Por James I. Good
Uma das figuras femininas mais importantes da Reforma Protestante do Século XVI foi, sem dúvida, Katharina Von Bora. Não que ela tenha praticado qualquer grande ato heróico, se envolvido pessoalmente em grandes controvérsias ou sido martirizada em virtude da sua fé. No dizer de um de seus biógrafos: “ela não escreveu nenhum livro nem jamais pregou um único sermão, mas seu inestimável auxílio possibilitou que seu marido fizesse tudo isso como poucos na história da igreja.” Estamos falando da Sra. Lutero.
Katharina nasceu em 1499, filha de um nobre alemão que passava por dificuldades financeiras. Aos 3 anos de idade, perdeu sua mãe, e seu pai a levou para estudar na escola do convento Beneditino, onde vivia sua tia Madalena Von Bora. Aos 9 anos, entrou para o convento propriamente dito, tornando-se freira aos 16 anos de idade.
Quando Lutero fixou as suas famosas 95 teses nos portões da Capela de Wittemberg, Katharina estava com 18 anos de idade. Entretanto, ela e outras freiras do convento ouviram falar do ensino bíblico de Lutero, e crendo no que ele pregava, desejaram abandonar a clausura. Escreveram a seus pais, mas eles não tomaram nenhuma atitude no sentido de libertá-las. Decidiram então escrever a Lutero, tendo a carta sido redigida pela própria Katharina. Quando o reformador tomou conhecimento do fato, encorajou um amigo negociante a ajudá-las a escapar. Esse homem, Leonardo Koppe, ia frequentemente ao convento, levando alimentos e todo tipo de mantimentos para abastecer o mosteiro, e uma noite em 1523, ajudou-as a fugir, transportando as 12 noviças em um barril de peixes! Muitas retornaram às suas famílias. Lutero procurou auxiliar a todas, ajudando-as a encontrar moradias, maridos e empregos. Dois anos após a fuga, todas haviam seguido seu destino, exceto Katharina, que morou por um curto período de tempo na casa do pintor Lucas Cranach, autor de seu famoso retrato.
Em 1524, com a aprovação e recomendação de Lutero, Katharina foi cortejada por um dos alunos de Wittemberg, mas seu pai se opôs ao casamento. Neste mesmo ano, Lutero arrumou-lhe um novo pretendente, o Pastor Glatz, mas ela recusou-se a desposá-lo. Ela costumava dizer: “Só me casarei com o Dr. Lutero ou com alguém muito parecido com ele”. Lutero ria ao ouvir isso, pois apesar de, já àquela altura, condenar o celibato, não tinha intenção de casar-se: “nunca farão com que eu me case!”, afirmou ele. Alguns garantem que ele chegou a interessar-se por outra ex-freira, Ave Von Schonfeld, mas o relacionamento parece não ter prosperado.
Porém, gradualmente, tanto pela convivência, como por insistência dos seus amigos e seu pai, Lutero acabou propondo casamento à Katharina. Eles ficaram noivos em 13 de junho de 1525 e casaram no dia 25 de junho daquele mesmo ano, ou seja, doze dias depois! A decisão parece ter causado surpresa, pois o próprio Melanchton, escrevendo a um amigo, declarou: “Inesperadamente, Lutero desposou Bora sem querer mencionar seus planos ou consultar seus amigos”. Muitos foram contra o casamento, pelos motivos mais variados. Primeiramente porque, àquela altura, ainda não se admitia que os religiosos contraíssem matrimônio: tratava-se de um escândalo! Segundo, pela grande luta que o reformador vinha travando conta Roma: na condição de herege e proscrito, sua vida estava em constante perigo. Outra razão era a diferença de idade: quando casaram, Lutero estava com 42 anos e Katharina com 26! Ela também sofreu difamações pela união com o reformador, mas, felizmente, o casamento ocorreu e eles viveram felizes por cerca de 21 anos, até a morte do reformador. São curiosos alguns escritos de Lutero sobre esse período inicial de sua vida matrimonial. Escrevendo a um amigo ele declarou: “Existem algumas coisas com as quais precisamos nos acostumar no primeiro ano de casamento; o sujeito acorda de manhã e encontra um par de tranças postiças no travesseiro, onde antes não havia nada!” Entretanto, após um ano de casado, escreveu: “Minha Kathe é, em tudo, tão dedicada e encantadora que eu não trocaria minha pobreza pelas maiores riquezas do mundo”. E mais tarde: “Não há na terra um laço tão doce, nem uma separação mais amarga como a que ocorre num bom casamento”. Finalmente, é bem conhecida sua declaração: “Não há relação mais bela, mais amável e mais desejável, nem comunhão e companhia mais agradável do que a de marido e mulher num casamento feliz”.
