Temos o prazer de
apresentar aos nossos leitores mais uma excelente entrevista com um dos
expressivos pensadores no Brasil na área de Cosmovisão Cristã, pensador da
tradição de Abraham Kuyper - também conhecida como tradição kuyperiana. Nosso
entrevistado é Rodolfo Amorim. Formado
em teologia e em RI com mestrado em Ciências Sociais pela UFMG, obreiro
fundador de L'Abri, presbítero licenciado da Igreja Presbiteriana do Buritis. Esperamos que essa
entrevista seja para cada leitor um material de elucidação importante sobre
Kuyper e a importância do seu pensamento para nosso contexto nacional.
Boa leitura!
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Vemos
um crescente interesse no Brasil pelo pensamento neocalvinista holandês.
Sabemos que o mais importante representante foi seu idealizador, ou
reformulador, no sentido de aplicar o calvinismo a seu tempo: Abraham Kuyper.
No entanto, a tradição kuyperiana ainda é bem desconhecida do grande público de
estudantes e leitores da teologia reformada em matéria de cosmovisão. Em sua
opinião, qual a importância do pensamento de Kuyper e suas formulações
aplicadas às esferas e como esse pensamento pode nos ajudar no Brasil em nosso
contexto cultural?
A importância de Kuyper
para o contexto brasileiro atual se dá sobretudo em duas frentes importantes de
formação da identidade e vivência cristã: sua capacidade de engajar com o mundo
moderno e suas questões culturais específicas e; seu zelo por manter o centro
da ortodoxia cristã protegido contra adaptações desta para fins de relevância
cultural.
Em relação ao primeiro
ponto, o de capacidade de engajamento cultural no contexto moderno, podemos dizer
que o neocalvinismo iniciado por Kuyper talvez tenha sido o movimento cristão
protestante, após a reforma do século XVI, que mais se esforçou por entender e
responder a uma miríade de novas questões e desafios que a igreja cristã
ocidental passou a enfrentar após o advento da modernidade. Enquanto muitas
expressões do cristianismo ocidental observaram passivamente o crescimento e o
domínio cultural das forças do modernismo – o qual tem suas raízes no impulso
humanista da renascença - o movimento de Kuyper passou a elaborar respostas
distintas a questões que a modernidade fez surgir: existe, de fato, um campo de
expressão cultural puramente secular, como defendem os modernistas, em que a
razão humana seria autônoma na busca do direcionamento da vida humana? ou
comunidades humanas com crenças distintas participam de forma conjunta e
diversa da tarefa comum de criar cultura e dar direções específicas à sociedade
e à civilização? Seria o espaço de ação e autoridade da igreja cristã apenas a
esfera da vida privada, sem qualquer relação com as produções culturais no
espaço público? Teria a Igreja de Cristo corresponsabilidade por aquilo que é
produzido culturalmente no dia a dia das civilizações, moldando a forma de as
pessoas conhecerem e agirem no mundo? A igreja teria uma função a desempenhar
junto a instituições culturais estratégicas como a universidade, a ciência, as
artes, a política, o lazer, a economia, dentre outras? ou aos cristãos está
destinado apenas apresentar uma mensagem de salvação e esperança pessoal para
uma vida no porvir? A todas estas perguntas o movimento de Kuyper respondeu com
um não às tendências de aversão à vida na criação e ao envolvimento na cultura
e com um sim à tarefa de participação cultural e vivência prática de cuidado e
amor cristão em ações criativas no mundo.
