Seguimos com mais uma entrevista. Dessa vez quem
respondeu as nossas perguntas foi o pastor e teólogo Franklin Ferreira. Ele é
autor de um recente livro sobre política, intitulado Contra Idolatria do Estado (que nós resenhamos, vejam aqui). Em sua
página no Facebook o Franklin Ferreira continua abordando o assunto, comentando
os fatos recentes de nossa conjuntura sociopolítica, exercendo o que comumente
é chamado de “teologia-pública”. Devido a tudo isso, o tema não
poderia ser outro. Nessa entrevista concedida com exclusividade para o nosso
blog, Franklin fala sobre Calvino e escritos políticos de outros reformadores, bancada
evangélica, igreja confessante e muito mais.
Leia, reflita, debata e compartilhe!
***
Em
seu mais novo livro, você trabalha o conceito da idolatria estatal. Sobre isso,
e pensando na conjuntura geopolítica nacional, estamos distantes, estamos nos
aproximando ou já chegamos à prática desta idolatria? E se já estamos, como é
que podemos deixá-la de lado?
Em
linhas gerais, os brasileiros são, majoritariamente, conservadores no campo dos
valores, mas este conservadorismo moral está muitas vezes conectado ao
autoritarismo profundamente arraigado em nossa cultura, autoritarismo que
degenera em idolatria estatal. Tal anseio é retratado com precisão por Bruno
Garschagen, em Pare de acreditar no
governo. Ainda que hoje cresça no país uma aversão pública a políticas e
práticas conectadas com a esquerda/extrema-esquerda, ainda falta muito para a
moralmente conservadora “direita” brasileira ser algo parecido com o
liberalismo político no sentido estrito do termo. E talvez o grande desafio
daqueles que estão se conectando com o ideário liberal será falar uma linguagem
que toda a população brasileira – de norte a sul – entenda e se identifique.
Uma
área importante que cristãos e aqueles de orientação liberal podem ajudar é fomentar
o surgimento de sociedades voluntárias, mostrando que o Estado, com sua
promessa idolátrica de “segurança do berço ao túmulo”, é um adversário da
sociedade civil, na medida em que não entrega o que promete.
Deixe-me
dar um exemplo da importância destas comunidades voluntárias: “As associações
afiliadas a 112 igrejas protestantes em Manhattan e no Bronx [nos Estados
Unidos] na virada do século XX eram responsáveis por 48 escolas industriais, 45
bibliotecas ou salas de leitura, 44 escolas de costura, 40 jardins de infância,
29 bancos de depósitos e associações de empréstimos, 21 agências de empregos,
20 ginásios e piscinas de natação, 8 dispensários, 7 berçários em tempo
integral e 4 pensões” (citado em Niall Ferguson, A grande degeneração). Podemos imaginar o impacto de tais
associações voluntárias no Brasil, agindo para minorar o sofrimento dos
atingidos pela violência, auxiliando os mais pobres e órfãos, promovendo
educação de qualidade? Mas também diminuindo o poder do Estado, com sua
voracidade de impostos e serviços escandalosamente ineficientes?
Esta
noção de associações voluntárias teve como defensor Abraham Kuyper, que
enfatizou e honrou aquilo que ele
chamou de “estruturas intermediárias” (intermediate
bodies ou mediating structures)
na sociedade, localizadas entre o Estado e o
indivíduo, tais como a família,
as igrejas, escolas e universidades, clubes, imprensa, comércio e indústria, as
artes, cada uma das quais seria soberana em sua própria esfera.
Esta
ênfase em sociedades voluntárias, me parece, é uma das melhores formas de
equilibrar a proteção das liberdades individuais e a busca do “bem comum” na
sociedade.
E sobre
o papel dos cristãos na transformação da sociedade, é oportuno lembrar das
palavras de Bento XVI: “São os santos que mudam o mundo para melhor, que o
transformam de forma duradoura, infundindo as energias que unicamente o amor
inspirado pelo Evangelho pode suscitar. Os santos são os grandes benfeitores da
humanidade!” (Audiência de 15 de setembro de 2010: Clara de Assis)
Em
Calvino, existe uma dubiedade acerca da rebelião a um governo que é mau. Nas Institutas ele afirma que um governo
ilegítimo deve ser derrubado apenas por forças externas. Tal posicionamento não
dá margem para uma apatia política frente às injustiças de um mau governo?
