Por Alan Rennê Alexandrino
Já é bastante conhecido o
conceito de “liquidez” utilizado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. De
acordo com ele, as relações humanas experimentaram uma drástica mudança durante
a pós-modernidade, também chamada por ele de “modernidade líquida”. Bauman
afirma que ideologias fortes ou “sólidas” características da modernidade deram
lugar a ideologias “líquidas” marcadas pela fragilidade, pela incerteza e pela
inevitabilidade de rompimento: “Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não
mantêm sua forma com facilidade [...] os fluídos não se atêm muito a qualquer
forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la”.[1]
A liquidez característica
da pós-modernidade atinge todos os aspectos da existência do ser humano. A
vida, em si mesma, é fortemente influenciada: “A vida líquida é uma vida
precária, vivida em condições de incerteza constante”.[2]
Consequentemente, os relacionamentos do ser humano também passam a ser
caracterizados por esta fluidez. Outrora as pessoas faziam questão de cultivar
relacionamentos profundos e duradouros. Um relacionamento que, porventura,
viesse a enfrentar dificuldades não seria descartado. Antes, tudo aquilo que
pudesse ser feito para salvar o relacionamento certamente seria feito. As relações
afetivas do ser humano eram sólidas, por assim dizer. No entanto, com o advento
da pós-modernidade as coisas mudaram. Relacionamentos são iniciados já com a
certeza de que nem se aprofundarão nem durarão muito tempo. E, uma vez que há
uma indisposição em se cultivar relacionamentos profundos, as pessoas fazem a
opção pelos chamados “relacionamentos virtuais”, pois, como pontua Bauman:
Diferentemente
dos “relacionamentos reais”, é fácil entrar e sair dos “relacionamentos
virtuais”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles
parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear.
Entrevistado a respeito da crescente popularidade do namoro pela Internet, em
detrimento dos bares para solteiros e das seções especializadas dos jornais e
revistas, um jovem de 28 anos da Universidade de Bath apontou uma vantagem
decisiva da relação eletrônica: “Sempre se pode apertar a tecla de deletar”.[3]
Eu acredito firmemente que
o que é afirmado aqui por Bauman pode ser aplicado à maneira como as pessoas se
relacionam com suas igrejas locais em nossos dias. O relacionamento dessas
pessoas com a igreja ou, em outras palavras, o seu compromisso como membros de
uma igreja local também tem sido marcado pelo conceito de “liquidez”. Praticamente
não há mais nenhum senso de pertencimento. Profissões de fé e batismos – que
assinalam a entrada da pessoa na comunidade pactual – são feitos; promessas e
votos a Deus e diante da igreja reunida são feitos; porém, em muitos casos, não
há a menor intenção de se honrar tais promessas e votos. Não são raros os casos
em que uma pessoa, pouco tempo depois dos votos assumidos por ocasião do seu
batismo e profissão de fé, simplesmente deixa de ir à igreja e passa a
frequentar outra. E é aterrorizante como praticamente ninguém vê problema neste
tipo de prática.
Entretanto, numa época
quando as pessoas não honram nem mesmo os seus votos matrimoniais, não é de
admirar que elas se vejam indispostas a honrarem os votos que, como membros da
igreja, um dia fizeram. Uma vez que casam imbuídos daquela mentalidade que diz
que, “se não der certo, então, é só separar”, elas também assumem compromissos
e fazem votos de membresia dispostos a quebrarem esses votos tão logo a igreja
deixe de lhes satisfazer. Sobre isso, é interessante a maneira como Timothy
Keller, escrevendo sobre o matrimônio, trabalha o conceito de relação de consumo. De acordo com ele,
as relações de consumo “duram apenas o tempo necessário para que um fornecedor
supra suas necessidades por um preço que você considere aceitável. Se outro
fornecedor oferecer serviços melhores ou os mesmos serviços a um custo
reduzido, você não tem obrigação nenhuma de manter a relação com o primeiro
fornecedor”.[4]
Nesse tipo de relação de consumo o que é importante é a satisfação das
necessidades do consumidor, não o relacionamento em si. É exatamente dessa
forma que outros relacionamentos além do casamento, como o compromisso da
membresia têm sido tratados:
Os
sociólogos argumentam que, na sociedade ocidental contemporânea, o mercado se
tornou tão dominante que o modelo de consumo caracteriza cada vez mais
relacionamentos que, historicamente, eram alianças, inclusive o casamento. Hoje
em dia, mantemos os vínculos com as pessoas enquanto elas suprem nossas
necessidades por um custo aceitável. Quando deixamos de lucrar com a relação –
ou seja, quando o relacionamento parece exigir de nós mais apoio e amor do que
estamos recebendo – saímos dele para “minimizar o prejuízo”.[5]
Afirmações como: “Não fui
acolhido!”, “Não fui amado!” ou “Nunca se importaram comigo!” são amostras
dessa mentalidade apontada por Keller. É claro que existem razões que
justificam que uma pessoa deixe uma determinada igreja, da mesma forma como
existem razões apontadas pelas Sagradas Escrituras, que permitem que uma pessoa
se divorcie do seu cônjuge (Mateus 19.9; 1Coríntios 7.15). John H. Gerstner
aponta que todos nós temos o solene dever de pertencermos a uma igreja visível.
