Por Thiago Azevedo
João Calvino ainda é uma personagem na história do
cristianismo muito mal interpretada. Por muito, João Calvino tem caído no tão
famigerado método interpretativo que classifico como “Histórico Auditivo”, é
aquele que a pessoa interpreta uma personagem a partir do que se fala dela, mas
nunca do que a própria personagem deixou registrado. Calvino, além de seus
comentários bíblicos, nos deixou outras obras que são de suma importância para
quem quiser lhe compreender – Assim são suas Cartas, seus sermões, e As
Institutas ou Tratado da Religião Cristã, está última figurando como sua obra
magna.
Além disso, Calvino confeccionou um vasto material
litúrgico, por exemplo, um manual de culto que publicou entre o final de 1539 e
início de 1540, completo em língua francesa e contendo diversos salmos e versos
acompanhados de suas respectivas melodias para o canto congregacional.
Posteriormente, em meados 1536 – 1537, João Calvino elabora uma espécie de
Catecismo que posteriormente receberia o nome de “instrução e Confissão de
Fé, Segundo o Uso da Igreja de Genebra”. De acordo com muitos estudiosos do
pensamento calvinista, essa obra possuía um caráter mais didático em relação a
outros catecismos, pois a mesma não era composta de perguntas e respostas, mas
sim de um modo que Calvino julgou acessível aos fiéis. Ainda em 1539, João
Calvino elabora aquele que seria conhecido como o Saltério de Genebra, onde
traduzira alguns salmos (19 inicialmente). Esta obra fora iniciada por Calvino,
mas concluída por Theodore de Beza e outros expoentes da cultura musical
francesa deste período. O Saltério de Genebra “tornou-se um dos livros mais
importantes da reforma” [1]. Esta obra teve “um verdadeiro ‘dom de línguas’, já
que foi traduzido para o alemão, holandês, Italiano, espanhol, boêmio, polonês,
latim, hebraico, malaio, tamis, inglês, etc., e usado por católicos, luteranos
e outras denominações” [2].
Com estas obras, Calvino não só nos mostra sua
preocupação com a correta liturgia cristã, mas também seu zelo e cuidado no
manuseio para com as Escrituras Sagradas. Assim o faz por conta da pesada
herança litúrgica medieval cuja qual estava recebendo. Este corpo litúrgico
produzido por João Calvino circulou nas igrejas de Genebra e de Estrasburgo
guiando suas respectivas liturgias. Calvino era um homem que tinha receio que
as atenções humanas no decorrer da liturgia do culto cristão fossem desviadas
do que realmente é mais importante, a saber: as Escrituras Sagradas. A salmodia
exclusiva é outro bom exemplo do cuidado e zelo Biblico-liturgico deste
reformador; entendia que o livro de salmos era uma espécie de anatomia de todas
as partes da alma, uma espécie de compêndio teológico mais que salutar à
igreja. Nada mais justo que cantá-los de forma congregacional. Calvino era um
apreciador da harpa (instrumento musical), mas optava pela liturgia da antiga
sinagoga judaica. Ou seja, sem o acompanhamento instrumental. Possuía o receio
de que quaisquer outras cousas, que não fosse a essência das Sagradas
Escrituras, atraíssem mais atenção de quem estava cultuando. Assim, imaginemos
que se um salmo era cantado com muito floreio musical, ênfase harmônica ou
vocal etc., e a beleza de sua harmonia melódica chamasse mais atenção que sua
letra em específico, isso seria um pecado grave para com as Escrituras Sagradas
no entendimento deste reformador. O mesmo nos fala sobre isso:
“Nem contudo, aqui condenamos a voz ou o canto, se
não que antes, muito os recomendamos, desde que acompanhem o afeto da alma.
Ora, assim exercitam a mente na cogitação de Deus e a retêm atenta, a qual,
como é escorregadia e versátil, facilmente se afrouxa e a variadas direções se
distrai, a menos que seja de variados adminículos sustentada. Ademais, como em
cada parte de nosso corpo, uma a uma, deve luzir, de certo modo, a glória de
Deus, convém especialmente seja a língua, que foi criada peculiarmente para
declarar e proclamar o louvor de Deus, adjudicada e devotada a este ministério,
quer cantando quer falando [...]” (CALVINO, As Institutas da Religião Cristã,
III.20.31.)
