Por
Alan Rennê Alexandrino Lima
Introdução
Originalmente
publicada entre os anos de 1768 e 1771, a Encyclopaedia
Britannica é considerada a mais acadêmica de todas as enciclopédias já
publicadas. Uma estudiosa chamada Gillian Thomas chegou a afirmar, numa obra
sobre a décima primeira edição da enciclopédia, que a Britannica deve ser considerada como o ápice de todo o conhecimento
humano, dado o
seu caráter amplamente generalista, que procura discursar a respeito da maior
gama de assuntos possível. É possível encontrar praticamente qualquer coisa que
se procure, desde verbetes relacionados à geografia, biografia, biologia,
medicina, literatura mundial, física, química, astronomia, filosofia, teologia
etc.
Uma
enciclopédia possui a função de ser uma obra de referência que possibilite a
consulta a qualquer assunto de interesse humano. Como o sentido etimológico do
termo indica, uma enciclopédia intenta disponibilizar conhecimento geral. Está
curioso a respeito de algum assunto? É só consultar o verbete e, imediatamente,
a curiosidade será sanada. Deseja adquirir uma visão geral a respeito da função
das vacinas? Tem o interesse em aprender o básico sobre a história do judô? É
só consultar a enciclopédia mais próxima.
Algo
muito comum no meio da cristandade é o tratamento dispensado à Bíblia como se
esta se tratasse de uma enciclopédia com verbetes disponíveis a respeito de
todos os assuntos da fé cristã. Todo pastor ou professor de escola dominical já
deparou com uma situação na qual alguém o aborda com perguntas do tipo: “Onde é
que eu acho, na Bíblia, um versículo sobre a Trindade?”, “Por favor, você
poderia me dar um texto que diga que Jesus é Deus-homem?”, “Em qual lugar do
Novo Testamento afirma que não se pode dançar no culto?”, “Onde é que é
possível encontrar um texto que afirme que o dia de descanso passou do sábado
para o domingo?”, ou ainda a afirmação: “Mas não existe nenhum texto na Bíblia
que diga que crianças devem ser batizadas!” Todas estas perguntas denotam que o
interlocutor deseja um versículo/verbete que diga de forma sistemática tudo
aquilo que ele necessita saber sobre determinado assunto. São questionamentos
que evidenciam o desejo por algo já pronto, que não demande reflexão,
raciocínio lógico, deduções, inferências e a construção de um entendimento
baseado no todo da revelação bíblica.
Não
obstante, é importante compreender que não é dessa maneira que as Sagradas
Escrituras devem ser tratadas. A Bíblia não foi dada por Deus à Igreja para
servir como uma espécie de obra de referência com verbetes disponíveis
concernentes a todas as questões de fé e vida. A Bíblia não é uma obra
semelhante a uma teologia dogmática. O teólogo reformado holandês Herman
Bavinck (1854-1921) faz uma observação extremamente pertinente a este respeito.
Ele faz uso de uma metáfora elucidativa:
A Sagrada Escritura
não é dogmática. Ela contém todo o conhecimento de Deus de que precisamos, mas
não na forma de formulações dogmáticas. A verdade foi depositada na Escritura
como fruto da revelação e da inspiração, em uma linguagem que é a expressão
imediata da vida e, portanto, sempre se mantém viçosa e original. Mas ela ainda
não tinha se tornado objeto de reflexão e ainda não tinha atingido a
consciência pensante do crente. Aqui e ali, por exemplo, na carta aos Romanos,
pode haver um começo de desenvolvimento dogmático, mas não mais que um começo.
O período da revelação tinha de ser encerrado antes que a reprodução dogmática
pudesse começar. A Escritura é uma mina
de ouro: é a igreja que extrai o ouro, põe sua estampa sobre ele e o converte
em dinheiro circulante.
É
inegável, pela afirmação de Bavinck, que a Escritura fornece conhecimento. O
que necessita ser compreendido é que tal conteúdo não se apresenta
sistematizado, organizado em sistemas como ocorre em obras de teologia
dogmática. Numa obra desta natureza, quando se deseja pesquisar a respeito da
queda da humanidade no pecado, basta buscar no índice o lugar exato pela
categoria hamartiologia e, pronto, tudo o que se necessita saber está
disposição. A Bíblia não foi escrita dessa maneira. O conteúdo disponibilizado
na Escritura necessita ser alvo de reflexão, inquirição, associação e
processamento dogmático. O conhecido teólogo princetoniano, Charles Hodge,
afirma que a teologia consiste de algo mais que o mero conhecimento de fatos
registrados nas Escrituras. De acordo com ele, “a Bíblia contém as verdades que
o teólogo precisa coligir, autenticar, organizar e demonstrar em sua relação
natural umas com as outras”.
