1509725595914942

18 de mai. de 2016

A Bíblia Não é a Enciclopédia Britânica - Uma Breve Reflexão a Respeito do Método Teológico e o Estabelecimento de Doutrinas

Por Alan Rennê Alexandrino Lima

Introdução

Originalmente publicada entre os anos de 1768 e 1771, a Encyclopaedia Britannica é considerada a mais acadêmica de todas as enciclopédias já publicadas. Uma estudiosa chamada Gillian Thomas chegou a afirmar, numa obra sobre a décima primeira edição da enciclopédia, que a Britannica deve ser considerada como o ápice de todo o conhecimento humano[1], dado o seu caráter amplamente generalista, que procura discursar a respeito da maior gama de assuntos possível. É possível encontrar praticamente qualquer coisa que se procure, desde verbetes relacionados à geografia, biografia, biologia, medicina, literatura mundial, física, química, astronomia, filosofia, teologia etc.

Uma enciclopédia possui a função de ser uma obra de referência que possibilite a consulta a qualquer assunto de interesse humano. Como o sentido etimológico do termo indica, uma enciclopédia intenta disponibilizar conhecimento geral. Está curioso a respeito de algum assunto? É só consultar o verbete e, imediatamente, a curiosidade será sanada. Deseja adquirir uma visão geral a respeito da função das vacinas? Tem o interesse em aprender o básico sobre a história do judô? É só consultar a enciclopédia mais próxima.

Algo muito comum no meio da cristandade é o tratamento dispensado à Bíblia como se esta se tratasse de uma enciclopédia com verbetes disponíveis a respeito de todos os assuntos da fé cristã. Todo pastor ou professor de escola dominical já deparou com uma situação na qual alguém o aborda com perguntas do tipo: “Onde é que eu acho, na Bíblia, um versículo sobre a Trindade?”, “Por favor, você poderia me dar um texto que diga que Jesus é Deus-homem?”, “Em qual lugar do Novo Testamento afirma que não se pode dançar no culto?”, “Onde é que é possível encontrar um texto que afirme que o dia de descanso passou do sábado para o domingo?”, ou ainda a afirmação: “Mas não existe nenhum texto na Bíblia que diga que crianças devem ser batizadas!” Todas estas perguntas denotam que o interlocutor deseja um versículo/verbete que diga de forma sistemática tudo aquilo que ele necessita saber sobre determinado assunto. São questionamentos que evidenciam o desejo por algo já pronto, que não demande reflexão, raciocínio lógico, deduções, inferências e a construção de um entendimento baseado no todo da revelação bíblica.

Não obstante, é importante compreender que não é dessa maneira que as Sagradas Escrituras devem ser tratadas. A Bíblia não foi dada por Deus à Igreja para servir como uma espécie de obra de referência com verbetes disponíveis concernentes a todas as questões de fé e vida. A Bíblia não é uma obra semelhante a uma teologia dogmática. O teólogo reformado holandês Herman Bavinck (1854-1921) faz uma observação extremamente pertinente a este respeito. Ele faz uso de uma metáfora elucidativa:

A Sagrada Escritura não é dogmática. Ela contém todo o conhecimento de Deus de que precisamos, mas não na forma de formulações dogmáticas. A verdade foi depositada na Escritura como fruto da revelação e da inspiração, em uma linguagem que é a expressão imediata da vida e, portanto, sempre se mantém viçosa e original. Mas ela ainda não tinha se tornado objeto de reflexão e ainda não tinha atingido a consciência pensante do crente. Aqui e ali, por exemplo, na carta aos Romanos, pode haver um começo de desenvolvimento dogmático, mas não mais que um começo. O período da revelação tinha de ser encerrado antes que a reprodução dogmática pudesse começar. A Escritura é uma mina de ouro: é a igreja que extrai o ouro, põe sua estampa sobre ele e o converte em dinheiro circulante.[2]