Dentro deste contexto,
dois conceitos desenvolvidos por Kuyper, posteriormente aprofundados por seus
seguidores, foram cruciais para a articulação e expansão do movimento não só na
Holanda como em outros países influenciados. Eles são o conceito de graça comum
e o conceito de soberania das esferas. No primeiro, é reconhecida a presença da
manutenção por parte do Criador das estruturas habilitadoras da vida humana em
sua ordem criada. Ou seja, até que o juízo final se desvele, todos os seres
humanos têm acesso às normas estruturais que possibilitam a vida humana no
cosmos, bem como participam na criação e no desfrute de produções culturais
diversas, como nas artes, na ciência, na tecnologia, na política, etc. Este
princípio teológico potencializou a prática do diálogo respeitoso da comunidade
cristã com outras comunidades presentes na sociedade bem como suas produções
culturais, retirando cristãos ortodoxos de guetos de isolamento cultural. Já o
conceito de soberania das esferas possibilitou aos cristãos a discernirem a
presença soberana e controladora de Deus sobre sua ordem criada, dirigindo o
progresso histórico-cultural. Ao mesmo tempo, ele forneceu uma filosofia social
capaz de orientar a ação cristã na cultura, auxiliando na identificação da
quebra desta diversidade criacional em atitudes centralizadoras de poder, ou
idólatras, e ao apontar caminhos de ação para a promoção de um progresso
cultural capaz de discernir a ameaça a esta pluralidade social intencionada
pelo criador e revelada pelas Escrituras. Os princípios divinos para variados
aspectos e instituições sociais devem, portanto, ser discernidos e cultivados
em resposta ao mandato cultural (Gn. 1:28; 2:15). Como exemplo destes
princípios vemos as aplicações neotestamentárias de diferentes direções éticas
a instâncias ou campos distintos da vida como a família, a igreja local, o
Estado, o indivíduo, dentre outros. A quebra destas normas estruturantes da
vida geraria, simultaneamente, uma ausência de reconhecimento da glória do
Criador, a quem pertence todo o poder, e uma diminuição do resplendor de sua
imagem em nós, seres humanos bem como a plenitude de suas criaturas. Para o
contexto brasileiro, onde a igreja evangélica, de forma geral, encontra fortes
dificuldades de engajamento com a cultura mais ampla e suas produções,
sobretudo modernas, uma proposta de engajamento como a reformacional de Kuyper se
faz mais do que necessária.
Em relação ao segundo
ponto, reconhecemos que a tradição kuyperiana não necessitou e nem teve como
intenção na promoção deste engajamento aberto com a modernidade, negar sua
identificação e apego às doutrinas e crenças celebradas pela tradição ortodoxa
e católica da Igreja. Ou seja, diferentemente de movimentos liberais, que
admitem uma alteração da ortodoxia para alcançar uma suposta relevância
histórico-cultural, o movimento kuyperiano sempre partiu, em sua proposta
cultural mais ampla, deste centro de identidade confessional clássico.
Contrariamente àquele, a proposta kuyperiana acredita que negociar a identidade
confessional em nome de uma suposta relevância histórica será o caminho certo
da irrelevância e do esquecimento histórico. Este insight pode ser comprovado
pelo reconhecimento factual de uma série de movimentos de adaptação das crenças
cristã ao espírito dos tempos que hoje ficaram como relíquias discretas no
“museu” da história. Para o contexto de fé brasileiro evangelical, com
tendências confessionais conservadoras, mesmo com pouca consciência da tradição
teológica cristã, um movimento zeloso com a ortodoxia cristã como o de Kuyper
tem um grande potencial de assimilação e incorporação em nossas práticas e
formação no contexto eclesiástico.
Temos
no meio evangélico uma série de problemas com respeito a referenciais
teológicos, científicos e também para uma maturação de uma filosofia política
genuinamente evangélica e reformacional. Como a tradição kuyperiana pode
contribuir para alcançarmos essa maturação?
