Entrevistamos o Filósofo e Teólogo
Pedro Dulci, autor do livro Ortodoxia Integral, também fundador do Movimento
Mosaico. A Obra tem exercido uma importante reflexão sobre Cosmovisão Cristã
sob uma perspectiva reformacional. O livro levanta um debate acalorado e
interessante entre as ligações, associações e tensões do pensamento
reformacional e da Teologia da Missão Integral (TMI). Vários reducionismos e
excessos são apontados no livro e o autor levanta uma hipótese sobre o assunto,
uma reflexão a partir da teologia reformada pactual que ampara-se no motivo
básico cristão de Criação, Queda, , Redenção e sob uma perspectiva pactual de
leitura hermenêutica. Dulci reflete sobre o assunto de forma analítica e
minuciosa em seu livro e concedeu uma entrevista exclusiva ao Electus.
Pedro Dulci propõe um diálogo entre as
duas perspectivas e acredita que isso é positivo para o enriquecimento de ambos
os lados. Frente as muitas críticas a TMI, de maneira precisa ele aponta qual
tem sido o seu problema "deixar de acreditar no caráter supra-histórico da
revelação de Deus". Mas ele também enxerga uma "tentação da tradição
reformada é manter-se na inércia de sua segurança teológica".
A Entrevista foi feita pelos editores
do blog - Thiago Oliveira e Thomas Magnum. Devido ao que temos acompanhado
recentemente em nossa conjuntura sociopolítica, vemos um distanciamento ainda
maior entre os adeptos da TMI e os que se consideram reformados. Frente a
polarizações que também são ideológicas, consideramos que a fala do Dulci
é importante por ser reflexiva e fomentar um debate salutar. É sabida a nossa
crítica a tendência mais a esquerda da TMI, assim como nossa posição
abertamente identificada com os preceitos reformados confessionais. Logo, as
palavras do entrevistado não tem o nosso apoio irrestrito quanto a tudo que
pontua. Todavia endossamos, suas análises e propostas são interessantes,
valiosas e importantes.
Confira:
Na sua obra, Ortodoxia Integral,
você diz que a ortodoxia não pode estar separada da ortopraxia. A ortodoxia
integral é um compromisso com a Missio Dei e esse compromisso tem suas raízes
na teologia pactual. Sendo assim, quais são os maiores prejuízos advindos de um
entendimento errado a respeito da ortodoxia? Existe no atual cenário cristão
teológico uma polarização de ideias que prejudicam o correto entendimento da
integralidade da missão?
A leitura que vocês fizeram do
Ortodoxia Integral é precisa! Compreendemos que a relação pactual de Deus
conosco foi a forma que Ele escolheu de nos colocar na missão – que é Dele
originalmente, e não nossa. No interior das formulações teológicas que a Igreja
já produziu, a teologia do pacto, além de ser aquela que melhor nos orienta na
interpretação das Escrituras é, ao mesmo tempo, uma forma privilegiada de nos
relacionarmos integralmente com a sociedade, a família, a criação natural e com
o próprio Deus. Ou seja, ela dá dimensões holísticas, dimensões integrais, à
missão de Deus revelada a nós.
Historicamente falando do
evangelicalismo brasileiro, o grande prejuízo que tivemos foi um entendimento
reduzido dessa teologia pactual. A redução foi a um pacto de salvação meramente
individual. Não é sem motivo que, quando perguntamos aos cristãos no Brasil, o
que é a teologia reformada eles nos apresentam os “cinco pontos do Calvinismo”
– que nada mais é que parte de nossa doutrina da salvação. No entanto, a
ortodoxia reformada é muito mais do que isso. Os esforços de Zuínglio, Bucer e
Calvino – para citarmos alguns exemplos apenas – foram na direção de uma
reorganização geral da forma como o indivíduo se relacionava com Deus, com o
próximo, consigo mesmo e com a natureza. Mesmo que os reformadores não tenham
sido cientistas, pedagogos ou filósofos, eles lançaram as bases teológicas para
o desenvolvimento de todas as esferas da realidade em referência aos mandatos
de Deus. Ser ortodoxo, portanto, não pode significar menos do que estar
engajado na missão de Deus de fazer todas as modalidades da realidade cativas
ao senhorio de Cristo.