Para Calvino havia um “elemento central no culto” e
este não podia ser outro que não fosse a Palavra de Deus. Esta ideia fora
propagada até na organização e na construção das igrejas reformadas na Europa: “As
igrejas Reformadas simbolizaram isso nos edifícios que ergueram durante a
Reforma, ao colocar o púlpito à frente e no centro do templo” (REID, El
Culto Reformado. In: DTP, p. 43 apud MAIA, 2000, p. 57). Um bom material para
conhecer com mais detalhes e informações acerca do culto histórico dos
reformados, a expansão do Saltério Genebrino nas mais diversas línguas que fora
traduzido, e até a possibilidade de fazer downloads dos salmos cantados,
encontra-se no site Westminster Hoje (em espanhol) cujo link está disponível aqui. O site reproduziu uma série de
sete Artigos do Pastor John Sawtelle sobre o tema.
Conhecido como o “exegeta da reforma”, pela riqueza
hermenêutica vista em seus comentários, como também por sua forma peculiar de
expor as Escrituras Sagradas, Calvino possuía um zelo admirável pela Bíblia.
Havia em seu entendimento uma norma sagrada: “Que esta seja nossa regra
sacra: não procurar saber nada mais se não o que as Escrituras nos ensinam.
Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igualmente impeçamos nossa
mente de avançar sequer um passo a mais" (CALVINO, Exposição de
Romanos (9.14), p. 330). Assim como o salmista no Salmo 139:6, João Calvino
entendia que o homem possui um limite intelectual no que tange à interpretação
das Escrituras Sagradas e do Deus ali revelado. Ou seja, o limite é justamente
até onde Deus quis se revelar. Após isso, a mente humana, além de não ter como,
não deve querer avançar.
João Calvino conseguia transitar
entre a erudição e a espiritualidade sem se manter polarizado em um dos dois de
forma extremada. Conseguia entregar às suas ovelhas um alimento sólido,
consubstanciado e extraído dos mais finos recursos exegéticos, mas com o
compromisso de que todos pudessem compreendê-lo. Afinal, esta deve ser a função
principal de todo e qualquer teólogo – traduzir a teologia para a linguagem
popular sem que esta sofra mutilações. Não era em vão que lhe recaía outro
epíteto, a saber: “Príncipe dos Expositores”. De certa forma, Calvino: “Fugia
[...] e de certos refinamentos exegéticos que quando muito só servem para
revelar erudição, mas não contribuem para esclarecer o texto e edificar o povo
de Deus” CALVINO (1959, apud
MAIA, 2000, p. 39). É muito importante que se destaque
a real preocupação dos reformadores como um todo no que concerne à ênfase do “Sola
Scriptura”, bem como a disponibilização das Escrituras Sagradas para a
população em geral. Por isso a forte atividade de tradução da Bíblia para os
respectivos e diversos idiomas dos países em que a reforma se deu com maior
ênfase. Logo, essa era uma preocupação de todos os reformadores, uma vez que A
Bíblia fora oculta por muitos anos dos olhares do povo em geral.