No entanto, resta a pergunta: “Quando devemos deixar uma igreja?” Gerstner
responde: “A hora óbvia de se deixar uma igreja visível é quando a mesma deixa
de ser uma igreja”.[6]
E quando é que uma igreja visível deixa de ser uma igreja? Quando ela nega o
evangelho de Jesus Cristo. Uma igreja deixa de ser igreja quando ela passa a
abraçar outro evangelho que não aquele pregado pelos apóstolos: “Mas, ainda que nós mesmos ou mesmo um anjo
vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja
anátema. Assim, como já dissemos, e agora repito, se alguém vos prega evangelho
que vá além daquele que recebestes, seja anátema” (Gálatas 1.8-9). Uma
igreja local – ou uma denominação – deixa de ser igreja quando, por exemplo,
abraça o demoníaco liberalismo teológico e todas as suas implicações, como a
ordenação de homossexuais. Sendo este o caso, é imperativo que deixemos a
comunhão dessa igreja. Porém, quando este não é o caso, não temos permissão
para quebrarmos o voto de membresia: “Certamente, jamais devemos deixar uma
igreja antes que o próprio Cristo o exija. Se ele não nos separar, não nos
atrevamos a separar; se ele nos separar, não nos atrevamos a ficar. Mas ele é
muito mais relutante em nos separar do que nós somos”.[7]
Outra razão que justifica a quebra dos votos de membresia, de acordo com Gerstner, é “quando uma igreja exige que neguemos o que acreditamos ou acreditemos no que negamos”[8], isto é, quando uma igreja exige que neguemos uma doutrina não essencial que é crida por nós ou que abracemos uma que não é crida.
Mas o que se vê, hoje, no
meio da igreja evangélica é de causar vergonha. As pessoas se separam de uma
igreja local pelos motivos mais fúteis que se possa imaginar:
- Um casal de namorados
põe fim no relacionamento. Então, um dos dois decide sair da igreja, para não
encontrar mais o ex.
- Um membro da igreja é
disciplinado por causa de um pecado cometido. Então, decide deixar a igreja e
procurar uma que o receba “da maneira como ele está”.
- Termina o mandato de um
determinado pastor naquela igreja local e ele assume o pastorado de outra
igreja. Vários membros da antiga igreja resolvem deixá-la, a fim de seguirem o
seu pastor aonde quer que ele vá.
- A pregação do novo
pastor, conquanto fiel, não agrada a algumas pessoas. Então, elas rompem a
membresia da igreja e procuram uma igreja onde a pregação do pastor lhes seja
agradável.
- Uma família resolve
deixar a igreja depois de muitos anos, afirmando não ter sido acolhida, amada,
assistida pela igreja local.
- Um membro da igreja é
contrariado por uma decisão do Conselho da igreja local. Insatisfeito, ele
abandona a igreja e procura outra.
- Um membro da igreja fica
aborrecido por uma correção pastoral. O que se segue é o rompimento dos
vínculos com a igreja.
Enfim, existe uma
infinidade de razões tolas, fúteis e até pecaminosas pelas quais os votos de
membresia são rompidos nos nossos dias. Piora quando pastores de outras igrejas
locais, destituídos de qualquer senso ético, contribuem com esse tipo de coisa
ao estimularem tal comportamento. Não há mais a menor disposição de se
permanecer numa igreja local, ainda que a sua pregação e exercício da
disciplina sejam fiéis e a administração dos sacramentos correta. Ouço inúmeras
histórias de uma época quando as pessoas e famílias estavam dispostas a
permanecerem em suas igrejas locais, independentemente de qualquer coisa.
Quando algum membro da família era disciplinado, a última coisa que passava
pela mente da família era romper os votos assumidos no dia da profissão de fé.