Infelizmente, no entanto, o que chegou
ao Brasil foi uma compreensão da ortodoxia que dizia apenas sobre o
entendimento correto da justificação do indivíduo através da imputação da
justiça de Deus aos eleitos. Essa formulação está totalmente correta, mas não é
nem metade da história. O teólogo norte-americano John Frame chama de
“calvinistas genéricos” os indivíduos que pensam dessa maneira. No entanto,
ainda hoje muito material está sendo traduzido de líderes renomados nos EUA que
crêem veementemente que a responsabilidade de uma igreja ortodoxa é apenas
evangelizar as pessoas – comunicando a doutrina da justificação imputada.Isso é
um empobrecimento sem precedentes.
Como não existem espaços vazios nos
processos sociais, surgem grupos de reação a essa perspectiva empobrecida. Se
nós temos um movimento intitulado “teologia da missão integral” é porque existe
uma compreensão de missão que não é integral – e nesse sentido eles estão
totalmente corretos. O clamor levantado pela “ala latino-americana” no primeiro
congresso de Lausanne foi totalmente legítimo! Sabemos que esse clamor não
começou ali, mas nos CLADE’s que antecederam Lausanne – e que, quando vemos a
origem deles, percebemos ser muito próximas das origens do nosso movimento por
uma Ortodoxia Integral. Quando René Padilla cunhou o termo “missão integral”
eles estava preocupado em evangelização de universitários! Ciência, arte,
política e teologia caminhando juntas em um contexto de muitas pobrezas, mas de
muitas riquezas também.
Acredito que foi justamente por isso
que homens como John Stott, Francis Schaeffer, dentro outros, reconheceram
imediatamente a legitimidade desse clamor. É o nosso clamor, é a integralidade
da missão de Deus mencionada acima. O grande problema surge quando aquele grupo
de indivíduos de “ortodoxia genérica” começa a polarizar com os irmãos de
missão integral e vice e versa. Não sei se foi por ciúme doutrinário, egoísmo
donominacional ou simplesmente indisposição em cooperar com perspectivas
diferentes, mas com o passar do tempo aquela união que existia em torno do
Pacto de Lausanne começou a se dissolver. Alguns começaram a achar que a
ortodoxia bastava e que o importante mesmo era só a proclamação da Palavra,
enquanto outros estavam tão concentrados nas pobrezas do sul de nosso
continente que se tornaram surdos ao que a Escritura dizia sobre outras
dimensões da realidade.
Com toda certeza, o maior prejuízo
resultante dessa polarização é a incapacidade de ambos os lados de
reconhecerem-se como irmãos – que trabalham a partir de perspectivas diferentes
(pensando no tripespectivismo de Frame e Poythress). Isso fez com que as
gerações seguintes de cada um desses movimentos já nascessem acreditando que o
“outro lado” não tem nada a ver conosco. Se pudéssemos ilustrar a nossa
situação no Brasil, é como se fossemos filhos de pais separados. Nós fomos gerados
por ortodoxos e integrais. Cansamos de ouvir cada um deles falando conosco e
nos ensinando a ler as Escrituras e, por causa disso, ainda tem partes deles em
nós. Nós ouvimos suas vozes e os reconhecemos como nossa família. No entanto,
em algum momento durante a caminhada, nossos pais se separaram. Quando
acontecem reuniões de família sempre tem constrangimento, desgaste, confusão.
Porque eles resolveram caminhar separados uns dos outros. Mas cabe a nós, os
filhos lembrá-los que eles têm algo em comum: nós! Somos nós, a geração mais
jovem desse evangelicalismo brasileiro, que temos que insistir nessa relação
com os nossos pais. Estamos fadados à frustração se ficarmos esperando dos
anciãos da teologia brasileira a movimentação em prol de novas fronteiras
teológicas. Eles estão mais velhos, cansados, indispostos. Já cumpriram com o
chamado que Deus lhes vocacionou. Não há nada de errado com eles. Mas nós não.
Não podemos fazer da briga deles a nossa. Nós estamos resolvidos, não podemos
ter ressentimentos ou qualquer tipo de indisposição que nos faça parar de
caminhar. Nós sabemos que sem ortodoxia bíblica a igreja local morre, e que o
conhecimento que não desemboca no serviço amoroso ao próximo é mentiroso. Por
isso a responsabilidade é nossa de termos uma ortodoxia integral.
Em que a filosofia reformacional
contribui para uma visão bíblica sobre a cultura e sobre o engajamento cristão
nela? E de que forma os cristãos podem se engajar culturalmente sem serem
influenciados pelo secularismo?