A meu ver o meio
evangélico não só brasileiro, mas internacional, padece de duas tendências
igualmente perniciosas para o alcance de uma vivência cristã plena na cultura e
na criação divina, o isolacionismo e o ativismo religioso. Fortemente
influenciado pelo ethos fundamentalista que teve origem nos EUA no início do
século XX, o evangelicalismo ainda padece de uma forte tendência de isolamento
e alienação cultural. Quando alguém se torna um cristão evangélico, geralmente
esta pessoa é incentivada a colocar em segundo plano qualquer contribuição sua
para a introdução de novidades no mundo, seja por meio da ciência, da política,
da luta por justiça, das artes, etc. O contexto vocacional do cristão é
geralmente sufocado por uma suposta urgência na salvação de almas e de
engajamento no nível da igreja local. Mas como todos os cristãos
invariavelmente têm corpos e vivem na dinâmica da ordem criacional estabelecida
pelo próprio Deus, as atividades culturais inescapáveis envolvendo trabalho,
criatividade, obediência civil, desfrute estético, passam a ser performadas com
uma certa indiferença e até desleixo. É como se Deus não tivesse relação com
estes campos da vida. Como consequência, os cristãos evangélicos se tornam
reprodutores das formas culturais dominantes, que muitas vezes partem de
orientações existenciais e de visões de mundo distintas, e até mesmo
contrárias, às suas. É o caso do professor cristão que ensina teorias
anticristãs na sala de aula pensando que o que Deus exige de si é apenas um bom
testemunho, ou dedicação ao trabalho, esquecendo-se de que deveria amar e
servir ao Senhor e ao próximo também com todo o seu entendimento.
A segunda tendência
evangelical abrangente é uma espécie de ativismo triunfalista. Assim que alguma
proposta de ação é divisada pela comunidade evangélica, refletindo o perfil de
muitos de seus líderes, os cristãos passam a efetivar uma série de programas e
eventos com o fim de alcançar suas metas, geralmente impulsionados por fortes
apelos emotivos. O problema disto é que sem uma reflexão responsável e sóbria
sobre seus próprios fundamentos de fé e a construção laboriosa de pontes de
significado e discernimento de ações específicas em um mundo altamente complexo
como o nosso, a maioria destes programas acaba por frustrar as expectativas
originais, gerando frutos altamente questionáveis sobre sua validade e reflexo
cristão. Temos visto isso no Brasil com o envolvimento evangélico com a
política. Várias igrejas passaram a incluir, sobretudo nas últimas duas
décadas, a participação e o engajamento político como algo legítimo a ser
buscado e incentivado. E isto não está equivocado em si mesmo. Na prática,
porém, o que temos visto após este engajamento excessivamente rápido e
pragmático é que os políticos “enviados” por estas igrejas são, em grande
maioria, um mal exemplo de serviço vocacional. Em uma pesquisa feita pela ONG
Transparência Brasil em 2012, a bancada evangélica no congresso foi descrita
como a mais ausente das seções do plenário, a que menos propôs projetos de lei,
e a que tinha mais representantes, proporcionalmente a outras bancadas,
envolvidos em processos de corrupção. Isto nos mostra que não basta se lançar
em atividades e eventos contando com a aprovação divina de qualquer tipo de
ação. Se não discernirmos os princípios orientadores que têm origem em nossa fé
e as complexidades específicas dos campos de poder que hoje ordenam nossa
sociedade, nossas ações serão medíocres e frustrantes.
Neste sentido, creio que a
tradição reformacional pode auxiliar a comunidade cristã evangélica corrigindo
de alguma forma estas duas tendências. Em relação ao isolacionismo, isto pode
se dar incentivando a igreja de Cristo a exercer seus dons e talentos não
somente no contexto congregacional, que dificilmente pode ser identificado com
um espaço físico, mas também no contexto da comunidade dispersa de
vocacionados. Pois na cultura cristãos agem em diversas esferas da vida e tipos
de responsabilidades culturais e civis, como no comércio, no ensino, na
ciência, nas artes, etc. Em relação ao segundo ponto, do ativismo, a tradição
kuyperiana tem sido reconhecida como capaz de apontar horizontes de
entendimento das ações necessárias em contextos sócio-culturais complexos. Para
que os cristãos contribuam (e não dominem) culturalmente nas sociedades
contemporâneas, se faz necessário discernir as formas de pensamento, os
estatutos específicos, as liturgias incorporadas em cada campo de atuação. Em
mais de cem anos de reflexão extensiva sobre a ação de cristãos nos mais
diversos campos, com frutos expressivos apresentados, seja na política (e.g., a
atuação do partido da União Cristã é um dos mais respeitados no contexto
holandês atual), nas artes (e.g. cristãos respeitados em áreas de produção
artística, como cinema e artes visuais – CIVA), jornalismo, direito, moda, reforma
social, dentre outras áreas, a tradição kuyperiana pode ajudar os evangélicos a
temperar seu ímpeto ativista com mais sabedoria e propriedade no discernimento
necessário anterior às ações.
