A grande maioria dos
evangélicos do Brasil associa o nome de João Ferreira de Almeida às Escrituras
Sagradas. Afinal, é ele o autor (ainda que não o único) da tradução da Bíblia
mais usada e apreciada pelos protestantes brasileiros. Disponível aqui em duas
versões publicadas pela Sociedade Bíblica do Brasil — a Edição Revista e
Corrigida e a Edição Revista e Atualizada — a tradução de Almeida é a preferida
de mais de 60% dos leitores evangélicos das Escrituras no País.
Se a tradução de Almeida é
largamente conhecida, o mesmo não se pode dizer a respeito do autor. Pouco, ou
quase nada, se tem falado e escrito a respeito dele. Almeida nasceu por volta
de 1628, em Torre de Tavares, Portugal, e morreu em 1691, na cidade de Batávia
(atual ilha de Java, Indonésia). O que se conhece da vida de Almeida está
registrado na “Dedicatória” de um de seus livros e nas atas dos presbitérios de
Igrejas Reformadas (calvinistas) do Sudeste da Ásia, para as quais trabalhou
como pastor, missionário e tradutor, durante a segunda metade do século XVII.
Tradutor
aos 16 anos
Segundo registros daquela
época, em 1642, aos 14 anos, João Ferreira de Almeida teria deixado Portugal
para viver em Málaca (Malásia). Ele havia ingressado no protestantismo, vindo
do catolicismo, e transferia-se com o objetivo de trabalhar na Igreja Reformada
Holandesa daquele local.
Dois anos depois, por
iniciativa pessoal, Almeida começou a traduzir para o português uma parte dos
Evangelhos e das Cartas do Novo Testamento. A tradução, feita do espanhol, foi
terminada em 1645, mas nunca foi publicada. Entretanto, o tradutor fez cópias à
mão desse seu trabalho, as quais foram mandadas para as congregações de Málaca,
Batávia e Ceilão (hoje Sri Lanka).
No tempo de Almeida, o
idioma português era o mais falado em partes da Índia e do Sudeste da Ásia.
Acredita-se, no entanto, que o português empregado por Almeida tanto em
pregações como na tradução da Bíblia fosse bastante erudito e, portanto, de
difícil compreensão para a maioria do povo. Essa impressão é reforçada por uma
declaração dada por ele em Batávia, quando se propôs a traduzir alguns sermões
“para a língua portuguesa adulterada, conhecida desta congregação”.
Pastor
no Sudeste da Ásia
O tradutor permaneceu em
Málaca até 1651, quando se transferiu para Batávia. Depois de passar por um
exame preparatório e de ter sido aceito como candidato ao pastorado, Almeida
acumulou novas tarefas: dava aulas de português a pastores, traduzia livros e
ensinava catecismo a professores de escolas primárias. Em 1656, ordenado
pastor, foi indicado para o Presbitério do Ceilão.
Ao que tudo indica, esse
foi o período mais agitado da vida do tradutor. Durante o pastorado em Galle
(Sul do Ceilão), Almeida assumiu uma posição tão forte contra o que ele chamava
de “superstições papistas”, que o governo local resolveu apresentar uma queixa
a seu respeito ao governo de Batávia (provavelmente por volta de 1657). Entre
1658 e 1661, época em que foi pastor em Colombo, ele voltou a enfrentar
problemas com o governo, o qual tentou, sem sucesso, impedi-lo de pregar em
português.
A passagem de Almeida por
Tuticorin (Sul da Índia), onde foi pastor por cerca de um ano, também parece
não ter sido das mais tranquilas. Tribos da região negaram-se a ser batizadas
ou ter seus casamentos abençoados por ele. Tudo indica que isso aconteceu
porque a Inquisição havia ordenado que um retrato de Almeida fosse queimado
numa praça pública em Goa.
Foi também durante a
estada no Ceilão que, provavelmente, o tradutor conheceu a mulher com a qual
viria a se casar. Vinda do catolicismo romano para o protestantismo, como ele,
chamava-se Lucretia Valcoa de Lemmes (ou Lucrécia de Lemos). Mais tarde, a
família completou-se, com o nascimento de um menino e de uma menina.
Pastor
e tradutor em Batávia
A partir de 1663 (dos 35
anos de idade em diante, portanto), Almeida trabalhou na congregação de fala
portuguesa da cidade de Batávia, onde ficou até o final da vida, em 1691. Nesta
nova fase, teve uma intensa atividade como pastor. Ao mesmo tempo, retomou o
trabalho de tradução da Bíblia, iniciado na juventude. Foi somente então que
passou a dominar a língua holandesa e a estudar grego e hebraico. Em 1676,
Almeida comunicou ao presbitério que o Novo Testamento estava pronto. Aí
começou a batalha do tradutor para ver o texto publicado — ele sabia que o
presbitério não recomendaria a impressão do trabalho sem que fosse aprovado por
revisores indicados pelo próprio presbitério. E também que, sem essa
recomendação, não conseguiria outras permissões indispensáveis para que o fato
se concretizasse: a do Governo de Batávia e a da Companhia das Índias
Orientais, na Holanda.
Um fato curioso é que, em
alguns escritos, e até mesmo na folha de rosto de suas Bíblias, Almeida aparece
com o título de padre. Alguns até já sugeriram que pudesse ter sido membro da
Companhia de Jesus. No entanto, esse título era usado também pelos pastores
protestantes nas Índias Orientais, naquele tempo. Assim, onde se lê “padre”
deve-se entender “pastor”.
