Por Thiago Oliveira
INTRODUÇÃO
A carta de Paulo aos Romanos é um tesouro teológico que precisa ser mais lido, estudado e entendido pelos crentes em Cristo Jesus. Homens do passado, tais como Agostinho, Lutero e Calvino, ao se debruçarem nesta carta tiveram suas mentes transformadas e passaram a compreender o Evangelho tal como é: A revelação de um Deus soberano que nos trata pela via da graça e não pela via do mérito.
Estudaremos o capítulo 4 de Romanos, pois trata de um tema central da fé cristã, a saber: Justificação. Mas antes, precisamos recapitular toda a linha traçada pelo apóstolo Paulo até chegar à sua tese-mor de que somos justificados pela fé.
Após fazer a apresentação da sua pessoa, e fornecer o propósito de sua carta, Paulo vai iniciar a sua exposição doutrinária afirmando que as pessoas sem Lei são culpadas diante de Deus (1.18-2.16). Em seguida, o apóstolo afirma que os possuidores da Lei também são culpados (2.17-3.8). Enfim, o mundo inteiro é culpado diante de Deus (3. 9-20). A culpa é proveniente do pecado: “todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (3.23).
Ao falar sobre a natureza culpada do ser humano, que o torna réu no Tribunal de Deus, Paulo está introduzindo a boa nova. O Evangelho para ser bem compreendido precisa partir desse ponto. O que se segue na explanação paulina é que Deus não nos retribuirá segundo os nossos pecados, pois em Cristo, através da morte na cruz, nós fomos justificados, isto quer dizer que nossos pecados não mais serão levados em conta, foi Cristo quem pagou por eles com seu sangue. Eis a boa notícia que leva o nome de Evangelho. Então, não é preciso fazer nada na tentativa de aplacarmos a ira de Deus. Jesus já fez tudo por nós, sua obra é completa e já foi consumada. Basta crer somente n’Ele.
A fé nos justifica e não nossas obras, pois somos incapazes de guardar a Lei de Deus. Jesus foi aquele que não pecou e se deu por sacrifício em nosso favor. Nossos pecados foram remidos pelo sangue de Cristo. Judeus e gentios, ambos declarados justos graças aos méritos do Salvador. Certo? Certo; é isso que Paulo ensina claramente (3.21-30). Mas, e antes de Jesus Cristo? Como que os eleitos eram justificados no Antigo Testamento (AT)? Não é correto dizer que no Novo Testamento (NT) a justificação é pela fé, mas que no AT o que justificava era a Lei?
Muitos são os que fazem essa separação entre Lei e Graça nos dois testamentos. Isso é um erro. A Bíblia é uma unidade. Desde o começo os homens são justificados pela fé e não pelas obras. E isso, ao contrário do que muitos pensam, não anula a Lei, muito pelo contrário, a confirma.
Muitos são os que fazem essa separação entre Lei e Graça nos dois testamentos. Isso é um erro. A Bíblia é uma unidade. Desde o começo os homens são justificados pela fé e não pelas obras. E isso, ao contrário do que muitos pensam, não anula a Lei, muito pelo contrário, a confirma.
A LEI CUMPRE O SEU PAPEL
Antes de abordarmos o capítulo 4, precisamos focar no último versículo do capítulo 3. Paulo vai dizer que a justificação é uma doutrina que confirma a Lei. A fé não torna nulos os mandamentos do SENHOR. O apóstolo aqui se adianta respondendo a uma possível objeção e usará o exemplo de Abraão para corroborar com o seu ensinamento.
O que precisa ficar claro é que o papel da Lei era o de demonstrar que Deus é santo (Lv 11.44), e por isso nos deu um padrão moral elevado para sermos santos como Ele é. Mas também, ela nos mostra nossos pecados e a nossa incapacidade de alcançar este padrão observando os mandamentos. Sempre falhamos ao tentar cumprir a Lei à risca. Não podemos justificar a nós mesmos guardando a Lei. Há sempre um tropeço aqui e um escorregão acolá. Daí alguém pergunta: Porque Deus nos dá a Lei sabendo que somos incapazes de cumpri-la? A resposta é: Para que no momento em que nós reconhecermos que não somos capazes, clamemos por Sua graça e busquemos n’Ele o refúgio.
Em Gálatas 3.24 é dito que a Lei nos serviu na condução até Cristo. Ele sim cumpriu todas as exigências da legislação divina: Morto sem pecado, justo por seus méritos, estendendo aos que depositam fé n’Ele a sua justiça. Somos justos diante de Deus graciosamente pela obra realizada por Jesus. Se pela obra de Adão os homens foram encerrados debaixo do pecado. Pela obra de Cristo, o segundo Adão, a dívida do pecado foi cancelada (Rm 5.15-19). Isto é pactual. No mesmo dia em que o primeiro casal pecou, Deus já havia prometido Cristo (Gn 3.15) e dito que este derrotaria a Satanás.
