Por Alan Rennê Alexandrino
Da
Aplicação de Punições nas Sagradas Escrituras
Discutir a aplicação de
punições a adolescentes por crimes praticados só faz sentido quando aceitamos,
de início, a existência do conceito de autoridade e sua relação com a punição.
Como salienta o Dr. John Frame: “O castigo dá validade prática ao conceito de
autoridade. Uma autoridade não pode funcionar bem se não houver consequências
para aqueles que a desobedecem”.[1] O
conceito de autoridade está intrinsecamente embutido na ordem criacional. Ao
criar o homem segundo a sua imagem, conforme a sua semelhança, Deus
concedeu-lhe o exercício da autoridade para subjugar e dominar a criação
(Gênesis 1.26-28), além de ordenar o funcionamento da vida em sociedade. Uma
vez compreendido isso, não há como escapar da conclusão de que a aplicação de
punições a todo transgressor das leis estabelecidas por aqueles que exercitam
legitimamente a autoridade é algo sem o qual a sociedade não poderá funcionar
de maneira ordeira. É preciso afirmar que os contrários à redução da menoridade
penal não são contrários à aplicação de punições aos “menores infratores”. De
acordo com eles, o que deve ser posto em prática é o que já está estabelecido
no famigerado Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). O grande problema está no fato do ECA propor apenas
aquilo que é denominado de medidas socioeducativas. Tais medidas partem do
pressuposto de que o propósito primário da punição deve ser a
recuperação/educação dos “menores infratores”.
É interessante que,
visando responder à pergunta “Por que punimos aqueles que desobedecem à
autoridade?”, John Frame argumenta que existem seis motivos diferentes para a
aplicação de punições: 1. Desencorajamento; 2. Reforma; 3. Restituição; 4.
Restrição; 5. Tributação; e 6. Retribuição. Recomendo que o leitor leia a
exposição que o Dr. Frame faz de cada um desses motivos.[2]
É preciso destacar,
todavia, que o segundo motivo – reforma –
é aquele que ocupa o ideário daqueles que são contrários à redução da
menoridade penal. Frame diz o seguinte sobre a reforma como a motivação para a
aplicação de punições àqueles que desobedecem às leis: “Neste caso, não punimos
Josh para desencorajar outros na sociedade, mas para o seu próprio bem. Aqui o
objetivo do castigo é fazer Josh se tornar uma pessoa melhor, de modo que ele
não cometa novamente esse crime”.[3] É por
essa razão que o ECA preconiza a aplicação de medidas socioeducativas aos
“menores infratores” o que, ao menos na teoria, deveria ser realizado pelas
instituições de internamento de menores. A ideia é que a educação é a chave
para o aprimoramento do “ser social” em construção, a saber, o adolescente.
Isso também explica a massificação do slogan #ReduçãoNãoÉSolução.
Quando nos voltamos para
as Escrituras, a fim de observar de que maneira ela lida com o ideal de reforma
através da aplicação de punições, é possível perceber que ela limita tal
motivação à disciplina eclesiástica e ao castigo dos nossos filhos. No primeiro
caso, encontramos o apóstolo Paulo ordenando o seguinte à igreja de Corinto: “Eu, na verdade, ainda que ausente
em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor
de tal infâmia
seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso
Senhor, entregue a Satanás para a destruição da carne, a
fim de que o espírito
seja salvo no Dia do Senhor Jesus” (1Coríntios
5.3-5). O propósito de Paulo é que, como resultado dessa disciplina, o
praticante do incesto seja salvo, de modo que ele não venha a sofrer dano
maior, ou seja, o castigo eterno. Assim, a motivação por trás da aplicação
dessa punição específica é a reforma do pecador. No segundo caso – o castigo
dos nossos filhos –, está escrito em Provérbios 22.15: “A estultícia
está ligada ao coração
da criança, mas a vara da disciplina a afastará dela”. O pastor
presbiteriano escocês James Bannerman disse o seguinte: “A disciplina, em todas
as suas aplicações, fora da sentença de excomunhão, deve ser considerada, com
respeito ao ofensor, como terapêutica, em vez de punitiva – um meio de
promover, através de cuidados especiais doloridos e rigorosos, não a
destruição, mas a edificação do ofensor”.[4] Não há,
todavia, nenhuma passagem na Bíblia que sugira que a reforma deve ser a
motivação ou o fim pretendido quando da aplicação de punições a criminosos.