Essas duas perguntas estão intimamente
relacionadas. Para respondê-las gosto sempre de lembrar um texto que o Padilla
escreveu para o prefácio do livro do rev. Gildásio Reis sobre o próprio René.
Ali ele mostra como surgiu o seu conceito de missão integral e o contexto em
que ele estava inserido. Ele deixa claro que a TMI não se desenvolveu
sistematicamente. Antes, foram esforços pastorais para responder questões
pontuais da vida cristã. Isso fez com que, por um lado, a TMI fosse bastante
propositiva para o engajamento cristão nos desafios da realidade
socioeconômica, mas, por outro lado, carente de algumas lacunas teológicas que,
simplesmente, não tiveram oportunidade de serem escritas e publicadas.
Não vejo problema algum nisso, e achei
muito sóbria as ponderações de Padilla. Na verdade, mais do que isso: eu
enxergo justamente nessas lacunas que foram deixadas pelo caminho a porta de
entrada privilegiada para a contribuição que a teologia e a filosofia
reformacional podem oferecer aos clamores que são próprios da TMI. Se você
passa os olhos em textos de Abraham Kuyper, Herman Bavinck, Herman Dooyoweerd,
Francis Schaeffer, Bob Goudzwaard, Egbert Schuurman, GerritGlas, dentre outros,
você sempre perceberá uma preocupação: integralidade na relação entre nossa fé
e todos os outros campos da existência. Ou seja, a mesma preocupação da TMI,
mas com uma diferença: existe uma sistematização teológico-filosófica por trás.
Nesse sentido, a filosofia
reformacional contribui para o engajamento cultural dos cristãos dando aos indivíduos
uma “imagem completa” de sentido para a história, mostrando como cada
modalidade da existência pode ser reformada. Isso porque, não adianta sermos
super engajados em protestos, iniciativas culturais, artísticas, acadêmicas,
etc., se não tivermos os pressupostos bíblicos claros sobre a concepção de
sociedade, Estado, ciência, educação, etc. – algo que ninguém melhor que a
filosofia reformacional conseguiu fornecer à igreja de ontem e de hoje.
Sem esse background filosófico somos
pressas fáceis do secularismo – algo que está acontecendo com as melhores
mentes tanto da ortodoxia reformada quanto da teologia de missão integral. O
fenômeno acontece da seguinte maneira: uma vez que não temos acesso (ou não
temos interesse) ao que a filosofia reformacional tem produzido ao longo dos
anos, buscamos em propostas seculares opções para suprir nossas lacunas
teologias. É por isso que existem tantos livros “reformados” sobre cultura que
citam filósofos não cristãos conservadores, como também tantas pregações de “missão
integral” alicerçadas em bases sociológicas progressistas. Mais do que isso,
cada um dos lados tem mais disposição de dialogar com um não cristão que se
alinha às suas perspectivas ideológicas, do que com seus irmãos de teologia
diferente.
Eu sou aluno de doutorado em filosofia
em uma universidade não confessional, e o que eu mais faço na minha vida é ler,
citar, conversar e criticar pensadores não cristãos. Mas acho no mínimo
estranho – para não dizer inaceitável –ler um livro de sobre a relação da
teologia com as questões socioeconômicas das ruas e não ter na bibliografia do
autor NENHUM pensador da filosofia reformacional. Isso é uma questão de falta
de comunhão com os santos. Esse irmão precisa conhecer o trabalho de outros que
professam a mesma fé que ele – mesmo que a partir de perspectivas distintas.
Eu penso que, se é para ser coerente
com os pais da teologia da missão integral, veja os artigos que o René Padilla
escrevia para o Boletim Teológico de Princeton: quando ele faz a sua crítica à
sociedade capitalista ele não mencionava Marx, Engels ou Gramsci, mas o
professor de filosofia reformacional holandês Bob Goudzwaard e o comentário
bíblico de Brian Walsh. Essa relação entre filosofia reformacional e missão
integral PRECISA ser recuperada pelos filhos das duas tradições. Não podemos
ser esnobes cronológicos – como dizia C. S. Lewis. Somente assim poderemos
desenvolver um engajamento cultural relevante, sem abrir mão da radicalidade
ortodoxa de nossa fé.
Em seu livro você argumenta que a
integralidade da missão tem suas raízes na teologia reformada e esta pode nos
dar a correta perspectiva de mundo para o emprego da missão. Em que aspectos a
cosmovisão reformada seria melhor - por exemplo - do que perspectivas
conservadora, liberal ou socialista?E ainda: cabe ao protestantismo a clássica
divisão entre o sagrado e o secular?