O EXEMPLO DE ABRAÃO
Abraão é o patriarca hebreu. Uma das figuras mais veneradas, ao lado de Moisés e Davi, pelos judeus, que o chamam de pai. Paulo usa a figura de Abraão de maneira sábia e proposital. Ele começa a questionar se o patriarca foi justificado por ter feito algo ou foi justificado pela fé somente. Alega que Abraão teria do que se orgulhar, caso sua justiça fosse alguma coisa que tivesse partido dele. Todavia, a Escritura diz (Gn 15.6) que o que tornou Abraão justo foi ter crido em Deus (4.1-3).
Se Abraão ou qualquer um de nós tivesse feito algo que nos tornasse justos diante de um Deus que é absolutamente santo, isso seria um feito e tanto. Poderíamos nos orgulhar disso. Mas a doutrina cristã esmaga o nosso orgulho dizendo que diante do Soberano nos apresentaremos com as mãos vazias. Se fosse por mérito não seria graça, seria o recebimento de um pagamento (4.4). Contudo, sabemos muito bem que somos pecadores e o salário do pecado é a morte. A vida eterna é dom gratuito de Deus (6.23).
O que nos justifica é crer na obra de Cristo e não em nosso esforço próprio (4.5). Ser declarado justo diante do SENHOR é ser aceito e tratado como se nunca houvéssemos pecado. Davi entendeu isso muito bem (4.6-8). Paulo cita os dois primeiros versículos do Salmo 32. A expressão no original grego é incisiva: sob hipótese alguma Deus imputará o pecado. Isto é ser abençoado. Isto é ser justificado. Isto é Graça.
Tudo isso se dá mediante a fé, que é dom de Deus (Ef 2.8). Esta fé não significa que Abraão creu na existência de Deus. É a fé na Sua promessa. Deus havia dito que ele seria pai de uma nação e que a partir de sua posteridade seriam benditas todas as famílias da terra. A fé bíblica não é algo irracional, ela está pautada na revelação de um Deus-Criador pessoal que se comunica com as suas criaturas. Mesmo que Abraão e os personagens do AT não tivessem um conhecimento exaustivo sobre a pessoa de Cristo, Ele já havia sido revelado desde Gênesis 3.15. É dessa forma que Paulo inicia a carta aos Romanos. Ele diz que Jesus já havia sido prometido pelos profetas e registrado nas Escrituras (1. 2-5). O escritor aos Hebreus nos diz a mesma coisa (Hb 1.1). A Bíblia é una. O AT e o NT comunicam a mesma mensagem que culmina e glorifica a Cristo.
Quando Moisés recebe a Lei e a repassa para o povo de Israel, Deus ordena que se faça um altar. Ali seriam realizados os sacrifícios de animais. O sangue daquelas ovelhas e bois fazia expiação por um povo que seria incapaz de cumprir toda a Lei. O interessante é que Deus exige que o altar não seja feito com pedras lavradas, e sim com pedras brutas (Ex 20.25). Isto é, o local do sacrifício não contaria com nenhum tipo de trabalho. A expiação não está associada ao esforço humano. Quando Deus faz uma aliança com Israel e o povo diz que seguirá os Seus mandamentos, o sangue de animais foi aspergido sobre eles (EX 24.7-8).
A base da religião judaica não era o legalismo. A expiação, isto é, um sacrifício substitutivo, que era o seu cerne religioso.
Obviamente que isto nos remete a cruz do calvário, local onde o Filho de Deus recebeu a punição pelos pecados dos homens por Deus escolhidos. O propiciatório, a tampa da arca onde o sangue do animal era aspergido, ficava por cima das tábuas da Lei. O sangue da expiação cobria os mandamentos. Era bem ali o local do encontro de Deus com o seu povo (Ex 25.17-22).
A UNIVERSALIDADE DA FÉ
Dos versos 9 ao 12, Paulo vai derrubar a prepotência judaica do exclusivismo étnico. Os judeus achavam que eles e apenas eles eram o povo da aliança. Orgulhavam-se do selo da circuncisão. Mas Paulo, usando a Escritura demonstra que a justificação do patriarca aconteceu muito antes dele ter sido circuncidado. Abraão não foi declarado justo e no dia seguinte cortou o seu prepúcio. Não! Existe aí um intervalo de aproximadamente duas décadas. Ele creu antes de ser circuncidado. Ele creu cerca de quinhentos anos ates da Lei ser dada a Moisés. Em suma, não existiam judeus quando Abraão foi justificado pela fé.