Uma melhor motivação para
a aplicação de punições é a do desencorajamento.
Esta motivação também pode ser denominada dissuasão.
Aqui a sociedade, por meio do Estado, pune um criminoso com o objetivo de
desencorajar os demais cidadãos. A punição serve, então, como uma lição para o
restante da sociedade. Assim se expressa Frame a respeito do desencorajamento:
“Punimos ladrões com a esperança de dissuadir outros de roubar. Fazemos o mesmo
quanto a assassinos, sonegadores de impostos e caluniadores”.[5] Em
Deuteronômio 13 está escrito que, caso um israelita adore outros deuses, ele
deve ser apedrejado até a morte (vv. 6-10). O versículo 11 apresenta o
propósito do desencorajamento: “E todo o
Israel ouvirá e temerá, e não se tornará a praticar maldade como esta no meio
de ti”. Quando consideramos a disciplina eclesiástica podemos perceber que
ela também possui o propósito de dissuadir os demais membros de uma igreja
local de cometerem o mesmo pecado daquele que está sendo apenado. Assim, uma
igreja precisa ser fiel na administração da disciplina eclesiástica, dentre
outras razões, para que outras pessoas sejam desencorajadas a pecar contra o
Senhor.
Uma crítica corretamente
feita ao motivo do desencorajamento é que é possível cometer abusos na
aplicação de uma punição e, assim, torná-la injusta. John Frame diz o seguinte:
“Se a restrição é a única consideração, pode-se justificar o castigo de pessoas
inocentes pelo seu valor como dissuasão”.[6] Outro
fator que deve ser levado em consideração, dessa vez tanto em relação ao
desencorajamento quanto à reforma, é que ambos os motivos estão sujeitos aos
caprichos dos penalogistas. Mais uma vez John Frame é de grande auxílio aqui:
Se um
penalogista visa primariamente ao desencorajamento, ele tenderá a tornar o
castigo o mais duro possível, para maximizar seu efeito no público em geral.
Se, por outro lado, ele favorece a reforma, ele provavelmente planejará
castigos mais brandos; talvez um regime de punição e incentivo que não apenas
restrinja o mau comportamento, mas também incentive o bom.[7]
Para citar apenas um
exemplo envolvendo punições que visam reformar o criminoso, basta lembrar dos
jovens Liana Friendenbach e Felipe Caffé, que foram brutalmente assassinados
por um adolescente conhecido como “Champinha”. Não há como chegar à conclusão
de que justiça foi feita no exemplo em questão. O que pode ser percebido aqui,
é que nem o desencorajamento nem a reforma são elementos motivadores adequados
para discutir a punição de crimes em geral e, de modo específico, o modo como
adolescentes que cometem crimes devem ser punidos.
Dito isso, quando se
observa atentamente os princípios absolutos estabelecidos pela Palavra de Deus
o elemento da retribuição aparece
como a motivação mais adequada e justa quando da consideração da aplicação de
castigos. Quando se considera a retribuição como ensinada pela Bíblia é
possível chegar á conclusão de que defender que menores de 18 anos sejam
devidamente punidos de acordo com os crimes cometidos está em plena harmonia
com a cosmovisão cristã.
A retribuição estabelece o
princípio de que um homem deve ser punido simplesmente porque ele merece. No
caso, um adolescente que comete um crime hediondo deve ser punido de acordo com
a gravidade do seu crime. Isso está
solidamente fundamentado na lei de Deus no Antigo Testamento: “Mas, se houver dano grave, então,
darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé,
queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe” (Êxodo 21.23-25);
“Se alguém
causar defeito em seu próximo,
como ele fez, assim lhe será feito: fratura por fratura, olho por
olho, dente por dente;
como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará. Quem matar um animal restituirá
outro; quem matar um
homem será morto”
(Levítico 24.19-21).