Quais os limites da obediência e qual o modus
operandi da resistência política encabeçada por cristãos? Um passo além da
manifestação pacífica seria legítimo para um cristão?
Os
escritos de João Calvino foram muito importantes para a fé cristã, sob muitos
aspectos. Mas, me parece, suas contribuições políticas foram incipientes, e não
exaustivas. Elas foram ampliadas e complementadas por uma série de obras
importantes no campo da teoria política, escritas por vários de seus colegas
reformadores, quase na mesma época: De Regno Christi [O reino de Cristo] (1551), de Martin Bucer; A Short Treatise of Political Power [Um
breve tratado do poder político] (1556), de John Ponet; How Superior Powers Ought to Be Obeyed of Their Subjects; and Wherein
They May Lawfully by God ’s Word Be Disobeyed and Resisted [Como poderes
superiores devem ser obedecidos por seus súditos; e em que ponto eles podem
legitimamente, segundo a Palavra de Deus, ser desobedecidos e resistidos]
(1558), de Christopher Goodman; Franco-Gallia,Or,
Na Account of the Ancient Free State of France, and Most Other Parts of Europe,
Before the Loss of their Liberties [Francogália ou Um relato do antigo
Estado livre da França e a maioria das outras partes da Europa, antes da perda
de sua liberdade] (1573), de Francois Hotman; De Jure Magisterium [Do direito dos magistrados] (1574), de
Theodore Beza; De Jure Regni Apud Scotos
[Os poderes da Coroa da Escócia] (1579), de George Buchanan; e o influente
tratado anônimo Vindiciae Contra Tyrannos
[Defesas (da liberdade) contra tiranos] (1579). E no período pós-reforma foram
escritas duas obras muito influentes: Política
(1603), de Johannes Althusius, que tem “a distinção de ser uma das
contribuições centrais para o pensamento político ocidental” (Frederick
Carney), e a influente Lex, Rex [A
lei é o rei] (1644), de Samuel Rutherford.
Rutherford
afirmou em seu livro Lex, Rex que a premissa básica do governo civil, e, portanto,
da lei tem de ser a Lei de Deus, conforme revelada nas Escrituras. Nenhum
governante está acima da lei de Deus. Ele também elaborou uma noção de
resistência ao Estado, em que quando este faça mau uso do poder que lhe foi
delegado pode-se apelar à desobediência civil – um mecanismo que deve ser
exercido dentro dos limites cabíveis, a que tem direito todo cidadão, e de
forma específica todo cristão, quando subjugado por um Estado totalitário que
interfere na igreja, na educação, na economia e nas liberdades individuais. Para
tanto, Rutherford idealizou em sua obra um sistema de três passos para a
desobediência civil: petição, mudança e resistência armada. Tais noções foram extremamente
importantes na Guerra Civil Inglesa (1642–1651) e na Revolução Americana (1775–1783).
Um ponto provocador a se destacar é que na tradição reformada a causa da liberdade política e da liberdade de culto não só algumas vezes se confundem, mas, muitas vezes, acabam por ser indissociáveis.
Um ponto provocador a se destacar é que na tradição reformada a causa da liberdade política e da liberdade de culto não só algumas vezes se confundem, mas, muitas vezes, acabam por ser indissociáveis.
Ainda
sobre sua obra recente, você argumenta que há uma necessidade de uma preparação
intelectual e acadêmica para aqueles que vão ocupar altos cargos no governo,
inclusive assumindo ministérios. Quais são os prejuízos de se ter pessoas
despreparadas em cargos tão importantes no país? E, como analisa o fato de
muitos evangélicos entrarem na política com o pretexto de ajudar e proteger a
igreja, mas sem possuir nenhuma capacitação e nem treinamento acadêmico?