Alegra-me o coração ouvir de alguns dos meus paroquianos que são membros da
igreja e discípulos de Cristo, não dos pastores que um dia passaram pela
igreja. Não obstante, para a grande maioria das pessoas hoje é diferente. O que
importa é se a igreja atende às expectativas do indivíduo. O que interessa para
a pessoa é se a igreja local a serve. A pessoa está ali para ser servida,
agradada e, jamais, pode ter suas expectativas frustradas e seus anseios
negados. Ir contra as suas expectativas pode significar “perdê-la”. Eu fico me
perguntando até onde esta postura reflete a mentalidade consumista da nossa
época. Se uma determinada prestadora de serviço não está te satisfazendo,
então, procure outra. Se determinada marca de macarrão caiu de qualidade e/ou
aumentou o preço, então, basta procurar outras marcas. Há uma ampla variedade
de marcas disponíveis. Tudo visando a satisfação do cliente e consumidor.
Aquilo que Bauman chama de
“liquidez” e que eu apliquei aqui à maneira como muitas pessoas tratam os seus
votos e juramentos quanto à membresia na igreja local, pode ser identificado
com alguns conceitos presentes nas Sagradas Escrituras. Por exemplo, em seu
famoso sermão escatológico o Senhor Jesus Cristo afirmou: “E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos”
(Mateus 24.12). Acredito não ser uma violação da hermenêutica bíblica entender
que essas palavras podem ser aplicadas ao assunto aqui abordado. O amor pela
igreja local tem esfriado. O senso de pertencimento tem arrefecido. Hoje a
iniquidade fez com que os padrões estejam completamente invertidos.
Antigamente, a principal razão de alguém amar uma igreja local era porque ali a
verdade estava presente: “O presbítero à
senhora eleita e aos seus filhos, a quem eu amo na verdade e não somente eu,
mas também todos os que conhecem a verdade, por causa da verdade que permanece
em nós e conosco estará para sempre” (2 João 1-2). As pessoas amavam a
igreja por entenderem que ela foi amada por Deus também. Nossos pais na fé
reformada amavam uma igreja onde a Palavra de Deus era pregada fielmente, os
sacramentos eram administrados corretamente e a disciplina era exercitada. Eles
amavam uma igreja assim, mesmo que ela ficasse localizada em lugares inóspitos.
Porém, em nossos dias isso mudou drasticamente. A verdade já não é mais o
motivo pelo qual as pessoas amam uma igreja e se doam a ela. Hoje, o critério
que determina o “amor” é se determinada igreja ou determinado lugar faz com que
as pessoas se sintam bem.
Da mesma forma, o apóstolo
Paulo afirmou a Timóteo que nos últimos dias os homens seriam egoístas e
desafeiçoados (2Timóteo 3.2-3). Além disso, falando a respeito de muitos
cristãos professos, Paulo afirmou que muitos não suportariam a sã doutrina e se
cercariam de mestres que atendessem exatamente aos seus desejos mais egoístas
(4.3).
Este tipo de mentalidade
danosa precisa ser extirpada do meio do povo de Deus. O pastor batista Mark
Dever afirma que uma das marcas de uma igreja verdadeiramente saudável é um
entendimento bíblico acerca da membresia da igreja.[9]
Semelhantemente, Thabiti Anyabwile afirma que um membro de igreja saudável é
aquele que é um membro comprometido com a sua igreja local, o que inclui a
permanência e o senso de pertencimento.[10] E é a
minha convicção de que a atual prática prevalecente e frouxa dos nossos dias só
poderá ser mudada a partir do ensino e de uma maior seriedade no momento do
exame de algum candidato à membresia da igreja.
Em
Cristo,
[1] Zygmunt Bauman. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 8.
[2] Zygmunt Bauman. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 8.
[3] Zygmunt Bauman. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 13.
[4]
Timothy Keller e Kathy Keller. O
Significado do Casamento. São Paulo: Vida Nova, 2012. p. 99.
[5]
Ibid. p. 100.
[6]
John H. Gerstner. “Guia-me, Ó Grande Yahweh!”. In: Don Kistler (Ed.). Avante, Soldados de Cristo: Uma Reafirmação
Bíblica da Igreja. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 177.
[7]
Ibid. p. 178.
[8]
Ibid. p. 183.
[9]
Mark Dever. Nove Marcas de uma Igreja
Saudável. São José dos Campos: Fiel, 2007. pp. 159-180.
[10]
Thabiti Anyabwile. O que É um Membro de
Igreja Saudável? São José dos Campos: Fiel, 2010. pp. 65-74.