Creio que o nosso medo de
um auto exame obsessivo, manteve muitos de nós de círculos reformados afastados
de um autoexame bíblico honesto. O que eu quero dizer com autoexame bíblico é
uma obediência simples a tais passagens como 2 Co 13.5: "Examinai-vos a
vós mesmos se realmente estais na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não
reconheceis que Jesus Cristo está em vós? Se não é que já estais
reprovados". Obediência à exortação de II Pedro 1.10: "Procurai com
diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquanto,
procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum". Outras passagens
semelhantes podem ser encontradas pelo Novo testamento afora – "Não vos
enganeis; não vos deixeis enganar; não se enganem". Eu falo da prática
dessa obrigação bíblica.
Fica óbvio, portanto, como
isso se encaixa na implicação do conceito calvinista de Salvação. Visto que as
Escrituras declaram que todos aqueles que são verdadeiramente salvos são
feitura de Deus (Ef. 2;10), então a pergunta que eu tenho de fazer é: "Será
que eu fui o sujeito desta feitura?" A pergunta não diz respeito à
sinceridade da minha decisão, ou da minha resolução, ou seja lá o que for que
eu queira chamá-la. A pergunta não é: "O que é que eu fiz com relação a
Cristo e a Sua salvação?" A pergunta essencial é a seguinte: "Fez
Deus algo em mim?". A interrogação não deve ser, "Eu aceitei a
Cristo?", mas sim, "Cristo aceitou-me?". A questão não é,
"Encontrei ao Senhor?", mas antes, "Ele me achou?".
Um dos anciãos mestres em
Israel costumava fazer duas perguntas àqueles que almejavam ser admitidos à
Santa Ceia do Senhor, ou ao rol de membros da igreja. Primeiro: "O que fez
Cristo por você?" Ele queria ver se eles entendiam a base objetiva sobre a
qual Deus recebe pecadores. Ele queria ver se eles haviam entendido que os
homens são aceitos perante Deus com base na obra de Jesus Cristo e mais nada.
E, se ficasse claro para ele que eles não pensavam de nenhuma forma diferente,
que eram aceitos por suas virtudes, pelo seu arrependimento, suas lágrimas, suas
obras, porém somente com base nos méritos de Cristo, então ele lhes fazia a
segunda pergunta: "O que é que Cristo operou em você?" Você sabe o
que Ele fez por você, agora a minha pergunta é, o que Ele operou em você? Ele
fazia esta pergunta porque entendia a existência da terrível possibilidade de
uma pessoa vir a ter uma compreensão intelectual do que Cristo fez pelos
pecadores, e ainda assim ser totalmente estranho à obra poderosa que Ele
realizou nos pecadores.
Eu gostaria de propor
algumas perguntas para que cada um avalie sua própria consciência.
Primeiro: "Você foi
trazido ao ponto de enxergar sua própria corrupção no pecado, de modo que as
primeiras duas bem-aventuranças são verdades para você?". As únicas
pessoas no mundo que são verdadeiramente abençoadas são aquelas que foram
trabalhadas pelo Espírito, de forma que essas proposições não lhe são mais
estranhas: "Bem-aventurados são os pobres de espírito, pois deles é o
reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados".
Como é que Deus faz os homens serem verdadeiramente bem-aventurados,
verdadeiramente felizes? Em primeiro lugar, Ele faz com que eles sintam
tristeza ao terem um senso de seu próprio empobrecimento num estado de pecado.
O que é pobreza de espírito? Seria algum tipo de tentativa pseudo-pietista de
convencer a mim mesmo que eu sou um verme miserável e um trapo? De jeito
nenhum! Pobreza de espírito é o resultado de apenas ter tido um vislumbre
daquilo que você realmente é, e ver que você não é nada e não tem nada e não
pode fazer nada, só isso pode recomendá-lo à graça e ao poder salvador de Deus;
é o resultado da convicção de que Ele poderia fazer de você um monumento eterno
da Sua ira justa, e deixar você perecer no fogo eterno. Você foi trazido a um
conhecimento experimental disso? Se não foi, eu duvido que você afirme ser
Cristo o seu Salvador, pois Ele disse que não veio para chamar o justo, mas sim
pecadores ao arrependimento. Os pobres de espírito foram feitos conscientes de
sua depravação e pecado.
