Por Timothy George
A maior contribuição de Lutero à eclesiologia protestante foi a sua doutrina do sacerdócio de todos os cristãos. Contudo, nenhum outro elemento de seu ensino é tão mal compreendido. Para alguns, isso significa apenas que não há mais sacerdotes na igreja; é a secularização do clero. Dessa premissa, alguns grupos, notadamente os quacres, defenderam a abolição do ministério como ordem distinta dentro da igreja. Mais comumente, as pessoas acreditam que o sacerdócio de todos os cristãos implica que cada cristão é seu próprio sacerdote, e, assim, possui o “direito do julgamento privado” em assuntos de fé e doutrina. Ambos os casos constituem perversões da intenção original de Lutero. A essência de sua doutrina pode ser expressa numa única frase: todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos sacerdotes uns dos outros.
Lutero
rompeu decisivamente com a divisão tradicional da igreja em duas classes, clero
e laicato. Todo cristão é um sacerdote em virtude de seu batismo. Esse
sacerdote deriva diretamente de Cristo: “Somos sacerdotes como ele é Sacerdote,
filhos como ele é Filho, reis como ele é Rei”. Mais ainda, cada membro da Gemeine tem
parte igual nesse sacerdócio. Isso significa que os ofícios sacerdotais são
propriedade comum de todos os cristãos, não a prerrogativa especial de uma
casta seleta de homens santos. Lutero enumerou sete direitos que pertencem a
toda a igreja: pregar a Palavra de Deus, batizar, celebrar a Santa Comunhão,
carregar “as chaves”, orar pelos outros, fazer sacrifícios, julgar a doutrina.
Lutero baseou sua afirmação de que todos os cristãos são sacerdotes no mesmo
grau em dois textos do Novo Testamento: “Vós [...] sois [...] sacerdócio real”
(1 Pe 2.9), e “nos constituiu reino, sacerdotes” (Ap 1.6).
O
sacerdócio de todos os cristãos é tanto uma responsabilidade quanto um
privilégio, um serviço tanto quanto uma posição. Deus fez-nos um corpo, um
“bolo” (imagem favorita de Lutero). Nossa unidade e igualdade em Cristo é
demonstrada por nosso amor mútuo e nosso cuidado uns pelos outros. “O fato de
que somos todos sacerdotes e reis significa que cada um de nós, cristãos, pode
ir perante Deus e interceder pelo outro. Se eu notar que vocês não têm fé ou
têm uma fé fraca, posso pedir a Deus que lhe dê uma fé sólida.”
Tudo
isso implica que ninguém pode ser um cristão sozinho. Assim como não podemos
nascer de nós mesmos, ou batizar a nós mesmos, da mesma forma não podemos
servir a Deus sozinhos. Aqui, abordamos outra grande definição da igreja
apresentada por Lutero: communio sanctorum , uma comunidade de
santos. Mas quem são os santos? Não são supercristãos que foram elevados à
glória celeste, em cujos “méritos” podemos conseguir ajuda nos caminhos da
vida. Todos os que crêem em Cristo são santos. Conforme Paul Althaus disse:
“Lutero trouxe a comunidade dos santos do céu para a terra”.
Quando
desejar fazer alguma coisa pelos santos, volte sua atenção para os vivos, não
para os mortos. O santo vivo é seu próximo, o nu, o faminto, o sedento, o pobre
que tem esposa e filhos e sofre humilhações. Dirija sua ajuda a eles, comece
seu trabalho aqui.
Uma
comunidade de intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família
em que as cargas são compartilhadas e suportadas mutuamente – essa é a communio
sanctorum .
Como
Lutero relacionava o sacerdócio de todos os cristãos ao ofício do ministério? Enquanto
todos os cristãos têm parte igual nos tesouros da Igreja, incluindo-se os
sacramentos, nem todos podem ser pastores, mestres ou conselheiros. Há um só
“estado” (Stand), mas uma variedade de ofícios (Amte) e funções.
Lutero
considerava o ministério da Palavra o mais alto ofício da Igreja. O próprio
título, “sevo da Palavra divina” (minister verbi divini ), conota
um papel essencialmente fundamental. Rigorosamente falando, Lutero ensinou que
todo cristão é ministro e tem o direito de pregar. Esse direito pode ser
livremente exercido se alguém estiver em meio a não-cristãos, entre os turcos
ou encalhado numa ilha pagã. Entretanto, numa comunidade cristã, não se deve
“chamar atenção sobre si mesmo”, assumindo tal ofício por conta própria. Antes,
deve-se “deixar ser chamado e escolhido para pregar e ensinar no lugar de
outros e sob o comando deles”. O chamado é feito pela congregação, e o ministro
continua tendo de prestar contas a ela. Lutero chegou ao ponto de dizer: “O que
lhe damos hoje podemos tirar dele amanhã”. O rito da ordenação não confere
nenhum caráter indelével à pessoa ordenada. É meramente a forma pública pela
qual alguém é comissionado mediante a oração, as Escrituras e a imposição de
mãos, a fim de servir à congregação. Argumentando curiosamente a partir da lei
natural, Lutero excluía mulheres, crianças e pessoas incompetentes do
ministério oficial da igreja, embora numa época de emergência ele pudesse
chamá-los a exercer tal ofício, em virtude de sua parcela no sacerdócio de
todos os cristãos.
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Fonte: GEORGE, Timothy. Teologia dos
Reformadores. 1 ed. Cap 3, p. 96-98. São Paulo, Sociedade Religiosa
Edições Vida Nova, 1994