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11 de set. de 2015

Antropologia Reformada

Por Francis Schaeffer

A Reforma e o Homem

Conhecemos, pois, algo deslumbrante a respeito do homem. Entre outras coisas, conhecemos a sua origem e quem ele é – criado à imagem de Deus. É o homem maravilhoso não apenas quando é “nascido de novo” como um cristão, é também maravilhoso como o fez Deus a Sua própria imagem. Tem o homem valor e dignidade em função daquilo que foi originalmente, antes da Queda.

Estava, há pouco, fazendo uma série de preleções em Santa Bárbara, quando me foi apresentado um rapaz viciado em entorpecentes. Era um jovem de semblante delicado e expressivo, cabelos longos e encaracolados, os pés calçados com sandálias, e trajava calça rancheira. Assistiu a uma das preleções e confessou: “Isto é completa novidade para mim; nunca ouvi coisa alguma igual a isto”. Voltou na tarde seguinte e eu o saudei. Olhou-me firmemente nos olhos e disse: “O senhor me cumprimentou de maneira tocante. Por que me tratou assim?” Respondi-lhe: “é porque eu sei quem você é – sei que você foi criado à imagem de Deus”. Em seguida tivemos uma demorada e notável conversa. Não podemos tratar as pessoas como seres humanos, não podemos vê-las no alto nível da verdadeira humanidade, a menos que conheçamos realmente a sua origem – quem são. Deus diz ao homem quem ele é. Deus nos declara que Ele criou o homem à própria imagem. Portanto, o ser humano é algo maravilhoso.

Deus, entretanto, nos diz algo mais a respeito do homem – fala-nos acerca da Queda. Isto introduz o outro elemento que precisamos conhecer a fim de entendermos o ser humano. Por que é, há um tempo, criatura tão maravilhosa e tão degradada? Quem é o homem? Quem sou eu? Por que pode o homem realizar estas coisas que o fazem único, no entanto, porque é ele tão horrível? Por quê?

Diz a Bíblia que você é maravilhoso porque é feito à imagem de Deus e degradado porque, em determinado ponto espaço-temporal na história, o ser humano caiu. O homem da Reforma sabia que a criatura marcha rumo ao Inferno em razão da revolta contra Deus. Todavia o homem da Reforma e aqueles que após a Reforma forjaram a cultura do Norte Europeu sabiam que, enquanto o homem é moralmente culpado diante do Deus que existe, ele não é o nada. O homem moderno tende a julgar-se ser nada. Aqueles, entretanto, sabiam que eram exatamente o oposto do nada porque conheciam o sentido de serem feitos à imagem de Deus. Embora decaídos e, a parte da solução não-humanista de Cristo e Sua morte substitutiva, iriam para o Inferno, isto não significava, contudo que eram nada. Quando a Palavra de Deus, a Bíblia veio a ser ouvida, a Reforma teve resultados tremendos, tanto nas pessoas individualmente, que se tornavam genuínos cristãos, como na cultura em geral.

O que a Reforma nos diz, pois, é que Deus falou nas Escrituras tanto acerca do “andar de cima” como do “andar de baixo”. Falou em verdadeira revelação acerca de Si mesmo – as coisas celestiais – e falou em verdadeira revelação a respeito da própria natureza – o cosmos e o homem. Portanto, tinham os Reformadores uma real unidade de conhecimento. Eles simplesmente não tinham o problema renascentista de graça e natureza! Obtinham real unidade, não que fossem mais sagazes, mas porque alcançavam uma unidade cuja base se achava no que Deus revelara em ambas as áreas. Em contraste com o Humanismo de Tomás de Aquino liberara e o Humanismo que o Catolicismo Romano fomentara, não reconhecia a Reforma qualquer porção autônoma.