O
trabalho do teólogo é semelhante ao de um mineiro. Para extrair o ouro ele
precisa adentrar aos recessos mais profundos da mina e manusear diversas
ferramentas a fim de extrair o metal precioso. Há partes da mina que a
composição das paredes é mais rochosa, o que demanda o uso de mais força e de
ferramentas mais especializadas. De modo semelhante, o teólogo mergulha nas
páginas da Bíblia e labuta de maneira séria e árdua, inclusive em oração, a fim
de extrair das páginas do livro sagrado a preciosa doutrina evangélica. Há
partes da Escritura que são mais complexas ou, como coloca a Confissão de Fé de Westminster: “Na
Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo
evidentes a todos”.
Assim, em determinados trechos das Escrituras o teólogo encontrará mais
dificuldade para extrair o sumo da revelação divina. Bavinck observa ainda que,
“processar dogmaticamente o conteúdo das Escrituras, porém, não é apenas o
trabalho de um teólogo individual, ou de uma igreja ou escola em particular,
mas de toda a igreja através dos séculos, de toda a nova humanidade regenerada
por Cristo”.
Precisamos
compreender, portanto, o que torna necessário este modo de fazer teologia. Após
discutir brevemente tal necessidade, é preciso abordar um dos modos legítimos
pelo qual o ouro da Escritura é extraído, estampado e colocado em moeda
circulante.
A Distinção
Criador/Criatura
Visando
a instrução e a edificação da Igreja, o conteúdo registrado nas Sagradas Escrituras
necessita ser devidamente organizado e sistematizado. Um dos benefícios
existentes na sistematização do conteúdo escriturístico é a possibilidade de se
relacionar num todo coerente as verdades que nos são dadas por Deus, o autor
das Escrituras. O Dr. Heber Campos assim se expressa em relação à necessidade
da extração e organização dos dados bíblicos:
Pela sistematização
aprendemos a associar ideias importantes em grupos, para que o material fique
bem organizado e facilite para a nossa mente finita o que é simples para a
mente infinita. Se não houver a sistematização da verdade, as estruturas do
nosso pensamento rapidamente ficam complicadas. Por isso, precisamos que as
ideias sejam concatenadas de maneira a facilitar a nossa apreensão da verdade.
Nós,
seres humanos, em razão da nossa finitude, temos uma dupla necessidade que não
existe em Deus. Primeiro, por ser infinito em seu ser e perfeições, Deus não
necessita de uma organização sistêmica. Sua mente em si mesma tem o
conhecimento de todas as coisas sem que estas precisem ser necessariamente
organizadas como nós precisamos, devido à nossa finitude de mente. Em segundo
lugar, em razão da infinitude do seu conhecimento, Deus tem à sua disposição
todo o conhecimento necessário de forma simultânea e instantânea. O teólogo
dogmático Louis Berkhof afirma que Deus “vê as coisas de uma vez em sua
totalidade, e não fragmentadas uma após à outra”. Esta é
outra forma de afirmar que o conhecimento de Deus é perfeito. Por ser perfeito
em conhecimento, Deus não está sujeito ao aprendizado e sucessivo acúmulo de
informações. Já o ser humano é sempre fragmentado e parcial em seu
conhecimento. A relação entre o conhecimento que Deus tem em si mesmo e o
conhecimento disponibilizado ao ser humano é sumariado por Bavinck: “Pois o
conhecimento que Deus tem de si mesmo é absoluto, simples, infinito e, em sua
plenitude, é incomunicável à consciência finita”. Dessa
forma, é imprescindível ao ser humano o emprego de ferramentas que lhe
proporcionem o crescimento em termos de conhecimento teológico. A
sistematização do conteúdo revelado nas Escrituras atende a esta necessidade.
Como expressou Robert Burridge, a extração, organização e sistematização de
ideias é algo próprio da humanidade finita:
O Criador tem uma
mente unificada absoluta que nós tentamos entender através de sua revelação.
Como Criador, ele nos designou para sermos capazes de conhecer exatamente o que
ele quer que conheçamos [...] Ao grau em que usamos consistentemente os métodos
de Deus, nosso estudo produzirá ideias consistentes com a verdade como ela
existe absolutamente na mente de Deus.
