Por Thiago Oliveira
Quando os cristãos são
alertados dos males do regime socialista - na concepção marxista-leninista,
logo podem cair no erro de achar que o capitalismo é um sistema totalmente
compatível com a ética cristã. Certa feita, li numa rede social que o
capitalismo era divino e contrapunha o diabólico socialismo. Isto é um equívoco
gritante. Existem muitas demandas do capitalismo que também se chocam com os
princípios morais que estão na Bíblia. Sabemos que há também muita injustiça do
lado “não vermelho” da força. O capitalismo, por ser um sistema que pertence a
este mundo corrompido, afetado pelo pecado, causa deturpações até mesmo dentro
da Igreja. A famigerada Teologia da Prosperidade é fruto de uma mentalidade que
coisifica e vende tudo, até mesmo os princípios religiosos.
Capitalismo
X Cristianismo
É importante salientar que
o que convencionalmente se chama de capitalismo, é na verdade o liberalismo
econômico, que deriva do liberalismo político. Esta é uma ideologia que, tal
como a marxista, parte de um princípio idolátrico. No credo liberal, o que é
elevado ao status divino é a liberdade individual. Koyzis destaca que o
liberalismo:
[...]
parte de uma crença fundamental na autonomia humana, que vai muito além de um
simples apreço pela liberdade pessoal. Ser autônomo é dirigir a si mesmo,
governar a si mesmo segundo a lei que se escolheu para si. Cada uma das
ideologias liga essa autonomia a alguma manifestação da humanidade – seja o
indivíduo, seja uma comunidade, como o Estado ou a nação. O liberalismo atribui
esta autonomia ao indivíduo.[1]
Por isso que o cristão não
pode declarar pertencer a uma ideologia mundana, abraçando-a por completo. Se o
marxismo é anti-cristão em seu bojo, por ser materialista, o pragmatismo
capitalista também se torna uma antítese do cristianismo ao desprezar os
mandamentos divinos e buscar o lucro de maneira autônoma, desassociado da
justiça. O resultado disto é um contexto perverso que perpetua miserabilidade
enquanto alguns magnatas esbanjam muito mais do que precisam para viver. Biéler
comenta com perspicácia:
A
liberdade econômica sem contrapeso ético, sem corretivo social, é, portanto,
também a liberdade conferida ao mais forte para aniquilar o mais fraco, e a
liberdade outorgada ao mais rico para explorar o mais pobre. É a liberdade de
uns que mata a liberdade de outros.[2]
Se no século XVIII, com a
Revolução Industrial, muita riqueza foi produzida, milhares e milhares de
pessoas não tiveram acesso a ela. Muito pelo contrário, viviam na pobreza
extrema. Os trabalhadores eram submetidos a condições desumanas de trabalho,
com jornadas que podiam durar mais de 15 horas, num ambiente insalubre e sem
nenhuma assistência previdencial. O resultado desta liberdade econômica sem
freios foi antevista por Sismondi, um economista protestante e genebrino:
Um
dos produtos históricos gerado pelos vícios de um liberalismo não controlado
foi o comunismo. Pode-se dizer, com efeito e sem exagero, examinando bem o
encadeamento dos fatos, que o capitalismo é o pai do comunismo. A “fria
opressão da riqueza” não pode evitar o desenvolvimento de antagonismos de
classe, advertia já este economista clarividente. Ver-se-á como se produziu
essa filiação. Mas antes, é mister notar que esse encadeamento trágico já fora
pressentindo por vários observadores lúcidos. “Nos tempos da maior opressão
feudal”, escrevia Sismondi, “nos tempos da escravidão, viram-se
indubitavelmente da parte dos senhores atos de ferocidade que fazem estremecer
a humanidade. Mas, ao menos, algum motivo havia excitado sua cólera ou sua
crueldade. Restava ao oprimido alguma esperança de evitar provocar seu
opressor… Na fria e abstrata opressão da riqueza, não há injúria alguma, nada
de cólera... relação alguma homem a homem”. Além desse frio anonimato, os
interesses do capital conduzem-no a reduzir ao máximo o custo de produção,
encurralando os operários numa miséria crescente. Essa exigência leva
necessariamente à luta entre duas classes hostis.[3]
Neste cenário as ideias
marxistas – que funcionavam como uma religião antirreligiosa – floresceram. Se
não houvesse um remanescente fiel, as coisas poderiam ter ficado bem piores.