Observamos
uma demanda por livros, sites, blogs, vídeos que tratem sobre cosmovisão cristã
e suas mais variadas abordagens, como você observa essa procura e que caminho
recomenda para um estudo sistemático e crescente sobre o assunto?
Já existe uma literatura
introdutória sobre estes temas e tradição na língua portuguesa, apesar de ainda
não alcançar o público mais amplo. A procura por este tipo de abordagem tem
crescido de forma exponencial no Brasil dos últimos anos. Quando começamos a
compartilhar sobre cosmovisão cristã e a necessidade da construção de uma
sabedoria cristã para lidar com temas atuais, por volta do ano 2003/2004,
poucas pessoas tinham sequer noção sobre a necessidade de construção
responsável de uma reflexão cristã sobre variados temas de pertinência
cultural. O isolacionismo e ativismo abordados na segunda pergunta eram os grandes responsáveis por esta
“indiferença”. Hoje o cenário já é diferente. Creio que dois fatores
colaboraram para isto. Primeiramente, o crescimento exponencial evangélico e a
consequente necessidade desta comunidade mais expressiva em termos sociais de
enfrentar demandas culturais inegáveis, como u mundo da academia, o engajamento
político, a ação no mundo empresarial, etc. Em segundo lugar, eu mencionaria a
conclusão prática que muitos chegaram de que os evangélicos não têm conseguido
traduzir as riquezas do Evangelho em riqueza de participação social e cultural.
Pelo contrário. Me lembro de um amigo próximo que disse que estava cansado de
todos os fins de semana ir ao açaí ou à pizzaria gospel tomar Fanta e ouvir Fernandinho.
Ou seja, a vida cristã deve ter mais a oferecer do que a participação monótona
nos guetos de cultura gospel.
Minha dica àqueles que se
interessam pela rica tradição cristã e pela necessidade de formar uma
mentalidade cristã é de entrarem em contato com autores recentemente
introduzidos por aqui e se envolverem pessoalmente. Dentre os que recomendaria
estão o próprio Abraham Kuyper, Francis Schaeffer, Hans Rookmaaker, Herman
Dooyeweerd, Egbert Schuurman, David Koyzis, Albert Wolters, Brian Walsh, Os
Guinness, Nancy Pearcey, Steve Turner, Brian Godawa, Charles Colson, e algumas
publicações nacionais como os livros de Maurício Cunha e Pedro Dulci e as obras
editadas por mim e pelo Guilherme de Carvalho pela Editora Ultimato e as várias
publicações do Guilherme de Carvalho disponíveis hoje pela internet. Indicaria
também a aproximação e participação em organizações que expressam as crenças
cristãs básicas enfatizadas pelo neocalvinismo como o CADI (Centro de
Assistência e Desenvolvimento Integral), a ABC² (Associação Brasileira de
Cristãos na Ciência), a AKET (Associação Kuyper para Estudos
Transdisciplinares), o L’Aabri em Belo Horizonte e os Amigos de L’Abri pelo
Brasil, o L’Abrarte em Natal, enfim, organizações que compartilham e vivenciam
estes princípios.
Como
você define o Neocalvinismo holandês?
Em uma definição breve
diria que o neocalvinismo holandês é um movimento de renovação espiritual e
cultural iniciado no século XIX que entende a responsabilidade do Cristão e da
Igreja de servirem seu Senhor como uma tarefa realizada diante de desafios
sempre renovados à expressão da verdade básica de nossa fé: a de que Jesus
Cristo é o Senhor de todas as coisas, aquele em que todas as coisas encontram
seu significado e sentido último em todos os campos e esferas da vida humana.