É
óbvio, então, que embora podendo conhecer aquilo que Deus resolve revelar em
sua Palavra, nosso conhecimento tanto do Ser divino quanto das suas obras é analógico, ou seja, o conhecimento de
que dispomos “concorda com, corresponde a, mas não é completamente idêntico com
o que está na mente perfeita de Deus. Existe uma ‘analogia’ entre o que Deus
fala às suas criaturas e o que Deus conhece infinita e perfeitamente”. Isso
pode ser visto, por exemplo, em Deuteronômio 18.21-22: “Se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o SENHOR não
falou? Sabe que, quando esse profeta falar em nome do SENHOR, e a palavra dele
se não cumprir, nem suceder, como profetizou, esta é a palavra que o SENHOR não
disse; com soberba, a falou o tal profeta; não tenhas temor dele”. O
princípio que pode ser observado nesta passagem é que “é exigido dos profetas
que a sua mensagem seja consistente com tudo aquilo que Deus revela e concorde
com tudo o que Deus faz ou permite”. R.
Scott Clark observa que a conhecida passagem de Deuteronômio 29.29 também
fundamenta o entendimento do conhecimento analógico que o ser humano tem de
Deus: “As coisas encobertas pertencem ao
SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos,
para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”. Clark afirma
que esta passagem, bem como outras, fundamenta a distinção entre o conhecimento
de Deus em si mesmo (en si) e o
conhecimento revelado a nós (erga nos). Assim, dada a nossa finitude e uma vez
que não dispomos de conhecimento perfeito, completo, instantâneo e simultâneo,
como ocorre com Deus, é essencial a existência do labor teológico para a
formação de dogmas e doutrinas.
Compreender
esta verdade nos conduz ao próximo tópico.
A Progressividade da
Revelação
Deus
revela a si mesmo, seu ser e obras, ao ser humano. O que deve ser entendido a
este respeito é que a revelação não foi dada pelo Senhor de uma só vez. A plenitude
da verdade divina não foi entregue à humanidade logo no começo da história.
Deus gradualmente revelou as verdades em espaços de longo intervalo, de acordo
com as necessidades dos homens, numa medida que era suficiente para a
compreensão e absorção por parte dos recipientes da revelação.
Portanto,
a revelação divina é um processo que começou no Jardim do Éden e culminou na
revelação que Jesus Cristo deu enquanto esteve entre nós e na revelação que ele
deu posteriormente aos apóstolos, como Paulo, por exemplo. Nesse processo
histórico houve um progresso no conteúdo e na quantidade de revelação.
Gradualmente Deus foi mostrando aos homens a natureza do seu caráter através de
preceitos no decorrer da história. Cada aspecto novo da revelação era baseado numa
revelação anterior de forma que a Escritura é um conjunto harmônico de verdades
reveladas. Por exemplo, quando João introduziu o “Cordeiro de Deus” aos seus
discípulos, ele o fez baseado numa revelação anterior do cordeiro que era
sacrificado na páscoa, de forma que a mensagem posterior se tornou inteligível
por causa da anterior. Quando Jesus apresentou a si mesmo como o Eu Sou já
havia uma noção anterior da divindade no AT como sendo o “Eu Sou”. Uma
revelação está fundamentada numa anterior, mas com seu caráter progressivo,
acrescentando novos vislumbres, detalhes e especificidades da verdade em
relação à anterior.
Geerhardus
Vos explica a ideia de progressividade da revelação da seguinte forma: “Ela não
foi completada num único ato exaustivo, mas se desdobrou numa longa série de
atos sucessivos”. É
interessante que Clark H. Pinnock, um dos principais adeptos do Teísmo Aberto, numa obra publicada em
1971, fez a seguinte afirmação sobre a natureza da revelação de Deus registrada
na Bíblia:
Nós não encontramos
revelação especial na forma de teologia proposicional, mas de um modo
histórico, pois a revelação se desdobra em sucessivos fascículos, numa série de
situações revelacionais na história. Toda revelação é “encarnacional”, imersa
na história e na linguagem humanas. É um crescimento orgânico da muda à planta
plenamente madura, a partir dos primórdios do livro de Gênesis à glória da Nova
Aliança de nosso Senhor. A revelação se interpõe através de numerosas
modalidades e avança continuamente até que a edição culminante e a coroação
final sejam publicadas em Jesus Cristo.