Os prejuízos de termos políticos cristãos despreparados
são imensos, a começar pela confusão das esferas do culto e da política. Por
não dominarem a linguagem da esfera pública, os políticos cristãos serão
tentados a usar e abusar dos chavões e clichês evangélicos para angariar votos
entre estes. Ou agirão para favorecer seu eleitorado, mudando leis de
zoneamento (para que igrejas sejam abertas em bairros residenciais),
conseguindo doações de terrenos ou material de construção ou até mesmo
concessão de rádios ou canais de TV, etc.
Positivamente, os políticos cristãos deveriam saber
utilizar as várias disciplinas acadêmicas para desenvolver uma cosmovisão
cristã que permitisse, de um lado, identificar as premissas das posições
filosóficas e religiosas que mais influenciam a sociedade e, de outro, oferecer
respostas respeitáveis e satisfatórias às mesmas, a partir da fé cristã.
Se o político cristão não se sentir capaz para tal,
deveria se cercar de boa assessoria parlamentar, de bons conselheiros que
dominem as várias disciplinas que ele precisa conhecer minimamente (teologia,
filosofia, direito, história e sociologia), além de pertencer formalmente a uma
igreja evangélica, prestando contas à mesma e se submetendo à sua disciplina.
Qual
é sua análise sobre termos uma bancada evangélica? Devemos ter uma bancada que
proteja os crentes e lute por eles no governo? Isso seria legítimo de acordo
com uma teologia política nas Escrituras?
Ainda que desprezada por cristãos esquerdistas,
permanece o fato de que a chamada “bancada evangélica” representa a diversidade
presente no imenso segmento evangélico no país, cerca de 22,2% da população
brasileira – sendo 70% destes pentecostais ou neopentecostais (segundo os dados
do IBGE em 2010). Enquanto as lideranças cristãs conectadas com a esquerda são
minoritárias e conectadas a igrejas históricas com forte influência da teologia
liberal europeia, a “bancada evangélica” representa igrejas pentecostais ou
neopentecostais, que são o segmento majoritário da igreja evangélica
brasileira, e que são fortemente conservadoras em fé e moral. E enquanto os cristãos
esquerdistas pertencem às classes média-alta/alta, os membros da “bancada
evangélica” são oriundos ou representam as classes baixa/média-baixa. E as
bandeiras políticas deste segmento refletem exatamente o universo que os
elegeu: críticas ao direito ao aborto, eutanásia e casamento entre pessoas do
mesmo sexo, além de luta pela redução da maioridade penal e diminuição da
violência são parte de seu discurso – e não dá para ser diferente, já que, para
horror dos formadores de opinião esquerdistas, esta bancada foi eleita justamente
para representar os anseios de seus eleitores.
Na verdade, cristãos esquerdistas não se conformam em
não ser a voz hegemônica da igreja evangélica brasileira – na verdade, são mero
eco das bandeiras progressistas defendidas pelos partidos de
esquerda/extrema-esquerda no Brasil, cujos seguidores, durante décadas,
monopolizaram o debate político.
Um tema de debate refere-se ao suposto desrespeito
desta bancada à laicidade do Estado brasileiro. É preciso lembrar que há dois
modelos de laicidade, o anglo-saxão do tipo liberal e o francês, de postura antirreligiosa.
No Brasil os esquerdistas seguem uma interpretação rígida da laicité francesa, de exclusão da fé
cristã da esfera pública. Mas me parece que o modelo anglo-saxão de laicidade é
o melhor, na medida em que reconhece a pluralidade da sociedade e é aberto ao
diálogo e confronto de ideias.
Mas, como pontua Jürgen Habermas, os políticos evangélicos precisam aprender a se esforçar
por traduzir seus valores na “linguagem universal” do debate democrático: “A
neutralidade, quanto às concepções de mundo, (...) é incompatível com a generalização
política de uma visão de mundo secularizada. Cidadãos secularizados, enquanto
se apresentarem nos seus papéis de cidadãos, não devem negar, fundamentalmente,
um potencial de verdade a visões de mundo religiosas nem colocar em questão o
direito dos concidadãos crentes de contribuir, por meio de uma linguagem
religiosa, para com discussões públicas. Uma cultura politicamente liberal pode
esperar até mesmo dos seus cidadãos secularizados que tomem parte dos esforços
em traduzir contribuições relevantes da linguagem religiosa para uma linguagem
que seja publicamente acessível” (Jürgen Habermas & Joseph Ratzinger, Dialética da secularização: sobre razão e
religião). Me parece que somente tal esforço nos protegerá do relativismo
radical e do totalitarismo ideológico.