O príncipe Frederico havia dado de presente a Lutero o prédio do mosteiro agostiniano em Wittemberg, e foi para lá que a família se mudou em 1525. Katharina reformou o mosteiro e o administrou, o que veio a permitir que Lutero gozasse de relativa paz e ordem em sua vida privada. Ela dirigia e administrava as finanças da família, para que ele pudesse dedicar-se às tarefas que essencialmente lhe competiam: escrever, ensinar e pregar. Ela foi uma esposa dedicada e diligente, a quem Lutero freqüentemente se referia como “Kathe, minha patroa (no inglês, my lord)”. Eles tiveram 6 filhos, dos quais 4 sobreviveram até à idade adulta. Além disso, cuidavam de uma parente de Katharina e, em 1529, com a morte da irmã do reformador, mais 6 crianças – agora órfãs – se juntaram à família. Além dos familiares e de um cachorro de estimação, era comum haver mais de 30 pessoas no mosteiro, entre hóspedes, viajantes em trânsito e estudantes (eles costumavam receber estudantes, que pagavam pelos seus estudos, ajudando assim a equilibrar o orçamento doméstico). Desse modo, sua rotina diária era bastante atarefada: ela tinha uma horta, um orquidário, confeccionava material para pescaria, e acabaram, posteriormente, adquirindo uma pequena fazenda onde criavam gado, galinhas e fabricavam cerveja caseira. Ela também gostava de ler e de bordar. Lutero costumava chamá-la de “a estrela da manhã de Wittemberg”, já que diariamente levantava às 4 horas da madrugada para dar conta de suas muitas responsabilidades. Com muita freqüência, o reformador caía enfermo, e Katharina cuidava dele não simplesmente como esposa, mas quase como enfermeira, devido aos grandes conhecimentos médicos que possuía.
Entretanto, sua vida não era somente dedicada a coisas materiais. Seu marido a encorajava em seus estudos bíblicos devocionais e sempre sugeria algumas passagens particulares para que memorizasse. Quando ele se encontrava deprimido, era a sua vez de ajudá-lo: sentava-se ao seu lado e lia a Bíblia para ele, edificando o seu coração. Conta-se que, certa vez, Lutero estava bastante deprimido. Não se alimentava e passava os dias trancafiado em seu quarto. Estava cheio de dúvidas sobre se o que fazia era ou não da vontade de Deus. Katharina vestiu-se de preto e entrou subitamente no aposento. Lutero tomou grande susto, pensando que alguém tinha morrido. Katharina respondeu: “Ao que parece, Deus morreu!” A reação de Lutero foi imediata: levantou-se e saiu do quarto, agradecendo à esposa por fazê-lo retornar à vida.
Em termos de recreação, Lutero gostava de participar de jogos ao ar livre com a família, e também apreciava os jogos de mesa, como o xadrez, além de jardinagem e música. Ele e Katharina eram pais diligentes, “disciplinando seus filhos, em amor”. Seu lar era famoso pela vitalidade e felicidade ali reinantes. Dessa forma, a família do reformador tornou-se um modelo para as famílias cristãs alemãs por muitos anos. Lutero considerava o casamento como a melhor escola para moldar o caráter e a vida familiar um método excelente e apropriado para treinar e desenvolver as virtudes cristãs da firmeza, paciência, bondade e humildade.
Lutero faleceu em 1546, e Katharina ainda viveu por mais 6 anos. Ela chegou a ver seus filhos atingirem a idade adulta, alcançando posições de influência na sociedade, exceto aqueles que morreram na infância, causando grande sofrimento as pais: sua primeira filha (Elizabeth) que morreu aos 8 meses de idade, e a segunda filha (Madalena) que faleceu aos 13 anos. Para termos uma idéia desses sofrimentos, segue um breve relato. Quando Madalena adoeceu gravemente, Lutero orou: “Senhor, eu amo muito a minha filha, mas seja feita a tua vontade”. Ajoelhando-se junto à cabeceira de sua cama, falou: “Madalena, minha menina, eu sei que você gostaria de permanecer aqui com seu pai, e também sei que gostaria de ir encontrar-se com o seu Pai no céu. Ela, sorrindo, respondeu: “Sim, papai, como Deus quiser”. Finalmente, depois de alguns dias, ela faleceu em seus braços, e no seu sepultamento, Lutero disse chorando: “Minha querida e pequena Lena, como você está feliz! Você ressurgirá e brilhará como o Sol e as estrelas... É uma cosa esquisita – eu saber que ela está feliz e em paz, e ainda assim, me sentir tão triste!”
Quanto aos outros filhos, o mais velho (Hans) estudou Direito e tornou-se conselheiro da corte. O segundo (Martin), estudou Teologia. O terceiro (Paul), tornou-se um médico famoso, e a terceira filha (Margareth) casou-se com um rico prussiano. A título de curiosidade: os descendentes de Lutero que ainda vivem, descendem de sua filha Margareth, dentre eles, o ex-presidente da Alemanha, Paul Von Hindenburg.
No mesmo ano da morte de Lutero (1546), Katharina deixou Wittemberg e fugiu para Dessau, devido à guerra smalkaldiana e, em 1552, viajou para Torgau, fugindo de uma peste que grassara em Wittemberg. Ela morreu em 20 de dezembro de 1552 na cidade de Torgau.
Encerro esse breve relato sobre a vida de Katharina citando o último testemunho do seu esposo. Escrevendo, certa vez, a um amigo, ele disse: “Minha querida Kate me mantém jovem, e em boa forma também... Sem ela, eu ficaria totalmente perdido. Ela aceita de bom grado minhas viagens e quando volto, está sempre me aguardando com alegria. Cuida de mim nas minhas depressões e suporta meus acessos de cólera. Ela me ajuda em meu trabalho, e acima de tudo, ama a Cristo. Depois Dele, ela é o maior presente que Deus já me deu nesta vida. Se algum dia, vierem a escrever a historia de tudo o que já tem acontecido (a Reforma), espero que o nome dela apareça junto ao meu. Eu oro por isso...”.
Ao tomar conhecimento dessa declaração, Katharina respondeu: “Tudo o que tenho feito se resume a simplesmente duas coisas: ser esposa e mãe, e tenho certeza que uma das mais felizes de toda a Alemanha!”.
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Texto extraído do livro Grandes Mulheres da Reforma, de James I. Good (editada por Lays Anglada) – Knox Publicações.