Por J.I. Packer
O que queremos dizer
quando falamos de conhecer Deus? Vamos tomar o conceito, colocá-lo sob o
microscópio e procurar analisá-lo. E para melhor esclarecer o seu significado,
começarei declarando quatro aspectos que visam preparar o caminho para a
afirmação que farei ao final.
1.
Conhecer Deus é mais do que ter consciência de Deus
Em primeiro lugar,
precisamos deixar muito claro que conhecer Deus vai além da consciência que o
homem natural tem de Deus De fato, essa
consciência existe, por isso se os homens dizem que não reconhecem Deus, não
significa que nenhuma noção de Deus tenha chegado até eles. Ao contrário, isso
expressa que negaram qualquer noção de Deus que tenha se aproximado deles. É o
que Paulo diz no capítulo 1 de Romanos, e assim também diz Calvino, que estudou
esse capítulo e deu atenção à sua afirmação.
Calvino tem uma série de frases diferentes para expressar essa consciência inevitável que o homem natural tem do Criador, a quem ele deve servir e o qual, um dia, irá chamá-lo para prestar contas. Calvino fala sobre o sensus divinitatus, o “senso da divindade”. O que é o sensus divinitatus? É uma espécie de persuasão, o convencimento de que existe um Deus. Calvino também o denominou “semente da religião”, “inclinação para a religião” e “noção de Deus”. Todas essas são declarações usadas por ele para expressar a consciência inevitável da existência de um Deus a quem os homens devem adorar.
Certamente Calvino não se
refere a esse conhecimento de Deus utilizando a mesma palavra latina que usa
para descrever o conhecimento de Deus pelo cristão. Ele o chama de notitia ou,
poderíamos dizer, consciência, enquanto a palavra que reserva ao conhecimento
cristão de Deus é cognitia ou conhecimento no sentido pleno. Todavia, ele
insiste em afirmar que é inevitável ao homem natural ter a consciência de Deus.
Parafraseando Calvino: “Embora ele tente, não consegue escapar.” Isso é
precisamente o que Paulo diz em Romanos 1.18-23.
O conhecimento de Deus que
o homem natural possui é o de aliança, que envolve um compromisso pessoal de
ambos. É o conhecimento do Deus da aliança que os homens sabem ser o seu Deus.
Parafraseando Martinho Lutero, a religião é “uma questão de pronomes pessoais”.
Isso significa que seguir a religião cristã é uma questão de ser capaz de dizer
“meu Deus”, “meu Senhor”, “meu Salvador” e de saber que Deus diz de você “meu
filho”, “minha pessoa”.
Assim, o conhecimento de Deus
existe nesse relacionamento — e fora dele o que há é algo menor que o
conhecimento verdadeiro e pleno de Deus. O conhecimento de Deus, no sentido de
cognitia, é mais do que a mera consciência de haver um Deus. Inclui e envolve
comunhão com Deus. E é encontrado somente em uma relação de aliança na qual Ele
é o seu Deus e você é a pessoa dele.
2.
Conhecer Deus é mais do que uma experiência particular
Ora, não é assim. Há
muitas experiências intensas na vida, mas seria muito tolo supor que só por
serem intensas são cheias de Deus. E é ainda mais tolo quando as pessoas de
hoje tomam drogas e se expõem a outros estímulos artificiais para
intensificarem suas próprias experiências, acreditando que Deus está presente
em qualquer experiência intensa. Não é assim que as coisas acontecem. O
conhecimento de Deus não deve nem sequer ser identificado com uma experiência
de conversão, embora sem o conhecimento de Deus (no sentido em que estamos
falando) ela jamais existiria. O que quero dizer é que estamos falando de algo
muito maior, muito mais rico e mais abrangente do que qualquer experiência
particular. Quando temos o conhecimento de Deus, as experiências acontecem —
sim, graças a Deus elas acontecem — de todos os tipos e maneiras, como as de
conversão e outras experiências na vida cristã.