É inegável, pela afirmação de Bavinck, que a Escritura fornece conhecimento. O que necessita ser compreendido é que tal conteúdo não se apresenta sistematizado, organizado em sistemas como ocorre em obras de teologia dogmática. Numa obra desta natureza, quando se deseja pesquisar a respeito da queda da humanidade no pecado, basta buscar no índice o lugar exato pela categoria hamartiologia e, pronto, tudo o que se necessita saber está disposição. A Bíblia não foi escrita dessa maneira. O conteúdo disponibilizado na Escritura necessita ser alvo de reflexão, inquirição, associação e processamento dogmático. O conhecido teólogo princetoniano, Charles Hodge, afirma que a teologia consiste de algo mais que o mero conhecimento de fatos registrados nas Escrituras. De acordo com ele, “a Bíblia contém as verdades que o teólogo precisa coligir, autenticar, organizar e demonstrar em sua relação natural umas com as outras”.[3]

O trabalho do teólogo é semelhante ao de um mineiro. Para extrair o ouro ele precisa adentrar aos recessos mais profundos da mina e manusear diversas ferramentas a fim de extrair o metal precioso. Há partes da mina que a composição das paredes é mais rochosa, o que demanda o uso de mais força e de ferramentas mais especializadas. De modo semelhante, o teólogo mergulha nas páginas da Bíblia e labuta de maneira séria e árdua, inclusive em oração, a fim de extrair das páginas do livro sagrado a preciosa doutrina evangélica. Há partes da Escritura que são mais complexas ou, como coloca a Confissão de Fé de Westminster: “Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos”.[4] Assim, em determinados trechos das Escrituras o teólogo encontrará mais dificuldade para extrair o sumo da revelação divina. Bavinck observa ainda que, “processar dogmaticamente o conteúdo das Escrituras, porém, não é apenas o trabalho de um teólogo individual, ou de uma igreja ou escola em particular, mas de toda a igreja através dos séculos, de toda a nova humanidade regenerada por Cristo”.[5]

Precisamos compreender, portanto, o que torna necessário este modo de fazer teologia. Após discutir brevemente tal necessidade, é preciso abordar um dos modos legítimos pelo qual o ouro da Escritura é extraído, estampado e colocado em moeda circulante.

A Distinção Criador/Criatura

Visando a instrução e a edificação da Igreja, o conteúdo registrado nas Sagradas Escrituras necessita ser devidamente organizado e sistematizado. Um dos benefícios existentes na sistematização do conteúdo escriturístico é a possibilidade de se relacionar num todo coerente as verdades que nos são dadas por Deus, o autor das Escrituras. O Dr. Heber Campos assim se expressa em relação à necessidade da extração e organização dos dados bíblicos:

Pela sistematização aprendemos a associar ideias importantes em grupos, para que o material fique bem organizado e facilite para a nossa mente finita o que é simples para a mente infinita. Se não houver a sistematização da verdade, as estruturas do nosso pensamento rapidamente ficam complicadas. Por isso, precisamos que as ideias sejam concatenadas de maneira a facilitar a nossa apreensão da verdade.[6]

Nós, seres humanos, em razão da nossa finitude, temos uma dupla necessidade que não existe em Deus. Primeiro, por ser infinito em seu ser e perfeições, Deus não necessita de uma organização sistêmica. Sua mente em si mesma tem o conhecimento de todas as coisas sem que estas precisem ser necessariamente organizadas como nós precisamos, devido à nossa finitude de mente. Em segundo lugar, em razão da infinitude do seu conhecimento, Deus tem à sua disposição todo o conhecimento necessário de forma simultânea e instantânea. O teólogo dogmático Louis Berkhof afirma que Deus “vê as coisas de uma vez em sua totalidade, e não fragmentadas uma após à outra”.[7] Esta é outra forma de afirmar que o conhecimento de Deus é perfeito. Por ser perfeito em conhecimento, Deus não está sujeito ao aprendizado e sucessivo acúmulo de informações. Já o ser humano é sempre fragmentado e parcial em seu conhecimento. A relação entre o conhecimento que Deus tem em si mesmo e o conhecimento disponibilizado ao ser humano é sumariado por Bavinck: “Pois o conhecimento que Deus tem de si mesmo é absoluto, simples, infinito e, em sua plenitude, é incomunicável à consciência finita”.[8] Dessa forma, é imprescindível ao ser humano o emprego de ferramentas que lhe proporcionem o crescimento em termos de conhecimento teológico. A sistematização do conteúdo revelado nas Escrituras atende a esta necessidade. Como expressou Robert Burridge, a extração, organização e sistematização de ideias é algo próprio da humanidade finita:

O Criador tem uma mente unificada absoluta que nós tentamos entender através de sua revelação. Como Criador, ele nos designou para sermos capazes de conhecer exatamente o que ele quer que conheçamos [...] Ao grau em que usamos consistentemente os métodos de Deus, nosso estudo produzirá ideias consistentes com a verdade como ela existe absolutamente na mente de Deus.[9]

É óbvio, então, que embora podendo conhecer aquilo que Deus resolve revelar em sua Palavra, nosso conhecimento tanto do Ser divino quanto das suas obras é analógico, ou seja, o conhecimento de que dispomos “concorda com, corresponde a, mas não é completamente idêntico com o que está na mente perfeita de Deus. Existe uma ‘analogia’ entre o que Deus fala às suas criaturas e o que Deus conhece infinita e perfeitamente”.[10] Isso pode ser visto, por exemplo, em Deuteronômio 18.21-22: “Se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o SENHOR não falou? Sabe que, quando esse profeta falar em nome do SENHOR, e a palavra dele se não cumprir, nem suceder, como profetizou, esta é a palavra que o SENHOR não disse; com soberba, a falou o tal profeta; não tenhas temor dele”. O princípio que pode ser observado nesta passagem é que “é exigido dos profetas que a sua mensagem seja consistente com tudo aquilo que Deus revela e concorde com tudo o que Deus faz ou permite”.[11] R. Scott Clark observa que a conhecida passagem de Deuteronômio 29.29 também fundamenta o entendimento do conhecimento analógico que o ser humano tem de Deus: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”. Clark afirma que esta passagem, bem como outras, fundamenta a distinção entre o conhecimento de Deus em si mesmo (en si) e o conhecimento revelado a nós (erga nos).[12] Assim, dada a nossa finitude e uma vez que não dispomos de conhecimento perfeito, completo, instantâneo e simultâneo, como ocorre com Deus, é essencial a existência do labor teológico para a formação de dogmas e doutrinas.[13]

Compreender esta verdade nos conduz ao próximo tópico.

A Progressividade da Revelação

Deus revela a si mesmo, seu ser e obras, ao ser humano. O que deve ser entendido a este respeito é que a revelação não foi dada pelo Senhor de uma só vez. A plenitude da verdade divina não foi entregue à humanidade logo no começo da história. Deus gradualmente revelou as verdades em espaços de longo intervalo, de acordo com as necessidades dos homens, numa medida que era suficiente para a compreensão e absorção por parte dos recipientes da revelação.

Portanto, a revelação divina é um processo que começou no Jardim do Éden e culminou na revelação que Jesus Cristo deu enquanto esteve entre nós e na revelação que ele deu posteriormente aos apóstolos, como Paulo, por exemplo. Nesse processo histórico houve um progresso no conteúdo e na quantidade de revelação. Gradualmente Deus foi mostrando aos homens a natureza do seu caráter através de preceitos no decorrer da história. Cada aspecto novo da revelação era baseado numa revelação anterior de forma que a Escritura é um conjunto harmônico de verdades reveladas. Por exemplo, quando João introduziu o “Cordeiro de Deus” aos seus discípulos, ele o fez baseado numa revelação anterior do cordeiro que era sacrificado na páscoa, de forma que a mensagem posterior se tornou inteligível por causa da anterior. Quando Jesus apresentou a si mesmo como o Eu Sou já havia uma noção anterior da divindade no AT como sendo o “Eu Sou”. Uma revelação está fundamentada numa anterior, mas com seu caráter progressivo, acrescentando novos vislumbres, detalhes e especificidades da verdade em relação à anterior.