Bom é saber que Deus sempre manteve os seus profetas ativos. Os irmãos Wesley,
por exemplo, além de pregarem no período conhecido por um avivamento, no qual
se destaca também o ministério de George Whitefield, cuidaram do bem-estar dos
mineiros de carvão, de chumbo e também operários das siderúrgicas. Eles abriram
clínicas gratuitas para os trabalhadores, além de fornecerem um sistema de
crédito e abrirem escolas e creches. Não era apenas assistencialismo, havia uma
pregação que além de proclamar as boas-novas do evangelho, denunciava o sistema
injusto e opressor que estava muito distante da Lei de Deus.
Capitalismo
e Calvinismo: Qual é mesmo a relação?
Mas o capitalismo não teve
seu início por conta do ensino de João Calvino? Bem, geralmente é isto que se
diz nos livros didáticos de história. Max Webber, dizem alguns professores, fez
um excelente estudo e constatou que o capitalismo descende do calvinismo.
Quando lemos A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo, vemos que Webber trabalha a ideia da vocação –
presente no ideal calvinista – e a associa a prosperidade econômica, o que
levou os protestantes a assumirem uma postura ascética. É verdade que para os
calvinistas o trabalho é realizado para a glória de Deus e que esta ideia
serviu como força motriz para gerar prosperidade, já que o trabalho realizado
com esmero, sobretudo o comercial, rendia bons frutos. Só que este princípio foi
usurpado por uma ética utilitária que buscava o bem-estar dos indivíduos. A
ideia que veio de uma base doutrinária reformada, logo se apartou de sua origem
religiosa e transformou-se num ideal profano em busca de poder e felicidade
através do acúmulo das riquezas. Um dos motes desse utilitarismo diz que “tempo
é dinheiro” (time is Money). Embora a
prosperidade econômica tenha sido mais evidente entre nações protestantes,
sobretudo puritanas, o denominado “espírito do capitalismo” é resultado do
secularismo e não da doutrina religiosa calvinista. Foi o desenvolvimento
exacerbado do individualismo que suprimiu a ética cristã que pregava justiça.[4]
João Calvino é acusado
falsamente de ser o precursor da ética capitalista[5],
pois o mesmo nunca admitiria uma economia que estivesse embasada no
individualismo e na competição. Principalmente dentro de um corpo genuinamente
cristão. Os que fazem esta leitura partem do pressuposto equivocado de que
Calvino legitimou a usura, coisa que era condenada pela Igreja Católica e
também por Lutero. Segundo o reformador de Genebra, a Escritura proibia o
empréstimo a juros destinado a ajudar alguém que estava necessitado. Já no caso
das relações de empréstimo do século XVI, com a ascensão da burguesia e o
florescimento do comércio, havia uma enorme diferença. Ali o empréstimo servia
para financiar a produção. Sendo assim, quem lucrava em seus negócios após ter
tomado dinheiro emprestado, poderia partilhar de seu lucro com quem lhe
emprestou, devolvendo a quantia com um acréscimo. Calvino categoricamente
afirmou que isto não é proibido pela Palavra de Deus, ela a proíbe quando é
para o auxílio do pobre, não para o favorecimento do rico. Mesmo ensinando que
o empréstimo a juros para fins comerciais não fosse uma prática ilícita,
Calvino fez algumas ressalvas[6]:
- Embora não proibida, a
usura deveria ser evitada.
- Os juros devem ser
moderados.
- Aos pobres e
necessitados não se deve cobrar juros.
- Ninguém deve fazer da
usura uma profissão, deve-se lucrar com o trabalho e não com o ócio, apenas
“traficando” dinheiro.
- Não se deve emprestar e
tomar emprestado com frequência.
- A usura não deve existir
dentro da comunhão da Igreja.