Vos
destaca que a revelação não poderia ser dada de outra forma que não a
progressiva, uma vez que ela está ligada aos atos redentivos de Deus: “De forma
abstrata, ela poderia ter sido concebida de outra maneira. Mas como matéria de
fato, não poderia ser, porque a revelação não se firma por si só, mas está
(quanto à Revelação Especial) inseparavelmente ligada a outra atividade de
Deus, que chamamos de Redenção”. E a
própria redenção não poderia acontecer de outra forma senão através de sucessão
história, em diversos desdobramentos históricos. Dessa forma, a própria
“revelação é a interpretação da redenção; ela deve, portanto, se desdobrar em
etapas como ocorre com a redenção”. Benjamin
Warfield faz a mesma observação a respeito da progressividade da revelação, mas
assinala que a revelação não pode ser confundida com a redenção em si. Antes,
ela deve ser vista como parte dos atos redentores de Deus:
A revelação é,
naturalmente, geralmente feita pela instrumentalidade dos atos e a série dos
grandes atos redentores de Deus pelos quais ele salva o mundo constitui a
revelação por excelência da graça de Deus – na medida em que estes atos de
redenção são abertos à observação e são percebidos em sua importância. Mas a
revelação, afinal, é o correlato do entendimento e tem como finalidade imediata
apenas a produção de conhecimento, embora não o conhecimento voltado para si
mesmo, mas para a salvação [...] A revelação, assim, aparece, no entanto, não
como mero reflexo dos atos redentores de Deus na mente dos homens, mas como um
fator na obra redentora de Deus, um componente da série de seus atos
redentores, sem o qual esta série seria incompleta e inoperante quanto ao seu
fim principal [...] A revelação é, em poucas palavras, por si só um ato
redentor de Deus e de modo nenhum o menos importante na série de atos de
redenção de Deus.
Isto
pode ser claramente percebido em todos os estágios da revelação, por exemplo,
no Antigo Testamento. A revelação entregue, primeiramente, a indivíduos e,
posteriormente, a famílias e à nação de Israel sempre foi um meio utilizado por
Deus para se fazer conhecido e dar a conhecer como os recipientes dessa
revelação poderiam desfrutar de um relacionamento pactual amoroso com ele.
Pensemos na revelação de Deus pela qual ele sacrifica animais e com a pele
destes cobre a vergonhosa nudez de nossos primeiros pais, Adão e Eva (Gênesis
3.21), passando pela revelação de que, para que Isaque pudesse viver um
cordeiro teria de ser oferecido em seu lugar (Gênesis 22.1-13), pela declaração
de Levítico 16 de que os dois bodes levariam sobre si a iniquidade de todo o
povo, até o dia em que o profeta João Batista declarou: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1.29).
Em todas essas ocasiões a revelação em si mesma serviu como um ato redentor de
Deus, na medida em que ela produziu conhecimento para a salvação, para que o
povo pudesse desfrutar de um relacionamento salvífico com Deus.
Uma
passagem clássica que mostra a progressividade da revelação é Hebreus 1.1-2: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes
e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou
pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez
o universo”. A expressão “muitas vezes e de muitas maneiras” aponta para a
ideia de uma sucessão ou cumulação de informação redentiva ou, em outras
palavras, para a ideia de progressividade. Em sua exposição de Hebreus, o
puritano John Owen também entendeu que a expressão “muitas vezes e de muitas
maneiras” encerrava em si a ideia de progressividade da revelação:
O que é pretendido
por essa expressão é a descoberta gradual da mente e da vontade de Deus pela
adição de uma coisa após outra, diversos períodos, à medida que a igreja podia
comportar a luz deles, e à medida que ela estava servindo ao seu principal
desígnio de reservar toda a preeminência ao Messias. A maneira como tudo isso
serve de argumento ao propósito do apóstolo aparecerá em breve. Deve-se tomar essa
expressão de forma absoluta, para denotar o progresso inteiro da revelação
divina desde o início do mundo.
A
ideia por trás de toda esta formulação é a de que, à medida que a história
humana avançava, Deus adicionava mais detalhes, maiores informações e maior luz
a uma verdade já revelada anteriormente.