A Teologia de João Calvino pode de
fato ser reconhecida como sistemática, mas também bíblica ao mesmo tempo. Tendo
em vista que o trabalho do “Exegeta da Reforma” se concentrou mais em comentar
o Livro Sagrado, sua Teologia é Bíblica. Porém, Calvino também é conhecido como
um grande sistematizador das Escrituras Sagradas. Não adentraremos aqui nas
nuances da complexidade da expressão Teologia Bíblica, uma vez que tudo que se
extraí da Bíblia é bíblico, logo a Teologia Sistemática também é bíblica, pois
fora extraída da Escritura. Acreditamos que a expressão de Geerhardus Vos, em
seu livro “Teologia Bíblica; Antigo e Novo Testamento”, direcionada às
Escrituras Sagradas como sendo “A História da Revelação Especial” seja mais
adequada. Mas, discussões à parte, queremos destacar que, como poucos, Calvino
consegue unir em sua Teologia pontos aparentemente opostos e marcada pela
tensão – Teologia Bíblica e Teologia Sistemática é um deles. A Teologia
Exegética era de fato uma marca na vida de Calvino, mas que de forma única,
conseguia unir isso à sua Teologia Prática. Ele não era um Teólogo puramente
teórico e sem a parte prática da coisa em si. Ele conseguia converter teoria em
prática e prática em teoria. E, como já falamos, conseguia transitar entre o
erudito e o espiritual, e o produto disso era visto na sua Teologia Prática. Um
bom exemplo sobre este caráter minimizador de tensões visto na Teologia de
Calvino é sua posição acerca da Ceia do Senhor junto aos oficiais de sua Igreja
em Genebra. É sabido que na Alta idade Média havia o costume de se celebrar a
Ceia do Senhor apenas em caráter anual – uma única vez –, mas João Calvino
combate essa ideia com ênfase no costume primitivo da Igreja Cristã que
corriqueiramente desfrutavam de momentos de comunhão “junto à mesa” (Atos 2:
44-47). O epicentro da tensão na Igreja de Genebra recai entre Calvino, que
entende que a Ceia do Senhor deve ser semanalmente realizada, e os oficiais da
Igreja que entendem que a Ceia do Senhor deveria ser ministrada apenas quatro
vezes por ano e em datas específicas. Esta tensão, se fosse em dias atuais, com
toda convicção, teríamos o assunto resolvido pelo víeis da tirania ou do
terrorismo profético que realizado por alguns líderes que fazem de suas igrejas
verdadeiros quartéis militares. Porém, a tensão entre João Calvino e seus
oficiais na Igreja de Genebra foi resolvida por meio da condução do Espírito
Santo, que concedeu a Calvino uma estratégia salutar para resolução da
problemática. O “Exegeta da Reforma” fez acordos entre as mais diversas igrejas
vizinhas em relação à data da Ceia do Senhor, conseguiu variar estas datas
entre cada igreja da cidade e proporcionar que houvesse culto de Ceia
semanalmente – não na sua Igreja em específico –, mas entre as igrejas da
cidade. Com isso, avisava aos membros de sua própria igreja que eles deveriam
visitar as outras igrejas nos cultos de Ceia especificamente, e assim estimular
a comunhão entre os irmãos e as igrejas vizinhas junto à mesa de Cristo. Com
isso, João Calvino conseguiu estabelecer seu ideal de que a Ceia do Senhor
fosse ministrada semanalmente, sem desavenças ou perseguições. Seu
trabalho sempre foi em prol do crescimento harmônico do corpo de Cristo.
Percebemos em tudo isso que João
Calvino era de fato um servo de Deus no sentido mais estrito da palavra. Um
homem que possuía um zelo imenso pelas Escrituras Sagradas. Um homem a ser
revisitado e entendido. Um exemplo de erudição e espiritualidade isento de
polarizações e extremismos nessas áreas. Um reformador que transitava entre os
mais refinados recursos exegéticos, mas que tudo isso desembocava numa Teologia
Prática piedosa e que sempre apontava para um alvo Cristocêntrico. Dizem que
reformar dá mais trabalho que construir. Com certeza, reformar a igreja foi um
trabalho árduo, mas também exitoso e que custou tempo, dedicação e a vida de
muitos homens comprometidos com Deus. As bases foram refeitas e postas – Sola
Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia, Sola Fide e Soli Deo Glória –
devemos permanecer sempre sobre o alicerce desta tradição.
[1] John H. Leith, op.
Cit., p.229 apud MAIA, 2000, p. 59.
[2] Ibidem
________________
Referências Bibliográficas
CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da
Religião Cristã. São Paulo, CEP, 1985.
CALVINO, João. Comentário
de Romanos, Editora Fiel, Edição Virtual Autorizada (Biblioteca de
Calvino).
MAIA; LEMBO; QUADROS; GOUVEIA. O Pensamento
de João Calvino. São Paulo, Mackenzie, 2000.
MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino.
São Paulo, Cultura Cristã, 2004.