Não queria isto dizer que não restava liberdade para a arte ou a ciência. O oposto é que era verdade; havia agora a possibilidade da verdadeira liberdade dentro da forma revelada. Contudo, ainda que haja liberdade para a arte e a ciência, não são elas autônomas – o artista e o cientista também se acham debaixo da revelação das Escrituras. Como se verá, sempre que a arte ou a ciência procuraram fazer-se autônomas, certo princípio sempre se manifestou – a natureza “devora” a graça e, consequentemente, a arte e a ciência bem logo começaram a parecer destituídas de significação. A Reforma teve não poucos resultados de tremendo alcance e tornou possível a cultura que tantos dentre nós admiramos afetuosamente – ainda que a nossa geração a esteja agora lançando fora. Confronta-nos a Reforma um Adão que era, usando a terminologia característica da forma de pensamento do século vinte, um homem não-programado – não arranjado como um cartão perfurado de um sistema de computação. Uma característica que marca o homem do século vinte é que ele não pode visualizar isto, uma vez que é de todo infiltrado por um conceito determinista. A perspectiva bíblica, entretanto, é clara – homem não pode ser explicado como totalmente determinado e condicionado – posição que forjou o conceito da dignidade do homem. Há pessoas que buscam hoje apegar-se à dignidade do homem, entretanto não têm base conveniente em que se fundamentar, pois que perderam a verdade de que o homem foi feito à imagem de Deus. Ele era um homem não programado, um homem revestido de significado numa história de alto sentido, capaz de alterar a história.

Temos, pois, no pensamento da Reforma um homem que é alguém. Vemo-lo, porém, envolvido numa condição de revolta e a rebeldia é real – jamais uma “peça de teatro”. Uma vez que é um ser não programado e de fato se revolta, ele incide em genuína culpabilidade moral. À vista disto, os Reformadores compreenderam algo mais. Tiveram uma compreensão bíblica da obra de Cristo. Compreenderam que Jesus morreu na cruz em função substitutiva e em ação propiciatória a fim de salvar o homem da verdadeira culpa que sobre ele pesa. Necessitamos reconhecer que, no instante em que nos pomos a alterar a noção bíblica da verdadeira culpa moral, seja falsificação psicológica, seja a falsificação teológica, ou seja, de qualquer outra forma, nosso conceito da obra de Jesus não mais será bíblico. Cristo morreu pelo homem que tinha uma culpa moral verdadeira por ele próprio ter feito essa real e verdadeira escolha.

Mais acerca do Homem

Algo mais nos cumpre agora ver acerca do homem. Para tanto, importa-nos ter em mente que tudo no sistema bíblico remonta a Deus. Admiro o sistema bíblico visto como sistema. Embora possamos não gostar da conotação do termo sistema, pois que se afigura um tanto frio, não quer isto dizer que o ensino bíblico não constitua um sistema. Tudo recede ao princípio e, dessa forma o sistema se reveste de beleza e perfeição únicas, uma vez que tudo se acha sob o ápice do sistema. Tudo começa com a espécie de Deus que está “presente”. Este é o princípio e o ápice de todo, tudo daí defluindo de maneira não contraditória. Diz-nos a Bíblia que Deus é um Deus vivo e muito nos conta a Seu respeito. Talvez o que de maior significação pareça para o homem do século vinte é que a Bíblia caracteriza a Deus como pessoal e também como infinito. Este é o tipo de Deus que está “presente”, que existe. Ademais, este é o único sistema, a única religião que aceita Deus com estas características. Os deuses orientais são infinitos por definição, na acepção de que a tudo abarcam – o bem tanto quanto o mal – contudo, não são pessoais. Os deuses ocidentais eram pessoais, todavia, muito limitados. Os deuses teutões, ou romanos, ou gregos, eram todos do mesmo viés – pessoais, porém não infinitos. O Deus da fé cristã, Deus da Bíblia é pessoal e infinito.

Este Deus da Bíblia, pessoal e infinito é o Criador de tudo mais. Deus criou todas as coisas e as criou do nada. Logo, tudo mais é finito, criatura. Ele, e Ele somente, é o Criador infinito. Podemos representar graficamente este fato assim:


Ele criou o homem, os animais, as flores, a máquina. Do ponto de vista de Sua infinitude, o homem está tão separado de Deus quanto à máquina. Mas diz-nos a Bíblia, quando encaramos o fato do ângulo da personalidade humana, deparamo-nos com algo bastante diferente. O abismo, a separação, está num outro ponto:


Assim, o homem tendo sido criado à imagem de Deus, foi destinado a usufruir com Ele uma relação pessoal. A relação do homem é ascensional (para cima), não apenas descensional (para baixo). Quando tratamos com pessoas do século vinte, esta diferença assume crucial importância. O homem moderno visualiza sua relação descensionalmente, em termos do animal e da máquina. A Bíblia rejeita este conceito da natureza e sentido do homem. Do ponto de vista da personalidade somos diretamente relacionados com Deus. Não somos infinitos, somos finitos; não obstante, somos plenamente pessoais, somos feitos à imagem do Deus pessoal que existe.