Portanto, são filhos de Abraão aqueles que tem fé na revelação divina. Quem acredita no relato bíblico de que os homens pecaram e precisam se achegar até Cristo para obter perdão são filhos e filhas daquele que por sangue é patriarca dos judeus. Todavia, a paternidade abraâmica que conta é a espiritual. Paulo trabalha o mesmo argumento em outra epístola: “e, se sois de Cristo, então sois descendentes de Abraão e herdeiros conforme a promessa” (Gl 3.29).
Nenhum povo, nem mesmo os judeus, podem reclamar para si uma exclusividade pactual. Também não podemos afirmar que os judeus estão fora do plano da salvação. Todo o que crê, seja judeu ou gentio, terá a sua parte da herança. A grande questão é que independente da nacionalidade, a primeira coisa a se fazer é reconhecer que ser achado entre os eleitos do SENHOR é um favor imerecido. Necessário é ter noção de que nos encontrávamos numa situação de condenação merecida e se não fosse a graça salvadora de Cristo, nunca que iríamos conseguir adentrar no Reino Celestial. Quem assim procede, sendo de qualquer grupo étnico, é filho legítimo de Abraão.
FÉ NA VIVIFICAÇÃO
Neste ponto de sua explanação, Paulo passa a repetir alguns de seus argumentos. Este é um recurso didático comum entre os rabinos no primeiro século. Os versículos 13 e 14 muito se assemelham a argumentação dos três primeiros versículos do capítulo 4. A ideia central é a de que se a justificação de Abraão foi por seus próprios méritos, Deus estaria devendo isso a ele, o que não é o caso. Deus não deve nada a ninguém, até porque ninguém consegue cumprir todo o escopo da Lei. A Lei traz o castigo e não a justificação (4.15). E onde não existe Lei, não existe transgressão.
É preciso tomar cuidado com o versículo 15. Uma leitura equivocada nos leva a pensar que antes dos mandamentos serem comunicados a Moisés todos eram inocentes. Nos dois capítulos iniciais da carta Paulo alega que os que não possuem a Lei estão condenados porque serão julgados de outra maneira. Todos nascem com a lei moral, isto é, o conceito de certo e errado, gravado em seus corações. Mesmo assim, os homens ferem o que sabem ser errado (por exemplo: em toda e qualquer nação da história roubar e matar foram e são consideradas infrações morais e em todas elas há assassinos e ladrões) e por isso não são tidos por inocentes.
Já a Lei específica revelada nas Escrituras acentua a condenação, pois está bem mais claro o que Deus requer de nós. Ela nos lega o reconhecimento da nossa natureza pecaminosa (3.20). Por isso precisamos ir correndo até Jesus Cristo clamando por Graça em sinal de arrependimento. Não há outro meio. Ou é Cristo ou estamos condenados.
Os versículos 16 e 17 reiteram que os que são da fé são filhos de Abraão. Mas que fé seria essa? Uma fé cega em qualquer coisa? Fé por fé? Não. Paulo explica que Abraão creu contra toda a esperança que Deus vivifica os mortos (4. 18-22). Quando Deus disse que ele teria um filho, seu corpo já estava morto para a procriação. De igual modo Sara não poderia ter mais filhos por conta de sua avançada idade. São dois bons motivos para desacreditar numa gravidez naquela altura da vida. Todavia, Abraão creu. Sua fé era a de que seus membros mortos seriam vivificados. Ele acreditou que seria possível engravidar a sua esposa, pois cria na capacidade divina de chamar à existência aquilo que ainda não existia.
Seria tal fé restrita a Abraão? Certamente que não. Todos os que acreditam no Deus que ressuscitou Jesus Cristo, dando vida ao que havia sido morto na cruz, tem a mesma fé do patriarca (4.23-25). Fé no poder vivificador de Deus. Então, todo aquele que professa o credo dos apóstolos que diz: “Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu unigênito Filho, nosso Senhor; o qual foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria; padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu ao hades; ao terceiro dia ressurgiu dos mortos; subiu ao céu e está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso; donde há de vir para julgar os vivos e os mortos”. É justificado diante de Deus.
CONCLUSÃO
Acabamos de estudar uma das mais lindas doutrinas cristãs. Só que determinados ramos da teologia vem tripudiando o conceito da justificação quando colocam o homem como cooperador de Deus no plano da salvação. Há um termo técnico para isso: sinergismo (trabalho em conjunto). Porém, se formos fieis observadores do ensino bíblico. Tratando a Escritura como uma unidade e não rivalizando texto com texto, veremos que a salvação é monergista (trabalho de um só).
Não há outra forma de ser ortodoxo se não atribuirmos exclusivamente a Deus todas as etapas do plano da salvação: eleição, justificação, adoção, santificação e glorificação. Este é o ensinamento bíblico que dá glórias somente ao SENHOR.
“Porque d’Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas. Glória, pois, a Ele eternamente. Amém”.
Romanos 11.36