A distinção da cosmovisão reformada que
a faz superior às outras opções que temos contemporaneamente é o que podemos
chamar de anti-reducionismo metodológico. Uma vez que ela se esforça em
manter-se fiel aos preceitos das Escrituras a respeito da exclusividade da
soberania de Deus sobre todos os aspectos da criação, a cosmovisão reformada
não elege nenhum outro critério para medir o mundo. Somente o Senhor Jesus Cristo
é soberano sobre a realidade, isto é, ele é o critério de avaliação e
julgamento de tudo o que discernimos na história. Nossa razão, nossos
sentimentos, a história, a estética ou a economia não são, em última instância,
nossas ferramentas de análise de toda a realidade. Não reduzimos todas as
explicações morais, por exemplo, à biologia – como faz um naturalista
filosófico. Não resolvemos todas as questões sociais a partir da economia
apenas. Enfim, graças a sua fidelidade à soberania de Deus, a cosmovisão
reformada está imune aos diversos reducionismos comumente encontrados nas
universidades, nas empresas, na indústria cultural – e, infelizmente, em
algumas igrejas.
Ao mesmo tempo, por não ser
reducionista, ela consegue também ser pluralista – no sentido de enxergar na
criação uma pluralidade de elementos, processos e dinâmicas que refletem o
Criador. Na cosmovisão reformada, não existe um elemento da realidade que é
mais sagrado que outro. Por isso que, mesmo não sendo sentimentalistas,
valorizamos os sentimentos; mesmo sem sermos racionalistas, apreciamos o uso
correto da razão; mesmo não sendo historicistas, somos sensíveis aos
acontecimentos históricos; e assim por diante. É justamente por isso que a
cosmovisão reformada é muito mais atraente e funciona muito melhor do que as
ideologias liberais, socialistas, nacionalistas ou até mesmo democráticas.
Enquanto cada uma dessas elege e concentra sua atenção em apenas um aspecto da
realidade, a cosmovisão reformada sabe reconhecer em todos os elementos da
realidade – sem absolutizá-los – reflexos da boa criação de Deus. Aquilo que um
democrata valoriza e absolutiza, Deus valoriza muito mais sem absolutizá-la; o
mesmo acontece com um socialista, um liberal ou um nacionalista. Ou seja,
debaixo do guarda-chuva da soberania de Deus sobre toda a sua criação, temos
todas as respostas aos clamores das diferentes ideologias político-sociais.
Tal percepção da realidade tem uma
consequência incontornável: ela torna inoperante a divisão clássica entre
sagrado e profano. Não existe um centímetro da realidade que não seja
importante aos olhos do Senhor. A sacralidade não está limitada ao templo, ao
domingo, ao culto e ao sacerdote. O trabalho do vendedor, do professor, do
artista, do vereador ou do médico é tão importante quanto aos olhos de Cristo.
Isso porque, em cada uma das esferas da realidade, Deus tem leis específicas e,
para levá-las a cabo, precisa de ministros específicos para cada uma delas.
Ocupar-se com qualquer parte da criação de Deus – seja ela microscópica ou
aparentemente pouco útil – é digno de todos os seus filhos (Sl 111.2).Mais do
que isso. Além de tornar tal divisão entre sagrado e profano inapropriada, a
cosmovisão reformada revela qual é o verdadeiro antagonismo que está na base da
existência: a devoção às duas cidades. Essa ideia tem sua formulação
paradigmática em Santo Agostinho, no seu clássico Cidade de Deus, cidade dos
homens, mas posteriormente é recuperada e aplicada às questões modernas pelo
reformador holandês Abraham Kuyper. Grosso modo, significa dizer que existem
apenas duas orientações para os corações dos indivíduos que eles podem empregar
seu amor. Ou eles têm seus compromissos fundamentais arraigados no amor a Deus
e, por conseguinte, na cidade de Deus, ou eles mantêm seu amor a si mesmo e
desprezam o Senhor, suas obras e suas orientações para cada uma das esferas da
existência. Dois amores diferentes, duas orientações fundamentais do coração
humano, produzem duas cidades. Não existe uma cidade apenas com dois âmbitos
(um sacro e outro profano). Tudo o que é feito na cidade dos homens é
irreconciliável e impuro – pois o coração desses homens despreza a Deus. Por
outro lado, tudo o que é feito por aqueles que têm seu coração em referência ao
Senhor visa a maior glória de Deus – podendo ser as produções mais simples da
humanidade.