Quando se trata da
distribuição da riqueza, Calvino acreditava que os ricos têm um papel
importante, na verdade um privilégio dado por Deus, para cuidar dos mais pobres
através dos seus bens. Ele acreditava que a riqueza pode ser uma benção no seio
da Igreja e por isso incentivou que a mesma fosse produzida. Todavia, onde
houvesse riqueza abundante, deveria haver doações abundantes. Calvino enxergava
os ricos como os responsáveis diretos pelo bem-estar dos menos favorecidos e
isso geraria um intercâmbio de bens pelo qual o dinheiro fluiria do rico para o
pobre, circulando livremente pela comunidade de uma maneira saudável e que
atendia aos anseios de Deus.
Sabemos que o pecado está
presente no coração humano, por isso que grande parte dos ricos não zela pelos
mais pobres e não atende suas necessidades. Logo, a Igreja deve se envolver na
assistência social através do ministério diaconal. O diaconato em Genebra
cuidava dos órfãos, das viúvas, dos estrangeiros e refugiados, sem fazer
distinção entre membros e não membros da igreja. O hospital da cidade era
dirigido pelos diáconos. Além do envolvimento direto da Igreja, também era de
sua competência: “[...] consistentemente alertar o Estado a que proteja os
fracos, os oprimidos e explorados pelos ricos, os que não possuem poder
político ou econômico, e que não têm proteção social”.[7]
Tratando agora sobre as
questões trabalhistas, nunca que Calvino iria concordar e se manter omisso
diante do contexto que eclodiu dois séculos depois. Vemos que já em Genebra ele
e os pastores tinham um importante papel de intercessão favorável aos
trabalhadores:
Os
pastores intercedem continuamente diante do Conselho de Genebra em favor dos
pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumento
de salários para os trabalhadores. Os pastores pregavam contra a especulação
financeira, e fiscalizavam parcialmente os preços contra a alta provocada pelos
monopólios. Sob a influência dos pastores, o Conselho limita a jornada de
trabalho dos operários.[8]
Estocagem de alimentos,
monopólios e especulação financeira eram práticas denunciadas por Calvino por
serem produtos da ganância e da avareza. Dentre os principais males, ele
considerava privar o homem do seu trabalho, e negar-lhe um salário digno, algo
gravíssimo. “A ética reformada do trabalho ordena, portanto, ação social eficaz
para prevenir o desemprego e intervir em benefício de suas vítimas”.[9]
É notório que em tempos de crise, as empresas cortam gastos inicialmente
demitindo parte de seus funcionários. Se fôssemos seguir as recomendações de
Calvino, esta seria a última alternativa, sendo a melhor atitude dos patrões
diminuírem a sua margem de lucro e baixarem seu padrão de vida para não deixar
o mais pobre desamparado sem ter como sustentar sua família. Com isso
observamos o quão distante se encontra o capitalismo da ética protestante.
Com toda a atuação dos
pastores, evitou-se que as greves que atingiram Lyon e Paris chegassem a
Genebra e emperrassem o crescimento da cidade. Suas gráficas redobram a
produção e daí a famosa edição francesa das Institutas,
pode ser publicada e distribuída. Assim, as regras profissionais são endossadas
pelo senso de justiça e caridade, tendendo a um desenvolvimento equilibrado.
Biéler comenta:
Desse
modo, ciosa da prosperidade da cidade, é a Reforma calvinista favorável à
atividade financeira, mas, preocupada com a sorte das camadas modestas da
população, levanta-se contra toda a prática ou atividade que ameaça prejudicar
a parcela mais pobre do povo. Busca, sem afrouxamento, salvaguardar sempre um
justo equilíbrio entre o surto econômico e a justiça social.
Mordomia
Cristã: uma alternativa supra-ideológica
É importante endossar que
as mazelas do capitalismo são oriundas da natureza adâmica e que a alternativa
não seria a troca de regime, ou como dizem os socialistas, a revolução. Mudar
as estruturas de poder não resultará numa sociedade perfeita, pois o pecado
ainda residirá nos corações humanos. Além do mais, a solução sugerida pelo
marxismo, quando posta em prática, gerou muito mais injustiças e opressão.