Duas observações que
precisam ser feitas a respeito das passagens citadas acima são:
1. A
chamada lei do talião expressa nos textos de Êxodo e de Levítico não têm o
propósito de ensinar que aquele que sofre algum mal tem o direito de se
vingar do ofensor ou criminoso. Hoje em dia é comum citar o “olho por
olho, dente por dente” como sendo uma espécie de refrão justificador da
vingança ou relatiação. Muito pelo contrário, o que está enfatizado aqui é
o princípio da justa retribuição ou da punição isonômica. Deus não está
autorizando a vingança. Ele estava controlando “os excessos”. A vingança é
proibida ao ofensor, por exemplo, em Romanos 12.17-19: “Não torneis a ninguém mal por mal;
esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quanto
depender de vós, tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós
mesmos, amados, mas daí lugar à ira; porque está escrito: A mim me
pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor” E mais do que
isso, Deus também estava estabelecendo o princípio de que uma punição não
pode ser muito indulgente[8],
ou seja, ela não pode ser exageradamente fraca. Como exemplo disso, Deus
não aprova que um assassino serial (Serial Killer) cumpra míseros 30 anos
de pena. Trata-se de uma pena muito fraca ou muito indulgente. O
mandamento “olho por olho, dente por
dente” ensina a equidade e a justiça na aplicação da pena. Por
conseguinte, se um homem chegasse a cegar alguém, ele não deveria se morto
por isso. Antes, seria “olho por
olho”. Se ele viesse a arrancar um dente de outra pessoa, como pena,
deveria perder um de seus dentes. O castigo era sempre equivalente à
ofensa, sem jamais excedê-la, ou mesmo sem jamais ficar aquém do delito
cometido. Era sempre igual. Nem mais, nem menos.
2. O
princípio da retribuição não pode ser descartado de maneira apressada sob
a alegação de que o mesmo faz parte da lei do Antigo Testamento, não tendo
mais nenhuma relação com a nossa época. O princípio da retribuição é
ensinado nas Sagradas Escrituras desde o início, logo no Gênesis: “Se alguém derramar o sangue
do homem, pelo homem se derramará o seu;
porque Deus fez o homem segundo a sua imagem”
(9.6).[9]
Verifica-se, pois, que a retribuição é contemplada pelo Senhor antes da
outorga da lei por intermédio de Moisés.
Como destacado por John
Frame, assumimos a validade e a necessidade da retribuição na aplicação de
punição a criminosos porque “assumimos que há uma ordem moral objetiva no
universo” e que, de acordo com ela, um homem – não importa quem ele seja, qual
a sua situação econômica e social, sua cor da pele ou mesmo a sua idade –
precisa ser punido quando comete um crime.[10] Frame
afirma ainda que, “obviamente, numa cosmovisão cristã, a fonte dessa ordem
moral objetiva é o Deus trino. À parte dele, não há base para essa ordem moral
ou qualquer outra”.[11] No caso
de Gênesis 9.6, por qual razão a punição precisa ser a morte? Porque uma vida
foi tirada e esta vida fora feita segundo a imagem de Deus.
É interessante que o referencial teórico dos cristãos
progreesistas/esquerdistas contrários à redução da menoridade penal não é a
Escritura. Pelo contrário, o fundamento epistemológico de tais cristãos pode
ser encontrado no ECA, em Michel Foucault, em Émile Durkheim e na Psicologia
Comportamental. A Palavra de Deus sequer é mencionada. Não há uma única
passagem citada. Quando muito, apela-se para generalizações retóricas que falam
do amor de Jesus que restaura e reforma o pecador.