A
relevância da progressividade da revelação para o método teológico está em que,
para que um determinado dogma seja formado ou uma determinada doutrina seja
estabelecida como matéria de fé na igreja cristã, não basta a apresentação de
um versículo. A título de exemplificação, o estabelecimento da doutrina da Trindade
jamais poderá repousar na apresentação de um texto ou um simples versículo que
diga, de maneira expressa, que existe uma subsistência de três pessoas no Ser
divino, como é frequentemente exigido por aqueles que defendem algum tipo de
teologia unicista. O ponto a ser estabelecido é que a doutrina da Trindade pode
ser claramente observada à medida que a revelação bíblica avança, indo de um estágio
com menos luz para outro com mais luz. Em Gênesis 1 tanto o nome אֱלֹהִ֑ים (Elohim)
– um substantivo masculino com terminação plural – como o uso de verbo e
pronome no plural (“façamos o homem à
nossa imagem, conforme a nossa semelhança”) nos permitem concluir tão
somente pela existência de uma pluralidade na divindade. Não é possível chegar
ao entendimento de que Gênesis 1 ensina a doutrina da Trindade porque não há
luz suficiente para tal. Somente à medida que a revelação bíblica progride e
culmina com a revelação do Novo Testamento, é que podemos chegar a esta compreensão.
Vê-se, pois, que a Bíblia não é enciclopédia na qual consta um verbete
intitulado “Trindade”, que reúne todas as informações necessárias para o
entendimento desse dogma.
A Crescente Necessidade no
Cristianismo Primitivo
Outro
fator que deve ser observado quanto à necessidade do labor teológico é a
progressiva complexidade que caracterizou a maneira como a igreja cristã passou
a fazer teologia ao longo da sua caminhada. Quando comparados o período dos
Pais Apostólicos e o dos Pais Apologetas já é possível perceber uma nítida
diferença na maneira como os dogmas e doutrinas da igreja eram formados. No
primeiro período a dogmática ainda se encontrava em sua forma embrionária ou
mais primitiva. Estritamente falando, de acordo com Bavinck, no período dos pais
apostólicos ainda não havia algo como um dogma ou uma dogmática. Não havia a
preocupação com desenvolvimentos dogmáticos a respeito, por exemplo, das duas
naturezas de Cristo ou da união hipostática. A grande preocupação
característica desse período era de cunho moral. Tanto é assim que os primeiros
documentos cristãos concentram grande parte da sua atenção em questões éticas e
morais. Um exemplo claro é o Didaquê, escrito entre 70 e 150 d.C. Esta obra
é dividida em duas partes, sendo que a primeira (capítulos 1-6) apresenta um
conjunto de instruções morais intitulado “Os Dois Caminhos”. No capítulo 1
encontramos o seguinte, a título de amostragem:
Existem
dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte. Há uma grande diferença
entre os dois. Este é o caminho da vida: primeiro, ame a Deus que o criou;
segundo, ame a seu próximo como a si mesmo. Não faça ao outro aquilo que você
não quer que façam a você. Este é o ensinamento derivado dessas palavras:
bendiga aqueles que o amaldiçoam, reze por seus inimigos e jejue por aqueles
que o perseguem. Ora, se você ama aqueles que o amam, que graça você merece? Os
pagãos não fazem o mesmo? Quanto a você, ame aqueles que o odeiam e assim você
não terá nenhum inimigo (vv. 1-3).
Já
a segunda parte do Didaquê consiste
de orientações de natureza litúrgica (capítulos 7-10), sobre a vida em
comunidade e orientações quanto ao tratamento daqueles que se apresentavam como
profetas (capítulos 11-15) e um capítulo de natureza escatológica (16). O que
fica claro a partir da citação acima é que, de fato, no período dos chamados
Pais Apostólicos não havia preocupação com a reflexão teológica de natureza
mais complexa.
Bavinck faz um excelente resumo dos escritos conhecidos como Pais Apostólicos:
Eles ainda agem
completamente sobre a base de uma fé ingênua, simples. O Cristianismo não foi o
produto de pesquisa e reflexão humana, mas de revelação e, em primeiro lugar,
portanto, exigia fé. Eles tentaram, até onde puderam, absorver e reproduzir o
ensino oral e escrito dos apóstolos. Eles assumiram os conceitos bíblicos de
Deus, de Cristo como Senhor, de sua morte e ressurreição, do Espírito Santo, de
fé, arrependimento, igreja, batismo, comunhão, ofícios, oração, vigília, jejum,
almas, vida ressurreta, imortalidade, etc. Contudo,
eles não articulavam, analisavam ou relacionavam uma com a outra.