Você cita Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer em seu livro, e deles extrai argumentos que fortalecem a sua visão política. Alguns cristãos reformados têm receio de ler ou citar estes teólogos. Mas, afinal, o que a tradição reformada pode aprender com eles?
Você cita Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer em seu livro, e deles extrai argumentos que fortalecem a sua visão política. Alguns cristãos reformados têm receio de ler ou citar estes teólogos. Mas, afinal, o que a tradição reformada pode aprender com eles?
Ainda que eu não concorde com estes dois teólogos
cristãos em áreas específicas (Escritura, criação e eleição), entendo ser
necessário reconhecer que ambos estiveram na linha de frente daqueles que se
defrontaram com o mal político gestado exclusivamente no século 20, o
totalitarismo. Podemos, portanto, encontrar nos escritos e na vida de ambos direção
para sabermos nos portar diante do “Estado total”.
Numa situação limite, como a vivida pela Igreja
Confessante na Alemanha, não importava uma aparente unidade da igreja, mas sim o
cerne da fé evangélica. Esta reconhece a Deus como o único rei, soberano e
senhor de todas as esferas da criação. Qualquer ser humano ou partido que tente
exigir culto no lugar do Criador deve ser resistido e confrontado. Por
isso os representantes das igrejas luterana, reformada e unida confessaram no
sínodo de Barmen: “Rejeitamos a falsa
doutrina segundo a qual a Igreja teria, além e ao lado da Palavra única de
Deus, outras fontes de testemunho, isto é, outros acontecimentos e outros
poderes, outras personalidades e outras verdades que corroborariam a revelação
divina”.
Muitos dos teólogos que aderiram ao nazismo seguiam a teologia liberal, isto é, negavam a inspiração das Escrituras, o nascimento virginal, morte vicária e ressurreição corporal de Cristo, além de sua segunda vinda – como vários dos teólogos esquerdistas da atualidade. E que, naquele momento, como agora, aceitaram a noção de soberania do Estado, tendo-o como transcendente – “um produto do panteísmo filosófico alemão”, como notou Abraham Kuyper. Por isso Barth, ao participar de uma acalorada reunião com a presença de teólogos “cristãos alemães”, em Berlim, em janeiro de 1934, se dirigiu a eles aos gritos, como a hereges: “Vocês têm uma fé diferente, um espírito diferente, um Deus diferente”. E Bonhoeffer, em outubro de 1934, afirmou: “Quem rompe com a Igreja Confessante separa-se da salvação”. Estas afirmações corajosas, ousadas, foram proferidas porque estes entenderam que a noção idolátrica do Estado soberano deve ser totalmente rejeitada, pois opõe-se frontalmente a Deus, o “bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém!” (1Tm 6.15-16).
Muitos dos teólogos que aderiram ao nazismo seguiam a teologia liberal, isto é, negavam a inspiração das Escrituras, o nascimento virginal, morte vicária e ressurreição corporal de Cristo, além de sua segunda vinda – como vários dos teólogos esquerdistas da atualidade. E que, naquele momento, como agora, aceitaram a noção de soberania do Estado, tendo-o como transcendente – “um produto do panteísmo filosófico alemão”, como notou Abraham Kuyper. Por isso Barth, ao participar de uma acalorada reunião com a presença de teólogos “cristãos alemães”, em Berlim, em janeiro de 1934, se dirigiu a eles aos gritos, como a hereges: “Vocês têm uma fé diferente, um espírito diferente, um Deus diferente”. E Bonhoeffer, em outubro de 1934, afirmou: “Quem rompe com a Igreja Confessante separa-se da salvação”. Estas afirmações corajosas, ousadas, foram proferidas porque estes entenderam que a noção idolátrica do Estado soberano deve ser totalmente rejeitada, pois opõe-se frontalmente a Deus, o “bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém!” (1Tm 6.15-16).