Diante
do crescente número de publicações no Brasil de material relacionado ao
Neocalvinismo, e a grupos como a AKET e ABC², é notório que há uma movimentação
para um trabalho que emprega esse conhecimento reformacional à missão, ou ao
que muitos chamam de reformissão. Em sua opinião quais são os benefícios dessa
movimentação e quais são os possíveis mal entendidos que devem ser esclarecidos
em relação ao conceito calvinista de cultura, visto que há criticas ao pensamento
kuyperiano de redenção da cultura?
Creio que alguns pontos
têm de ficar bem entendidos em relação a esta proposta como forma de cautela
para se evitar maus usos, o que já ocorreu historicamente. Primeiramente, ela
não é perfeita e não é Palavra de Deus. Ou seja, a tradição kuyperiana é um
esforço de servos falhos de Cristo a cumprirem seu papel diante dos desafios
que o mundo presente nos apresenta. Portanto, o uso de suas propostas não deve
ser dogmático ou fechado a correções e críticas. O que pode gerar uma espécie
de idolatria neocalvinista. Um segundo ponto importante a se lembrar é que ao
nos envolvermos com a cultura enquanto cristãos e igreja de Cristo, o que é
inescapável e totalmente legítimo, não devemos assumir uma postura de desejo pelo
poder ou de domínio cultural. Francis Schaeffer enfatizava um princípio cristão
que deve ser caro aos que se envolvem intencionalmente na cultura: devemos
fazer a obra do Senhor da forma do Senhor. Ou seja, Cristo serviu e modificou
as formas culturais? Sim, isso é inegável. O mundo da cultura e da civilização
nunca foi o mesmo após Cristo. A segunda pergunta é: como Cristo fez isso? E a
resposta está em sua vida de serviço, sacrifício e cruz. Cristo nunca foi
conivente com os sistemas de poder culturais vigentes, e sempre os enfrentou de
forma aberta. Mas o espaço de mudança efetiva que conquistou não se deu por um
embate direto com os poderes do mundo, senão por meio do serviço intencional e
sacrificial. Haverá momentos em que a Igreja de Cristo terá poder nas mãos?
Sim, e a história testifica disso. Mas em todos os momentos que a Igreja usou o
poder para seu próprio benefício, ou para exercer um domínio excessivo, ela
causou tanto mal quanto bem, oprimindo e violentando a dignidade de pessoas e
comunidades a quem devia servir. Este é um cuidado que temos de ter enquanto
cristãos que lidam com instâncias culturais que sempre compreendem poder. O
cultivo da civilidade no espaço público e a presença constante junto aos
marginalizados da sociedade são práticas importantes a cristãos que assumem um
quadro de referência kuyperiano para a missão. Quanto aos pontos positivos,
creio que já tenha respondido nas perguntas 1 e 2 feitas acima.
Vista
a grande crise política, moral e ideológica que tem se instaurado no Brasil,
qual seria -em sua análise - a contribuição da tradição neocalvinista para uma
filosofia e uma ciência política que rompam com essa vacuidade entre teoria
política e prática econômica e administrativa no país?
Creio firmemente que o
kuyperianismo apresenta uma alternativa possível ao esgotamento crescente aos
modelos ideológicos que prevalecem no embate político vigente. Alguns pontos
confirmam, a meu ver, esta possibilidade. Primeiramente, o kuyperianismo é uma
das únicas tradições teológicas contemporâneas (talvez junto da articulação
anabatista contemporânea de John Howard Yoder e a Otodoxia Radical inaugurada
por John Milbank) que lançam um olhar crítico para a origem secular e humanista
das tendências polares das ideologias políticas contemporâneas. Enquanto esta
raiz originadora dos polos do espectro político (direita/esquerda) não for
revelada em sua fragilidade original comum, que se relaciona com as teorias de
contrato social artificiais como originadoras das instancias institucionais que
configuram a sociedade, não poderemos avançar para além deste embate
polarizador que paralisa, mais do que permite o florescimento, dos ricos
potenciais presentes em nossa gente, sociedade e cultura.