A
ênfase desse período não estava no conhecimento teológico em si, mas na vida
piedosa, no cultivo das virtudes cristãs, na pureza etc. Somente a partir do 2º
século a teologia cristã buscou ampliar sua atuação, em virtude dos novos
desafios enfrentados pelos cristãos. O historiador Alderi Souza de Matos chama
a atenção para o fato de que, “à medida que se expandia e se tornava mais
conhecido, o cristianismo atraiu crescentemente a atenção das autoridades e da
sociedade pagã”.
O resultado foi uma crescente hostilidade à fé cristã, que tomava formas
variadas, incluindo “contestações sofisticadas vindas de intelectuais pagãos
como Luciano de Samosata, Galeno, Celso e Porfírio”. Este
fator aliado às perseguições movidas pelos imperadores romanos serviu como
catalisador de um novo tipo de reflexão cristã. Bavinck faz uma observação
extremamente interessante a respeito dos ataques movidos por autores pagãos
contra o cristianismo:
Todos os argumentos
posteriormente lançados contra o Cristianismo podiam ser encontrados nesses
escritores – argumentos, por exemplo, contra a autenticidade e verdade de
muitos livros da Bíblia (o Pentateuco, Daniel e os Evangelhos) e contra a
revelação e os milagres em geral; argumentos contra um grupo de dogmas, como a
encarnação, a satisfação, o perdão, a ressurreição e a punição eterna;
argumentos também contra normas de moralidade, tais como o ascetismo, o
desprezo pelo mundo e a falta de cultura; e, finalmente, acusações escandalosas
de adorar uma cabeça de bode e de cometer assassinato de crianças, adultério e
todos os tipos de imoralidade.
Foi
a partir daí que as Sagradas Escrituras foram, de fato, enxergadas como uma
mina, e o ouro dos dogmas e doutrinas passaram a ser extraídos através do
emprego da reflexão metódica e analítica. A fim de combater as alegações dos
escritores pagãos a respeito da doutrina da ressurreição, não bastava que os
Pais Apologistas citassem e repetissem textos das Sagradas Escrituras. Tertuliano
foi o primeiro teólogo a fazer uso do termo Trindade, mas ele não fez isso apenas por meio da citação de textos
das Escrituras. Ele teve de empregar raciocínio, fazer deduções e associações
para poder chegar à compreensão da Triunidade do Ser divino. A teologia cristã
teria sido abortada cedo se tivesse se limitado a procurar apenas textos-prova
para se defender dos ataques desferidos contra o cristianismo.
Conclusão
Acredito
estar evidente que dogmas e doutrinas não se estabelecem com a simples citação
de alguns versículos. Se fosse este o caso doutrinas centrais da fé cristã
nunca teriam vindo à existência como, por exemplo, a doutrina da Trindade.
Nenhuma passagem das Sagradas Escrituras afirma de maneira categórica que,
“cada uma das três pessoas é Deus, ainda que haja somente um Deus. Cada uma das
três pessoas tem personalidade distinta e cumpre um propósito específico na
consumação e aplicação da redenção”.
Associação entre diversas passagens tanto do Antigo quanto do Novo Testamento
teve de ser feita, princípios hermenêuticos tiveram de ser aplicados e
raciocínio lógico foi empregado – para citar apenas alguns passos –, para que
este precioso dogma cristão fosse estabelecido de forma oficial na cristandade.
Millard
J. Erickson, teólogo sistemático de tradição batista delineia alguns passos
constituintes do processo de produção teológica, quais sejam:
1-A
compilação dos dados bíblicos;
2-A
unificação dos dados bíblicos;
3-A
análise do sentido dos ensinamentos bíblicos;
4-O
exame dos tratamentos históricos;
5-A
consulta a outras perspectivas culturais;
6-A
identificação da essência da doutrina;
7-A
iluminação de fontes extrabíblicas;
8-Expressões
contemporâneas da doutrina;
9-A
formação de um tema hermenêutico central; e
10-A
estratificação dos tópicos.
Todos
os cristãos ortodoxos concordam com os passos apontados acima, devendo existir
alguma variação de natureza apenas semântica. Todos concordam que dogmas e
doutrinas não são feitos com apenas um versículo. Não obstante, a experiência
demonstra que quando se trata de uma doutrina com a qual não simpatizamos, logo
abandonamos os princípios acima e nos agarramos à exigência de algum
texto-prova. Reduzimos a Escritura de uma mina de ouro teológica a uma mera
enciclopédia.