Geerhardus Vos explica a ideia de progressividade da revelação da seguinte forma: “Ela não foi completada num único ato exaustivo, mas se desdobrou numa longa série de atos sucessivos”.[14] É interessante que Clark H. Pinnock, um dos principais adeptos do Teísmo Aberto, numa obra publicada em 1971, fez a seguinte afirmação sobre a natureza da revelação de Deus registrada na Bíblia:

Nós não encontramos revelação especial na forma de teologia proposicional, mas de um modo histórico, pois a revelação se desdobra em sucessivos fascículos, numa série de situações revelacionais na história. Toda revelação é “encarnacional”, imersa na história e na linguagem humanas. É um crescimento orgânico da muda à planta plenamente madura, a partir dos primórdios do livro de Gênesis à glória da Nova Aliança de nosso Senhor. A revelação se interpõe através de numerosas modalidades e avança continuamente até que a edição culminante e a coroação final sejam publicadas em Jesus Cristo.[15]

Vos destaca que a revelação não poderia ser dada de outra forma que não a progressiva, uma vez que ela está ligada aos atos redentivos de Deus: “De forma abstrata, ela poderia ter sido concebida de outra maneira. Mas como matéria de fato, não poderia ser, porque a revelação não se firma por si só, mas está (quanto à Revelação Especial) inseparavelmente ligada a outra atividade de Deus, que chamamos de Redenção”.[16] E a própria redenção não poderia acontecer de outra forma senão através de sucessão história, em diversos desdobramentos históricos. Dessa forma, a própria “revelação é a interpretação da redenção; ela deve, portanto, se desdobrar em etapas como ocorre com a redenção”.[17] Benjamin Warfield faz a mesma observação a respeito da progressividade da revelação, mas assinala que a revelação não pode ser confundida com a redenção em si. Antes, ela deve ser vista como parte dos atos redentores de Deus:

A revelação é, naturalmente, geralmente feita pela instrumentalidade dos atos e a série dos grandes atos redentores de Deus pelos quais ele salva o mundo constitui a revelação por excelência da graça de Deus – na medida em que estes atos de redenção são abertos à observação e são percebidos em sua importância. Mas a revelação, afinal, é o correlato do entendimento e tem como finalidade imediata apenas a produção de conhecimento, embora não o conhecimento voltado para si mesmo, mas para a salvação [...] A revelação, assim, aparece, no entanto, não como mero reflexo dos atos redentores de Deus na mente dos homens, mas como um fator na obra redentora de Deus, um componente da série de seus atos redentores, sem o qual esta série seria incompleta e inoperante quanto ao seu fim principal [...] A revelação é, em poucas palavras, por si só um ato redentor de Deus e de modo nenhum o menos importante na série de atos de redenção de Deus.[18]

Isto pode ser claramente percebido em todos os estágios da revelação, por exemplo, no Antigo Testamento. A revelação entregue, primeiramente, a indivíduos e, posteriormente, a famílias e à nação de Israel sempre foi um meio utilizado por Deus para se fazer conhecido e dar a conhecer como os recipientes dessa revelação poderiam desfrutar de um relacionamento pactual amoroso com ele. Pensemos na revelação de Deus pela qual ele sacrifica animais e com a pele destes cobre a vergonhosa nudez de nossos primeiros pais, Adão e Eva (Gênesis 3.21), passando pela revelação de que, para que Isaque pudesse viver um cordeiro teria de ser oferecido em seu lugar (Gênesis 22.1-13), pela declaração de Levítico 16 de que os dois bodes levariam sobre si a iniquidade de todo o povo, até o dia em que o profeta João Batista declarou: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1.29). Em todas essas ocasiões a revelação em si mesma serviu como um ato redentor de Deus, na medida em que ela produziu conhecimento para a salvação, para que o povo pudesse desfrutar de um relacionamento salvífico com Deus.

Uma passagem clássica que mostra a progressividade da revelação é Hebreus 1.1-2: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo”. A expressão “muitas vezes e de muitas maneiras” aponta para a ideia de uma sucessão ou cumulação de informação redentiva ou, em outras palavras, para a ideia de progressividade. Em sua exposição de Hebreus, o puritano John Owen também entendeu que a expressão “muitas vezes e de muitas maneiras” encerrava em si a ideia de progressividade da revelação:

O que é pretendido por essa expressão é a descoberta gradual da mente e da vontade de Deus pela adição de uma coisa após outra, diversos períodos, à medida que a igreja podia comportar a luz deles, e à medida que ela estava servindo ao seu principal desígnio de reservar toda a preeminência ao Messias. A maneira como tudo isso serve de argumento ao propósito do apóstolo aparecerá em breve. Deve-se tomar essa expressão de forma absoluta, para denotar o progresso inteiro da revelação divina desde o início do mundo.[19]

A ideia por trás de toda esta formulação é a de que, à medida que a história humana avançava, Deus adicionava mais detalhes, maiores informações e maior luz a uma verdade já revelada anteriormente.