Reforma Renascença e Moral

Há não poucos resultados práticos dessas diferenças entre o pensamento da Renascença e o da Reforma. De vasta área se poderiam amealhar ilustrações. Por exemplo, a Renascença outorgou liberdade à mulher. Não menos o fez a Reforma – com grande diferença, porém. A obra de Jacob Burckhardt – A Civilização da Renascença na Itália, publicada na Basiléia em 1860 é ainda padrão nestas questões. Ressalta ele que a mulher da Renascença na Itália era livre, contudo, ao preço elevado da imoralidade geral. Burckhardt (1818-1897) gasta páginas e mais páginas para ilustrar este fato.

A que se deveu isto? Ao conceito então vigente de graça e natureza. Tais coisas jamais são apenas teóricas, pois que o homem age de acordo com o seu modo de pensar:


Na porção superior estão os poetas líricos, que cantaram o “amor espiritual” e o amor ideal. Na inferior, os novelistas e poetas cômicos a apregoarem o amor sensual. Houve um dilúvio de obras pornográficas. Este elemento do período renascentista não se limitou à literatura, caracterizou o próprio estilo de vida que levavam os homens dessa época. O homem autônomo viu-se embalado em insolúvel dualidade. É o que se vê em Dante, por exemplo. Apaixonou-se por uma donzela à primeira vista e a amou por toda a vida. Mas, a despeito disso, casou-se com outra mulher, que lhe deu filhos e lhe lavava os pratos.

O fato simples é que esta separação natureza-graça invadiu toda a estrutura da vida renascentista e o “andar inferior” autônomo corroeu sempre o “superior”.

O Homem Integral

Muito diferente era, e é a perspectiva bíblica sustentada pela Reforma. Não é uma concepção platônica. A alma não é mais importante que o corpo. Deus criou o homem no seu todo e o homem todo é importante. A doutrina da ressurreição corpórea dos mortos não é coisa superada, anacrônica. Ela nos diz que Deus ama o homem todo e que o ser humano é importante em sua totalidade. Portanto, o ensino bíblico se opõe ao platônico, segundo o qual a alma (o “superior”) é muito importante enquanto que o corpo (o “inferior”) fica com bem reduzida importância. A concepção bíblica opõe-se de igual modo à posição humanista em que o corpo e a mente autônoma assumem grande relevância mas a graça se faz praticamente destituída de significação.

A posição bíblica, acentuada pela Reforma, sustenta que nem a concepção platônica, nem a humanista satisfaz. Primeiro, Deus fez o homem todo e está interessado na totalidade do ser humano. Segundo, quando se deu a Queda, fato histórico que ocorreu no tempo e no espaço, ela afetou o homem inteiro. Terceiro, à base da obra de Cristo como Salvador e mercê do conhecimento que temos na revelação das Escrituras, há redenção para o homem no seu todo. No futuro, o homem integral será levantado dentre os mortos e redimido perfeitamente.

Diz Paulo, no capítulo 6 da Epístola aos Romanos, que já na presente vida temos uma substancial realidade da redenção do homem como um todo. Ela se processa à base do sangue de Cristo derramado e no poder do Espírito Santo mediante a fé, embora não seja perfeita nesta vida. Existe o soberano senhorio de Cristo sobre todo o homem. É isto o que os Reformadores entenderam e a Bíblia ensina. Na Holanda, por exemplo, mais do que no Cristianismo anglo-saxão, eles acentuaram que isto significava o senhorio de Cristo na cultura. Desta sorte, isto que dizer que Cristo é Senhor em ambas as áreas igualmente:

Nada há autônomo – nada à parte do soberano senhorio de Jesus Cristo e da autoridade das Escrituras. Deus fez o homem todo e está interessado no homem todo, e o resultado é uma unidade. Desta forma, ao mesmo tempo em que se processava o nascimento do homem moderno na Renascença, a Reforma dava a única resposta adequada ao dilema humano. Em contraste, o dualismo no homem renascentista trouxe à tona as modernas formas de Humanismo, com as misérias e sofrimentos do homem moderno.
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Fonte: A Morte da Razão, Editora Ultimato. 

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