Um terceiro elemento de
contribuição do kuyperianismo em relação à política é a introdução de uma
visão, digamos, agostiniana de mal e conflito social, a qual evita os erros
comuns dos maniqueísmos sociais das teorias seculares. Visões binárias da
sociedade que localizam o conflito em estruturas previamente definidas sempre
são insuficientes de realizar uma leitura da realidade dinâmica e complexa das
sociedades. A opressão nem sempre está na relação patrão/empregado, ou
burguesia/proletariado, ou mercado/Estado, ou burocracia estatal/trocas
individuais. Estas formas consagradas de entender a sociedade tendem a cindir o
tecido social e a tornar impossível o discernimento para a aplicação de justiça
pública efetiva na relação entre pessoas e grupos na sociedade (função
relacionada ao Estado). Ao abrir mão de uma visão maniqueísta de mal social,
podemos enxergar de forma mais ampla e específica em quais instâncias ocorre a
injustiça e quais são os perpetradores e as vítimas. Em dado momento, a
sociedade talvez precise diminuir o tamanho da burocracia estatal e seu poder
sobre instancias específicas da sociedade. Em outro, um Estado mais forte e
presente pode ser necessário. Em um contexto, a justiça tem de se dar contra o
poder abusivo dos sindicatos e instâncias de proteção dos direitos de classe,
em outros atuar contra a injustiça realizada pela classe empregadora e
detentora de capital econômico. Ou seja, ao mesmo tempo em que promove uma
pluralidade estrutural, a visão kuyperiana permite uma visão mais dinâmica e
fenomenológica de conflitos presentes no seio da sociedade, superando as visões
limitadoras e insuficientes típicas do maniqueísmo secularista, à direita ou à
esquerda. Fomentar a contribuição específica de cada instituição social para a
potencialização da vida humana em um arranjo de unidade e diversidade cada vez
mais crescente, corrigindo pontualmente as injustiças reais que surgem no
processo histórico, seria parte do horizonte de uma proposta política
reformacional.
Rodolfo,
para finalizarmos nossa entrevista, qual seria suas indicações bibliográficas
para aqueles que querem se inteirar sobre a tradição kuyperiana e quais
conselhos daria a quem deseja colocar em prática aquilo que o pensamento
reformacional tem falado?
Posso indicar alguns
livros básicos nesta tradição. Talvez o primeiro seja o próprio Calvinismo, de Abraham Kuyper (Ed.
Cultura Cristã), que de certa forma inaugura o movimento e delineia
inicialmente seu programa. Os livros de Herman Dooyeweerd poderiam vir como um
complementos a este, aprofundando nos insights de Kuyper e ampliando sua
capacidade de entendimento e aplicações. Em língua portuguesa temos: No Crepúsculo do Pensamento Ocidental
(Ed. Hagnos), Estado e Soberania (Ed.
Vida Nova) e Raízes da Cultura Ocidental (Ed.
Cultura Cristã). Na área da política indico o Visões e Ilusões Políticas, de David Koyzis (Ed. Vida Nova). Na
área das artes indico os livros de Hans R. Rookmaaker A Arte não Precisa de Justificativa (Ed. Ultimato) e Arte Moderna e Morte de Uma Cultura (Ed.
Ultimato). Em relação à ciência e tecnologia indico o Fé, Esperança e Tecnologia, de Egbert Schuurman (Ed. Ultimato).
Como introdução geral à tradição kuyperiana indico nossos livros pela Ed.
Utimato: Cosmovisão Cristã e Transformação
e Fé Cristã e Cultura Contemporânea.
Em relação à prática,
busque se inteirar, ler sobre a tradição e compreender suas propostas. Em um
segundo momento, sugiro o envolvimento pessoal com algumas das atividades e
comunidades que expressam esta visão. O L’Abri neste ponto é muito importante.