Conhecer Deus, no entanto,
tem a ver com relacionar-se com Ele, estar ciente desse relacionamento,
cultivá-lo e contar com Ele. É saber que esse relacionamento se mantém até
mesmo quando se tem uma dor de cabeça ou de dente, quando se sente a ponto de
desfalecer, quando só há depressão e melancolia. Eu afirmo que conhecer Deus é
mais do que ter qualquer experiência particular com Ele. Deixemos isso bastante
claro. A coisa mais importante da vida é ter clareza quanto a esse segundo
ponto, especialmente nos tempos atuais: o conhecimento de Deus é mais do que
simplesmente ter uma experiência intensa ou particular com Ele.
3.
Conhecer Deus é mais do que simplesmente conhecer a Deus
Então, em terceiro lugar:
conhecer Deus, segundo as Escrituras e de acordo com Calvino, é mais do que
simplesmente conhecer algo a respeito dele. Embora conhecer fatos sobre Deus
seja fundamental para conhecê-lo, há algo mais. Calvino foi muito claro acerca
daquilo que precisamos conhecer sobre Deus. Em sua primeira edição das
Institutas, ele especificou quatro coisas que precisam ser conhecidas acerca
dele. Veja o que ele diz:
Primeiro,
Ele é infinita sabedoria, justiça, bondade, misericórdia, verdade, poder e
vida, de modo que não há outra sabedoria, justiça, bondade, misericórdia,
verdade, poder e vida exceto nele. E onde quer que percebamos qualquer uma
dessas coisas, elas pertencem a Ele. E a segunda coisa que precisamos saber é
que todas as coisas, tanto no céu quanto na terra, foram criadas para a sua
glória. E a terceira coisa que precisamos saber é que Ele é um juiz justo, que
pune severamente aqueles que se desviam das suas leis e não realizam a sua
vontade inteiramente. E a quarta, que Ele é misericórdia e bondade, recebendo
gentilmente os miseráveis e pobres que buscam a sua clemência e se entregam à
sua fidelidade.
Esse é o conhecimento de
Deus. Ele é Aquele em quem todo valor habita. É o Criador de todas as coisas. É
o Juiz de todos os homens e é o Doador de toda a graça. “Essas são as quatro
coisas que precisamos saber acerca de Deus”, diz Calvino. Que todos os crentes
digam um caloroso Amém a tais sentimentos!
Mas Calvino foi o primeiro
a insistir no fato de que conhecer a Deus é mais do que simplesmente dominar
essa descrição do Senhor para saber sobre Ele. Todos os reformadores estavam
preocupados em ensinar e desenvolver as quatro verdades fundamentais sobre Deus
mencionadas por Calvino e, assim como ele, também se empenhavam em insistir que
por mais correto que o nosso conhecimento estruturado de Deus possa ser — e os
reformadores queriam que tivéssemos clareza sobre o nosso conhecimento acerca
de Deus — o conhecimento pessoal de Deus transcende tudo isso. O conhecimento
que eles buscavam, ao qual nos orientaram, assim como Paulo nos orienta, é o
que os filósofos modernos chamariam de conhecimento não apenas por descrição,
mas também por conhecimento direto.
Permita-me ilustrar o que
quero dizer com esta distinção. Eu posso saber muita coisa sobre o
primeiro-ministro britânico ou o presidente dos Estados Unidos, mas não conheço
nenhum deles. Tenho conhecimento a respeito dos dois por descrição, mas não
tenho conhecimento direto de nenhum deles. No entanto, posso dizer que tenho
conhecimento direto em relação, por exemplo, aos meus amigos e familiares, a
quem eu conheço e me alegro em conhecer. Você percebe a diferença? E conhecer
Deus, a Bíblia diz, é mais do que apenas ter conhecimento sobre Ele.
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Fonte: Anno Domini