
the Covenants, 54
[2] Vos, Redemptive
History and Biblical Interpretation, 245
***
Trecho do livro O Deus da Promessa - Introdução à Teologia
da Aliança. Ed. Cultura Cristã