Somente quando recuperarmos essa
compreensão de que somos aquilo que amamos, vamos ter uma reorientação
fantástica de tudo aquilo que fazemos (nossa profissão, nossas hobbies, nossa
vocação particular) com uma visão mais abrangente da relação entre Cristo e a
cultura. Alguém que está desenvolvendo um trabalho primoroso nessa direção é o
filósofo cristão norte-americano James K. A. Smith.
A TMI e o Neocalvinismo são assuntos
que ocupam uma pauta importante no atual debate sobre a cosmovisão cristã. O
Neocalvinismo e TMI são autoexcludentes?
Tanto a TMI quando o neocalvinismo não
são conjuntos estanques em sua possibilidades de variação. Existe a parte mais
evangelical de cada um dos movimentos teológicos, como também uma parte mais
liberal em suas formulações, por exemplo. Nesse sentido, se formos sensíveis a
essas variações, é muito mais fácil pensar na relação harmônica entre a old
school tanto da TMI quanto do neocalvinismo do que suas expressões mais contemporâneas.
A história nos mostra isso. O diálogo entre Padilla, Escobar e Arana com
Goudzwaard, Stott, Schaeffer e Walsh sempre se mostrou frutífero no passado. No
Brasil foi assim também com Robinson Cavalcante, Ziel Machado e Paul Freston,
por exemplo. Contemporaneamente, quem consegue encarnar as duas influências de
maneira bastante interessante é o anglicano N. T. Wright. Hoje em dia, no
Brasil, os esforços de um diálogo crítico, mas conciliador da TMI com o
neo-calvinismo tem sido preconizado pela Associação Kuyper de Estudos
Transdisciplinares e o L’Abri.No âmbito subjetivo – e muitas vezes invisível –
desse esforço em trabalhar pela relação de perspectivas teológicas diferentes
está o Movimento Mosaico – que não tem a vocação de produzir conteúdo teológico,
mas de empenhar-se pela unidade da Igreja através do vínculo da paz.
Cada um desses exemplos mostra que, a
princípio, não existe nada, emsi mesmo, na TMI nem no neocalvinismo que os
façam autoexcludentes. Entretanto, tanto um quanto outro podem assumir
contornos que impossibilitam a relação harmônica entre si. Particularmente,
acredito que existem algumas condições de possibilidade para que essa harmonia
aconteça: em primeiro lugar, a disposição para a relação. Na maioria esmagadora
dos casos, o diálogo não acontece por pura falta de disposição das partes. Quem
está de fora observando os desdobramentos atuais que colocam a TMI e o
neo-calvinismo em pauta, às vezes percebe nitidamente que muito desacordo não
acontece por questão doutrinária. Infelizmente, como em toda produção humana,
existe muita vaidade envolvida em nossas considerações teológicas – e isso
impossibilidade a relação com os diferentes. Por isso a disposição para essa
relação é indispensável. Em segundo lugar, vem a necessidade de resolver pontos
teológicos que ainda estão soltos nas amarrações das duas teologias – pensando
em nosso caso latino-americano, em que as demandas contextuais da TMI são
inegáveis, como também nas contribuições neocalvinistas que soam muito
interessantes para nossos problemas. Não sou ingênuo de pensar que esse
trabalho é sem atrito ou desgaste. No entanto, inviabilizar a frutificação de
duas construções teológicas bem interessantes pela simples indisposição
relacional dos diferentes fala muito de nós, de nossos pecados e debilidades.
Agora, em terceiro lugar, mas não menos importante, existem as questões
teológicas incontornáveis que precisam ser tratadas, corrigidas e bem
determinadas para que a relação entre TMI e o neo-calvinismo não seja falsa.
Nesse ponto, em particular, é que a crítica reformada assume o desgastante, mas
necessário, papel de avaliar a que custo essa relação será possível.
Como avalia a crítica reformada a
TMI? Você acredita que ela está distante do conceito cunhado em Lausanne e bem
mais próxima da Teologia da Libertação (TL)?
E, de certa forma, você enxerga uma inércia no segmento reformado em
empregar uma refutação que seja também uma alternativa prática a justiça, ao
pobre, a arte, a música, etc.?
A crítica reformada, quando feita em
amor e disposição relacional para o avanço teológico local, tem a função de
contribuir com a TMI naquelas lacunas teológicas que mencionei anteriormente.