A relevância da progressividade da revelação para o método teológico está em que, para que um determinado dogma seja formado ou uma determinada doutrina seja estabelecida como matéria de fé na igreja cristã, não basta a apresentação de um versículo. A título de exemplificação, o estabelecimento da doutrina da Trindade jamais poderá repousar na apresentação de um texto ou um simples versículo que diga, de maneira expressa, que existe uma subsistência de três pessoas no Ser divino, como é frequentemente exigido por aqueles que defendem algum tipo de teologia unicista. O ponto a ser estabelecido é que a doutrina da Trindade pode ser claramente observada à medida que a revelação bíblica avança, indo de um estágio com menos luz para outro com mais luz. Em Gênesis 1 tanto o nome  אֱלֹהִ֑ים (Elohim) – um substantivo masculino com terminação plural – como o uso de verbo e pronome no plural (“façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”) nos permitem concluir tão somente pela existência de uma pluralidade na divindade. Não é possível chegar ao entendimento de que Gênesis 1 ensina a doutrina da Trindade porque não há luz suficiente para tal. Somente à medida que a revelação bíblica progride e culmina com a revelação do Novo Testamento, é que podemos chegar a esta compreensão. Vê-se, pois, que a Bíblia não é enciclopédia na qual consta um verbete intitulado “Trindade”, que reúne todas as informações necessárias para o entendimento desse dogma.

A Crescente Necessidade no Cristianismo Primitivo

Outro fator que deve ser observado quanto à necessidade do labor teológico é a progressiva complexidade que caracterizou a maneira como a igreja cristã passou a fazer teologia ao longo da sua caminhada. Quando comparados o período dos Pais Apostólicos e o dos Pais Apologetas já é possível perceber uma nítida diferença na maneira como os dogmas e doutrinas da igreja eram formados. No primeiro período a dogmática ainda se encontrava em sua forma embrionária ou mais primitiva. Estritamente falando, de acordo com Bavinck, no período dos pais apostólicos ainda não havia algo como um dogma ou uma dogmática. Não havia a preocupação com desenvolvimentos dogmáticos a respeito, por exemplo, das duas naturezas de Cristo ou da união hipostática. A grande preocupação característica desse período era de cunho moral. Tanto é assim que os primeiros documentos cristãos concentram grande parte da sua atenção em questões éticas e morais. Um exemplo claro é o Didaquê, escrito entre 70 e 150 d.C. Esta obra é dividida em duas partes, sendo que a primeira (capítulos 1-6) apresenta um conjunto de instruções morais intitulado “Os Dois Caminhos”. No capítulo 1 encontramos o seguinte, a título de amostragem:

Existem dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte. Há uma grande diferença entre os dois. Este é o caminho da vida: primeiro, ame a Deus que o criou; segundo, ame a seu próximo como a si mesmo. Não faça ao outro aquilo que você não quer que façam a você. Este é o ensinamento derivado dessas palavras: bendiga aqueles que o amaldiçoam, reze por seus inimigos e jejue por aqueles que o perseguem. Ora, se você ama aqueles que o amam, que graça você merece? Os pagãos não fazem o mesmo? Quanto a você, ame aqueles que o odeiam e assim você não terá nenhum inimigo (vv. 1-3).[20]

Já a segunda parte do Didaquê consiste de orientações de natureza litúrgica (capítulos 7-10), sobre a vida em comunidade e orientações quanto ao tratamento daqueles que se apresentavam como profetas (capítulos 11-15) e um capítulo de natureza escatológica (16). O que fica claro a partir da citação acima é que, de fato, no período dos chamados Pais Apostólicos não havia preocupação com a reflexão teológica de natureza mais complexa.[21] Bavinck faz um excelente resumo dos escritos conhecidos como Pais Apostólicos:

Eles ainda agem completamente sobre a base de uma fé ingênua, simples. O Cristianismo não foi o produto de pesquisa e reflexão humana, mas de revelação e, em primeiro lugar, portanto, exigia fé. Eles tentaram, até onde puderam, absorver e reproduzir o ensino oral e escrito dos apóstolos. Eles assumiram os conceitos bíblicos de Deus, de Cristo como Senhor, de sua morte e ressurreição, do Espírito Santo, de fé, arrependimento, igreja, batismo, comunhão, ofícios, oração, vigília, jejum, almas, vida ressurreta, imortalidade, etc. Contudo, eles não articulavam, analisavam ou relacionavam uma com a outra.[22]

A ênfase desse período não estava no conhecimento teológico em si, mas na vida piedosa, no cultivo das virtudes cristãs, na pureza etc. Somente a partir do 2º século a teologia cristã buscou ampliar sua atuação, em virtude dos novos desafios enfrentados pelos cristãos. O historiador Alderi Souza de Matos chama a atenção para o fato de que, “à medida que se expandia e se tornava mais conhecido, o cristianismo atraiu crescentemente a atenção das autoridades e da sociedade pagã”.[23] O resultado foi uma crescente hostilidade à fé cristã, que tomava formas variadas, incluindo “contestações sofisticadas vindas de intelectuais pagãos como Luciano de Samosata, Galeno, Celso e Porfírio”.[24] Este fator aliado às perseguições movidas pelos imperadores romanos serviu como catalisador de um novo tipo de reflexão cristã. Bavinck faz uma observação extremamente interessante a respeito dos ataques movidos por autores pagãos contra o cristianismo:

Todos os argumentos posteriormente lançados contra o Cristianismo podiam ser encontrados nesses escritores – argumentos, por exemplo, contra a autenticidade e verdade de muitos livros da Bíblia (o Pentateuco, Daniel e os Evangelhos) e contra a revelação e os milagres em geral; argumentos contra um grupo de dogmas, como a encarnação, a satisfação, o perdão, a ressurreição e a punição eterna; argumentos também contra normas de moralidade, tais como o ascetismo, o desprezo pelo mundo e a falta de cultura; e, finalmente, acusações escandalosas de adorar uma cabeça de bode e de cometer assassinato de crianças, adultério e todos os tipos de imoralidade.[25]

Foi a partir daí que as Sagradas Escrituras foram, de fato, enxergadas como uma mina, e o ouro dos dogmas e doutrinas passaram a ser extraídos através do emprego da reflexão metódica e analítica. A fim de combater as alegações dos escritores pagãos a respeito da doutrina da ressurreição, não bastava que os Pais Apologistas citassem e repetissem textos das Sagradas Escrituras. Tertuliano foi o primeiro teólogo a fazer uso do termo Trindade, mas ele não fez isso apenas por meio da citação de textos das Escrituras. Ele teve de empregar raciocínio, fazer deduções e associações para poder chegar à compreensão da Triunidade do Ser divino. A teologia cristã teria sido abortada cedo se tivesse se limitado a procurar apenas textos-prova para se defender dos ataques desferidos contra o cristianismo.

Conclusão

Acredito estar evidente que dogmas e doutrinas não se estabelecem com a simples citação de alguns versículos. Se fosse este o caso doutrinas centrais da fé cristã nunca teriam vindo à existência como, por exemplo, a doutrina da Trindade. Nenhuma passagem das Sagradas Escrituras afirma de maneira categórica que, “cada uma das três pessoas é Deus, ainda que haja somente um Deus. Cada uma das três pessoas tem personalidade distinta e cumpre um propósito específico na consumação e aplicação da redenção”.[26] Associação entre diversas passagens tanto do Antigo quanto do Novo Testamento teve de ser feita, princípios hermenêuticos tiveram de ser aplicados e raciocínio lógico foi empregado – para citar apenas alguns passos –, para que este precioso dogma cristão fosse estabelecido de forma oficial na cristandade.

Millard J. Erickson, teólogo sistemático de tradição batista delineia alguns passos constituintes do processo de produção teológica, quais sejam[27]:

1-A compilação dos dados bíblicos;
2-A unificação dos dados bíblicos;
3-A análise do sentido dos ensinamentos bíblicos;
4-O exame dos tratamentos históricos;
5-A consulta a outras perspectivas culturais;
6-A identificação da essência da doutrina;
7-A iluminação de fontes extrabíblicas;
8-Expressões contemporâneas da doutrina;
9-A formação de um tema hermenêutico central; e
10-A estratificação dos tópicos.