Uma Palavra Final
A defesa da redução da menoridade penal não pode ser identificada como um
estímulo à barbárie, como desonesta e comumente é feito por pessoas
ideologicamente comprometidas com a esquerda. A barbárie seria estimulada se,
conjuntamente, houvesse a defesa da ideia de que cada cidadão tem o direito de
fazer justiça com as suas próprias mãos. Não é esse caso! Como já foi afirmado
aqui, as passagens bíblicas que tratam da retribuição têm justamente o objetivo
de impedir que os ofendidos e as vítimas tomem vingança contra os ofensores e
os criminosos. A administração das punições não foi entregue a indivíduos. Deus
entregou
a execução dos castigos aos magistrados, aos líderes do povo, os juízes, os
príncipes. Em outras palavras, a execução dos castigos pertence ao Estado.
Consideremos Deuteronômio 19.21, outra passagem que apresenta a lei do talião: “Não o olharás com piedade: vida por vida,
olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”. Os versículos 17 e
18 mostram que os juízes, não as vítimas, eram os responsáveis pela execução da
pena: “então, os dois homens que tiverem
a demanda se apresentarão perante o SENHOR, diante dos sacerdotes e dos juízes
que houver naqueles dias. Os juízes indagarão bem; se a testemunha for falsa e
tiver testemunhado falsamente contra seu irmão”. A lei é executada pelos
magistrados, por aqueles que foram encarregados por Deus de zelar pela lei e
pela ordem entre os indivíduos.
Isso está em pleno acordo com o papel do Estado e das autoridades conforme
exposto pelo apóstolo Paulo, em Romanos 13.3-4: “Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim
quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás o
louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem.
Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a
espada; pois é ministro
de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal”.
A função do Estado, conforme apontada por Paulo, não é colocar menores que cometeram
crimes sob o regime de internação para o cumprimento de medidas
socioeducativas. Antes, o Estado deve proteger os bons cidadãos e punir,
castigar aqueles que fazem o mal, independentemente da idade.
Poderia ser argumentado
que, uma vez que a visão de mundo bíblica deve direcionar o pensamento do
cristão a respeito de todas as áreas da vida humana e, mais especificamente, a
ética bíblica deve conduzir a discussão a respeito da imputabilidade dos
adolescentes que cometem crimes, então, uma vez que o sistema prisional é algo
estranho ao Antigo Testamento sendo antes, uma invenção de outras nações, a
prisão não é a punição que deve ser dispensada aos menores de idade que cometem
crimes. A grande questão é que este texto não pleiteia pela prisão desses adolescentes, muito
embora a penalogia brasileira se utilize apenas dela e, portanto, em nossa
cultura punir criminosos equivale a enclausurá-los. Este texto tem o objetivo
único de mostrar que a ideia existente de que medidas socioeducativas são o
tratamento adequado para os “menores infratores” é completamente antibíblica. E
mais, este texto pleiteia que se atente para o princípio da isonomia entre
crime praticado e punição conforme ensinado pelas Sagradas Escrituras. As
chamadas medidas socioeducativas jamais estabelecerão a verdadeira justiça.
SOLI DEO GLORIA!
[1]
John M. Frame. A Doutrina da Vida
Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. p. 660.
[2] Ibid. pp. 661-664.
[3] Ibid. p. 661.
[4] James Bannerman. A Igreja de Cristo: Um Tratado sobre a
Natureza, Poderes, Ordenanças, Disciplina e Governo da Igreja Cristã.
Recife, PE: Os Puritanos, 2014. pp. 661-662.
[5]
John M. Frame. A Doutrina da Vida
Cristã. p. 661.
[6] Ibid. p. 663.
[7] Ibid.
[8] Vincent Cheung. The Sermon on the Mount. Boston, MA: Reformation Ministries
International, 2004. p. 90.
[9]
Gênesis 9.6 ensina, em primeiro lugar, a validade da pena capital mostrando que
a mesma também não é um produto do tempo em que Israel era uma teocracia.
Todavia, a discussão acerca da pena capital será deixada para outra ocasião.
[10]
John M. Frame. A Doutrina da Vida
Cristã. p. 662.
[11]
Ibid. pp. 662-663.