Não podemos, em nome da (pseudo)relação harmônica entre as tradições teológicas
diferentes, adotarmos um generalismo teológico que não se posiciona em relação
a questões fundamentais da teologia cristã. A tentação da TMI é concentrar-se
unicamente na intervenção contextualizada do evangelho na luta pela justiça e
socorro ao pobre econômico à revelia de discutir entre seus pares
posicionamentos teológicos mais profundos. O resultado, muitas vezes é o que
estamos vendo recentemente no Brasil: a ausência de unidade em posicionamentos
teológicos mais radicais – como, por exemplo, a teologia política do movimento,
sua relação com as ideologias e idolatrias culturais. Se não abrirmos mão do
clichê de que a teologia não serve às ruas e não alimenta os pobres, não
conseguiremos estabelecer uma convicção teológica firme o suficiente para não
se abalar, ou se confundir, frente às urgências contextuais de nossa política.
Por outro lado, e não menos
problemático,a tentação da tradição reformada é manter-se na inércia de sua
segurança teológica e não (1) sair de uma posição defensiva, que se utiliza das
ferramentas apologéticas para criticar tudo o que é feito e produzido
diferentemente dos seus arraiais teológicos; e passar a (2) se arriscar a
pensar em formas de aplicar e discutir sua ortodoxia frente aos desafios
contextuais da América Latina que, indiscutivelmente, são diferentes dos
contextos em que surgiram os fundamentos da teologia reformada – e eu diria
ainda mais da posição singular do Brasil em relação ao resto da América latina.
Em síntese, minha hipótese para o futuro da teologia reformada é que é preciso
colocar a apologética à serviço da missão. Nossa ortodoxia precisa estar
harmonicamente alinhada com uma ortopraxia – sem mencionar a ortopatia, que não
seja produzida pela manipulação dos sentimentos e dos sentidos em cultos
catárticos, mas que seja o resultado de um discipulado de nossas emoções pelas
convicções do evangelho. John Frame é paradigmático nesse sentido em nos
mostrar a equivalência dessas três perspectivas, e James Smith é uma porta de
entrada privilegiada para as discussões de liturgias culturais e discipulado de
nosso imaginário do Reino de Deus. E se algum de nossos leitores subscreve
aquele clichê que recusa limitar suas leituras aos “enlatados estrangeiros”,
leia e lide com as argumentações de Guilherme de Carvalho, Igor Miguel, Marcos Almeida,
Leonardo Ramos, Rodolfo Amorim, Sandro Baggio e tantos outros que estão
ocupados em responder nossas pobrezas locais com as riquezas da leitura
ortodoxa das Escrituras.
O desafio teológico brasileiro é o de
avançar nesse sentido. Quando olhamos nossa história recente, vemos como os
conceitos integrais de missão cunhados a partir de Lausanne foram determinantes
para uma geração inteira do evangelicalismo brasileiro. Enquanto nossos
esforços estavam girando em torno do pacto de Lausanne, havia unidade entre
nós. No entanto, existe uma parcela grande da atual geração de líderes da
perspectiva integral da missão que são influenciados por outras fontes. Eu não
diria que o afastamento de Lausanne aconteceu em direção aos pressupostos da
Teologia da Libertação – pelo menos, não em sua relação complicada com o
instrumental de análise sociológica marxiana. O que ocupa e (de)forma o
imaginário teológico contextual da atual geração de líderes envolvidos
diretamente na integralidade da missão são os estudos culturais e o
historicismo. Para ser caricato, hoje em dia, Foucault é muito mais importante
do que Marx. Essa modificação é significativa, pois, suas consequências são bem
mais amplas. A relativização de toda a realidade à história atinge não apenas
hermenêutica bíblica, mas também as compreensões de gênero, relações de poder,
visão pós-estruturalista do ser humano. Em termos práticos, isso significa
deixar de acreditar no caráter supra-histórico da revelação de Deus, não
encontrar problemas em formas alternativas de organização da nossa sexualidade,
julgar e questionar qualquer instituição de autoridades dentro e fora da igreja
a partir de critérios de poder. Enfim, a tentação que a geração mais nova da
teologia brasileira precisa enfrentar diz respeito a muitas frentes de
trabalho. Existem muitas pobrezas para além do clamor econômico que era
majoritário na Teologia da Libertação. O
abandono de algumas práticas e tradições consolidadas na cristandade que
estamos assistindo por alguns líderes mais jovens é fruto da sua incapacidade
de resistir ao canto da sereia dos estudos culturais. Entretanto, sem uma
cristologia de raízes profundas, essa resistência é impossível.