Todos os cristãos ortodoxos concordam com os passos apontados acima, devendo existir alguma variação de natureza apenas semântica. Todos concordam que dogmas e doutrinas não são feitos com apenas um versículo. Não obstante, a experiência demonstra que quando se trata de uma doutrina com a qual não simpatizamos, logo abandonamos os princípios acima e nos agarramos à exigência de algum texto-prova. Reduzimos a Escritura de uma mina de ouro teológica a uma mera enciclopédia.


[1] Gillian Thomas. A Position to Command Respect: Women and the Eleventh Britannica. Lanham, MD: Scarecrow Press, 1992. p. 1.
[2] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 116. Ênfase acrescentada.
[3] Charles Hodge. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 1.
[4] A Confissão de Fé de Westminster. 1.7. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. p. 22.
[5] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 117.
[6] Heber Carlos de Campos. Teologia da Revelação. São Paulo: Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, 2010. p. 29. (Apostila de curso).
[7] Louis Berkhof. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 65.
[8] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 214.
[9] Bob Burridge. Knowing the Truth. <http://www.genevaninstitute.org/syllabus/unit-one-prolegomena/prolegomina-knowing-the-truth/>.
[10] Ibid.
[11] Ibid.
[12] R. Scott Clark. Recovering the Reformed Confession: Our Theology, Piety, and Practice. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing, 2012. p. 124.
[13] É importante atentar para a distinção existente entre “dogmas” e “doutrinas”. Louis Berkhof, por exemplo, faz a seguinte afirmação: “Embora a palavra ‘dogma’ algumas vezes seja usada na religião e na teologia com sentido amplo, sendo praticamente sinônimo de ‘doutrina’, geralmente tem um sentido mais restrito. Doutrina é a expressão direta, às vezes ingênua, de uma verdade religiosa. Não é necessariamente formulada com precisão científica, e mesmo quando o é, pode ser meramente a formulação de uma só pessoa. Um dogma religioso, por sua vez, é uma verdade religiosa baseada sobre autoridade, oficialmente formulada por qualquer assembleia eclesiástica”. Cf. Louis Berkhof. A História das Doutrinas Cristãs. São Paulo: PES, 1992. pp. 17-18.

[14] Geerhardus Vos. Biblical Theology: Old and New Testaments. Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing, 1948. p. 5.
[15] Clark H. Pinnock. Biblical Revelation: The Foundation of Christian Theology. Chicago, IL: Moody Press, 1971. pp. 29-30.
[16] Geerhardus Vos. Biblical Theology: Old and New Testaments. p. 5.
[17] Ibid. p. 6. É preciso destacar uma espécie de disclaimer feito por Vos sobre a maneira como revelação e redenção se relacionam: “Ainda assim, é óbvio também que os dois processos não são inteiramente coextensivos, pois a revelação chega a um fim num ponto em que a redenção ainda continua”. Cf. Ibid.
[18] Benjamin Warfield. A Inspiração e a Autoridade da Bíblia: A Clássica Doutrina da Palavra de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p.65.

[19] John Owen. The Works of John Owen: Exposition of Hebrews Chapters 1:1-3:6. Vol. 19. Edinburgh, UK: The Banner of Truth Trust, 1991. pp. 17-18.

[20] Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin (Orgs.). Didaquê: O Catecismo dos Primeiros Cristãos para as Comunidades de Hoje. São Paulo: Paulus, 1997. pp. 4-5.

[21] O mesmo padrão pode ser observado em outros Pais Apostólicos, como 1 e 2 Clemente, as Cartas de Inácio de Antioquia, o Martírio de Policarpo e as Explanações dos Ditos do Senhor.

[22] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 121. Ênfase acrescentada.

[23] Alderi Souza de Matos. Fundamentos da Teologia Histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. p. 32.

[24] Ibid.

[25] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 122.

[26] Ryan McGraw. By Good and Necessary Consequence. Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books, 2012. p. 46.

[27] Millard J. Erickson. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015. pp. 70-82.

Um comentário:

izilda disse...

Excelente artigo!!! Parabéns a quem o idealizou.