É possível ter a doutrina
da depravação total como um conceito teológico, e continuar sendo tão mau,
orgulhoso e auto-justificado quanto o diabo. Você já experimentou um
despojamento interior que o levou à pobreza de espírito? Foi levado a um
lamento santo? A um reconhecimento de que o seu pecado é contra o Deus
soberano? Você já foi trazido ao ponto em que você odeia tanto o seu pecado a
ponto de largá-lo e juntar-se a Cristo? Um antigo escritor colocou essa questão
de uma forma muito bela: "Quando o espírito Santo inicia o acorde da graça
na vida de um homem, ele sempre orienta aquele acorde para a nota mais
baixa". Ele começa com a nota mais baixa da convicção, a revelação da
nossa necessidade do Salvador. Será que eu já enxerguei que, a menos que Ele
inicie a obra, ela jamais será feita?
A próxima pergunta que eu
faria é a seguinte: "Eu dou evidência do fruto da Sua obra?". E qual
seria a evidência positiva e inegável de que Deus tem trabalhado em mim? Eu
diria sem medo algum de contradição, à luz das Santas Escrituras, que essa
evidência é santidade bíblica. O que conhecemos como os Cinco Pontos do
Calvinismo estão revestidos de uma forma negativa e podem ser enganosos de uma
certa maneira. No entanto, nós não podemos mudar o curso da história, e assim
os Cinco Pontos do Calvinismo chegaram a nós e temos que aprender a conviver
com eles. Tome como exemplo os quatro últimos pontos — eleição incondicional,
expiação limitada, chamada eficaz de Deus e a perseverança dos santos, de todos
aqueles que Ele chamou para se unirem ao Seu Filho: Qual é o ponto focal de
todos eles? Em última análise, o ponto focal de todos eles, evidentemente, é a
demonstração da glória de Deus, da graça de Deus sobre a qual lemos em Efésios
1; mas olhando o foco imediato, como é que essa glória é demonstrada? Por quais
meios? Quando Deus toma criaturas totalmente depravadas e faz delas homens e
mulheres santas em cujas pessoas se pode ver a exata semelhança do Filho de
Deus, qual é o alvo da eleição? Efésios 1:4 nos diz: "assim como nos escolheu,
nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante
ele". Ele nos elegeu para que nos gloriássemos em nossa eleição? Não!
Antes "... devemos ser santos e irrepreensíveis perante Ele". É uma
eleição para santidade! Qual é o alvo da obra redentora de Cristo? Ouça o
testemunho de Tito 2:14: "o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de
remir-nos de toda iniqüidade e purificar para si mesmo, um povo exclusivamente
seu, zeloso de boas obras". Ele morreu para ter um povo santo "zeloso
de boas obras".
Isso também ocorre com a
chamada eficaz de Deus, "Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à comunhão
de Seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor" (I Cor. 1:9). "Chamados a
uma vida de compartilhar uma comunhão viva e real com Cristo!" "Porquanto
Deus não nos chamou para impureza e sim para santificação" (I Tess.4.7).
E ainda há a preservação e
perseverança dos santos. É uma perseverança nos caminhos da santidade e
obediência, pois as Escrituras dizem: "Segui a paz com todos e a
santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" (Heb.12.14). "Se vós
permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; e
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (João 8:31,32). Assim,
onde quer que toquemos qualquer parte da estrutura da sotereologia calvinista,
tocamos na veia viva do propósito de Deus de ter um povo santo.