A
publicação do Novo Testamento português
Escolhidos os revisores, o
trabalho começou e foi sendo desenvolvido vagarosamente. Quatro anos depois,
irritado com a demora, Almeida resolveu não esperar mais — mandou o manuscrito
para a Holanda por conta própria, para ser impresso lá. Mas o presbitério
conseguiu fazer com que a impressão fosse interrompida. Passados alguns meses,
depois de algumas discussões, quando o tradutor parecia estar quase desistindo
de apressar a publicação de seu texto, cartas vindas da Holanda trouxeram a
notícia de que o manuscrito havia sido revisado e estava sendo impresso naquele
país.
Em 1681, a primeira edição
do Novo Testamento de Almeida finalmente saiu da gráfica. A impressão foi feita
em Amsterdã, na Holanda, na tipografia da viúva J. V. Zomeren. O título era
este: “O Novo Testamento Isto he o Novo Concerto de Nosso Fiel Senhor e
Redemptor Iesu Christo traduzido na Língua Portuguesa”. Um ano depois, essa
edição do Novo Testamento chegou a Batávia, mas apresentava erros de tradução e
revisão. O fato foi comunicado às autoridades da Holanda e todos os exemplares
que ainda não haviam saído de lá foram destruídos, por ordem da Companhia das
Índias Orientais. As autoridades Holandesas determinaram que se fizesse o mesmo
com os volumes que já estavam em Batávia. Pediram também que se começasse, o
mais rápido possível, uma nova e cuidadosa revisão do texto.
Apesar das ordens
recebidas da Holanda, nem todos os exemplares recebidos em Batávia foram
destruídos. Alguns deles foram corrigidos à mão e enviados às congregações da
região (um desses volumes pode ser visto hoje no Museu Britânico, em Londres).
O trabalho de revisão e correção do Novo Testamento foi iniciado e demorou dez
longos anos para ser terminado. Somente após a morte de Almeida, em 1693, é que
essa segunda versão foi impressa, na própria Batávia, onde também foi distribuída.
A terceira edição viria a ser publicada em 1712.
A
tradução do Antigo Testamento
Enquanto progredia a
revisão do Novo Testamento, Almeida começou a traduzir o Antigo Testamento. Em
1683, ele completou a tradução do Pentateuco. Iniciou-se, então, a revisão
desse texto, e a situação que havia acontecido na época da revisão do Novo
Testamento, com muita demora e discussão, acabou se repetindo. Já com a saúde
prejudicada—pelo menos desde 1670, segundo os registros —, Almeida teve sua
carga de trabalho na congregação diminuída e pôde dedicar mais tempo à
tradução. Mesmo assim, não conseguiu acabar a obra à qual havia dedicado a vida
inteira. Em 1691, no mês de outubro, Almeida veio a falecer. Nessa ocasião, ele
havia chegado até Ezequiel 48.21. A tradução do Antigo Testamento foi
completada em 1694 por Jacobus op den Akker, pastor holandês. O texto do Antigo
Testamento completo só viria a ser impresso em 1751. A Bíblia completa em um
único volume só foi publicada em 1819.
O
processo de tradução
Pouco ou nada se sabe a
respeito de como Almeida traduziu a Bíblia. As atas da Igreja Reformada em
Batávia dão atenção a problemas administrativos como impressão, distribuição e
discussão com autoridades, mas pouco ou nada informam sobre a tradução ou
outras questões relacionadas com o texto. Para o Novo Testamento, o único texto
disponível naquele momento era o assim chamado “texto recebido”. A edição mais
recente desse texto era a segunda edição publicada pelos irmãos Elzevir, em
1633, o que não significa que Almeida se valeu exatamente desta edição. Além do
original, Almeida teve acesso a outras traduções, como a espanhola, a francesa
e a italiana. No Prefácio da obra “Diferença da Cristandade”, traduzida por
Almeida do espanhol para o português, em 1684, diante da falta de uma Bíblia
Portuguesa completa, Almeida remete o leitor à versão espanhola da Sagrada
Escritura. Sua intenção era, como ele mesmo diz, “dar-vos assim em breve toda a
Escritura Sagrada em vossa própria língua. Que é a maior dádiva, e o mais precioso
tesouro, que nunca ninguém, que eu saiba, até o presente vos tenha dado”.
Como
o texto de Almeida chegou pela primeira vez ao Brasil
Ao que tudo indica, o
texto da Bíblia de Almeida chegou ao Brasil pela primeira vez em 1712, ainda
que de forma acidental. Uma remessa de 150 exemplares do Evangelho de Mateus
(edições com mais de mil exemplares eram raras naquele tempo!), impressa em
Amsterdã e destinada ao povo de fala portuguesa das Índias Ocidentais, acabou
aportando no Brasil. Acontece que o navio foi interceptado pelos franceses e
conduzido a um porto brasileiro, no Rio de Janeiro ou em Salvador. Não se sabe
quem ficou com as cópias do Evangelho de Mateus. Posteriormente, a Bíblia de
Almeida passou a ser distribuída no Brasil pela Sociedade Bíblica Britânica e
Estrangeira.
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Fonte: Sociedade Bíblica do Brasil