Governos tirânicos assassinaram milhões de pessoas e cercearam a liberdade dos
seus cidadãos. Não há um registro positivo na história onde quer que o
socialismo tenha sido implantado. Além disso, sabemos que o marxismo tem um
fundamento anti-cristão:
Em
países marxistas, a educação dominada pela análise marxista da história e da religião,
colocou o evangelismo cristão em grande desvantagem, pois é inevitável que
todos os espíritos, mesmo os não comprometidos com o marxismo, são obrigados a
ser fortemente influenciados por uma cosmovisão dialética e materialista. Foi
principalmente por conta dessa área de atuação que certos grupos não viram
outra alternativa a não ser classificar o marxismo como demoníaco e satânico.[10]
Ao cristão não compete
adotar nenhuma visão ideológica e se portar como peregrino neste mundo,
envolvendo-se naquilo que é convergente à ética cristã e desprezando o que fere
os princípios bíblicos. O capitalismo não se torna anti-cristão por perpetuar a
propriedade privada e, também, a divisão entre ricos e pobres, pois, esta
divisão existia também na teocracia israelita. O próprio SENHOR advertiu que
sempre haverá de existir pobres na terra (ler Dt 15. 7,8 e 11). Isto se dá pelo
coração obstinado do homem, que não obedece ao mandamento divino de cuidar para
que não haja mais pobres (como se lê um pouco antes em Dt 15. 4,5). O que torna
o capitalismo antagônico a moralidade bíblica é a crença na autonomia do homem.
Se atentarmos para a cosmovisão reformada da economia, que não tira de Deus a
soberania, podemos conciliar muito bem a produção capitalista e o ideal cristão
de justiça.
É possível ter posses -
até mesmo enriquecer - e mesmo assim ser alguém justo e que promove o bem para
o próximo. Não devemos esquecer o princípio da mordomia cristã que, grosso
modo, afirma que o que temos não pertence a nós mesmos. Com este tipo de
mentalidade podemos viver o desapego material, procurar uma vida modesta, sem
esbanjar futilidades e fugir do consumismo desenfreado. É possível que um
empresário bem-sucedido seja ético e com seu empreendimento promova os valores
cristãos, pagando dignamente aos seus funcionários, honrando com seus
compromissos fiscais, gerando mais empregos e doando parte dos lucros da
empresa para incentivar pesquisas científicas que serão socialmente benéficas,
organizações beneficentes e até agências missionárias.
Na próspera Genebra,
Farel, Calvino e os reformadores optaram por um estilo de vida tão simples que
seriam considerados paupérrimos segundo nossos critérios socioeconômicos. Mesmo
incentivando a economia, a modéstia foi a virtude pregada e vivida por estes homens.
Assim, se pregarmos e vivermos de maneira semelhante, podemos operar
transformações, não numa escala global e permanente, pois só quando Cristo
retornar e redimir este mundo por completo é que teremos, de fato, equidade e
justiça. Todavia, é possível minorar os sofrimentos dos mais pobres e promover
aquilo que é justo seguindo os princípios cristãos.
[...]
o uso legítimo dos bens recebidos consiste em compartilhá-los fraternal e
liberalmente, visando ao bem do nosso próximo. Para levar a efeito esse compartilhar,
não se pode achar melhor regra nem mais certa do que quando se diz: tudo que
temos de bom nos foi confiado em depósito por Deus, e nessas condições, deve
ser distribuído para o bem dos demais.[11]
[1] KOYZIZ, David. Visões e Ilusões Políticas, p. 56.
[2] BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes, p. 149.
[3] Ibidem, p. 155.
[4] Timothy Keller trabalha o conceito de justiça de forma brilhante. Sua definição
é a de que justiça significa relacionamento correto. Amparado no termo hebraico
tzadeqah, Keller afirma que a retidão
bíblica é inerentemente social, pois engloba os relacionamentos (Justiça
Generosa, Edições Vida Nova).
[5] O próprio Webber, numa nota de rodapé escreve: “(...) diga-se expressamente desde já que não estamos considerando aqui as
visões pessoais de Calvino”.
[6] Com base no capítulo 7 do livro Calvino,
Genebra e a Reforma, escrito por Ronald Wallace, editado pela Cultura
Cristã.
[8] Ibidem, p. 20.
[9] BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes, p. 127.
[10] Comissão Lausanne, Consulta de Pattaya, junho de 1980.
[11] CALVINO, João. As Institutas, Volume 4, p. 188.