Predestinados para qual
fim? "Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para
serem conformes à imagem de seu filho" (Romanos 8:29). Se é assim, então
eu tenho que fazer uma pergunta sobre mim mesmo: o propósito eletivo de Deus
está sendo realizado em mim? Ele me escolheu em Cristo a fim de que, tendo sido
comprado no tempo e chamado no tempo, possa começar a ser santo no tempo, e ter
esta obra aperfeiçoada na eternidade. A única certeza que eu tenho de que fui
comprado para ser santo, e serei aperfeiçoado em santidade, é que eu esteja
buscando a santidade, e a esteja buscando aqui e agora. Em essência, santidade
é conformidade à vontade revelada de Deus em pensamento, palavra e ação, pelo
poder do Espírito Santo e através da união com Jesus Cristo. Santidade,
piedade, estas são as evidências de que o Seu propósito eletivo veio a existir
e a frutificar e se expressa na obediência. É por isso que João pode dizer em I
João 2:5: "Aquele, entretanto, que guarda a Sua Palavra, nele,
verdadeiramente tem sido aperfeiçoado o amor de Deus". O propósito para o
qual as pessoas foram designadas é preenchido naquelas que guardam a Palavra de
Deus. Existe clara evidência de que estou experimentando comunhão com Jesus
Cristo através da Sua Palavra? Porque Ele me chamou à comunhão com Ele, e se eu
fui chamado eficazmente então já não sou estranho a um conhecimento
experimental do Senhor.
Eu confesso que estou
sendo preservado pelo poder mantenedor de Deus? Então a Sua preservação deve
transparecer na minha perseverança. É a única prova que eu tenho de que ele me
preserva e que por Sua graça eu sou capacitado a perseverar.
Esta é a implicação
prática da sotereologia calvinista. Ela coloca perguntas tais que me trazem ao
contexto inteiro de um honesto auto-exame baseado na Palavra. John Bunyan não
poderia estar mais certo quando escreveu aquela parte na sua obra imortal, O
Peregrino, onde descreve como Cristão e Fiel entram em contato com um homem
chamado Tagarela (Loquaz).1 Eu faço um apelo intenso para que leiam
cuidadosamente aquele diálogo. Ele mostra o reconhecimento que Bunyan possuía
sobre a existência da convicção intelectual de que somente Deus pode salvar
pecadores, e que a salvação é uma obra em que Deus salva pecadores, mas a
questão real é a seguinte: Será que houve uma aplicação experimental dessa
verdade, com poder, ao meu próprio coração e à minha própria vida?
Há mais ou menos um ano,
um jovem formando de um Seminário veio conversar comigo sobre algumas questões
que o estavam perturbando a respeito do meu próprio ministério. Ele me fez a
seguinte pergunta: "Sr. Martin, eu quero lhe fazer uma pergunta simples. O
Sr. crê que tem um chamado para viajar ao redor do país transtornando as
pessoas?" Eu respondi: "O meu chamado não é para sair pelo país afora
transtornando as pessoas, todavia eu sou chamado a declarar todo conselho de
Deus; um aspecto a ser considerado é o princípio de que não é impossível ter forma
de piedade no uso das palavras corretas e ainda assim se estar perdido e
arruinado e ser um estranho à graça; pois a Escritura diz: 'Porque o reino de
Deus não consiste de palavras, mas de poder'. Paulo disse: 'O nosso Evangelho
não foi pregado em palavra somente, mas em poder e no Espírito Santo e com
muita ousadia'. Enquanto Mateus 7:21-23 estiver nas Sagradas Escrituras, e
enquanto eu tiver voz, eu continuarei a proclamar aos ministros e aos ministros
em potencial, e a cristãos professos que muitos dirão naquele dia 'Senhor,
Senhor', aos quais Cristo dirá, 'Apartai-vos de mim. Nunca vos conheci'".
Eu jamais vou querer ser
um instrumento inconsciente do diabo a fim de desestabilizar a fé de um
verdadeiro filho de Deus, que pode ser como os seguintes personagens de Bunyan:
o Sr. Prestes a Tropeçar, o Sr. Timidez, ou o Sr. Consciência Fraca [1] – homens
que têm problemas com a certeza da salvação e que estão em dúvida e têm
falhado. Eu jamais gostaria de ser um acusador de irmãos, para destruir ou
ferir a fé de um verdadeiro cristão. Mas eu também não seria um cachorro mudo,
que se cala sobre a questão de que não basta se ter herdado uma forma de
doutrina, seja ela calvinista ou arminiana. A questão é a seguinte: Se a
salvação vem do Senhor, será que Ele começou uma obra em mim? Eu afirmo que
estas doutrinas aplicadas ao coração levarão a um autoexame bíblico, honesto.
[1] O Peregrino - John Bunyan.
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Transcrito do Livro "As Implicações Práticas do Calvinismo"; Editora Os Puritanos.