A origem do homem moderno se pode atribuir a diversos períodos. Todavia,
partirei do ensino de alguém que transformou o mundo de modo muito real. Tomás
de Aquino (1225-1274) abriu caminho para a discussão do que convencionalmente é
designado de “natureza e graça”. Elas podem ser representadas em termos do
seguinte diagrama:
GRAÇA
NATUREZA
Este diagrama
pode ser ampliado nos seguintes moldes, mostrando o que se inclui em ambos os
níveis:
GRAÇA, O NÍVEL SUPERIOR
DEUS O CRIADOR; O CÉU E AS COISAS
CELESTES; O INVISÍVEL E SUA INFLUÊNCIA NA TERRA; A ALMA HUMANA; A UNIDADE
NATUREZA,
O NÍVEL INFERIOR
A CRIAÇÃO; A TERRA E AS COISAS
TERRENAS; O VISÍVEL E O QUE FAZEM A NATUREZA E O HOMEM NA TERRA; O CORPO
HUMANO; A DIVERSIDADE
Até esta época,
as formas de pensamento haviam sido bizantinas. As realidades celestiais
capitalizavam toda importância e se revestiam de tal santidade que não eram
retratadas de maneira realista. É o que se observa com relação a Maria e a
Jesus Cristo: - não são nunca retratados de forma realista nesta fase.
Retratam-se apenas símbolos. Assim, se examinarmos qualquer dos mosaicos do fim
do período bizantino no batistério de Florença, por exemplo, não é um retrato
de Maria que veremos, mas um símbolo que representa Maria. Por outro lado, a
natureza em si – as árvores e as montanhas – não se revestia de interesse para
o artista, exceto como sendo parte desse mundo em que vivemos. O alpinismo, por
exemplo, simplesmente não exercia apelo algum como escalada a ser intentada
pelo prazer de subir montanhas. Como veremos, esse esporte como tal só veio a
surgir realmente quando ao fim se despertou
um novo interesse pela natureza. Destarte, antes de Tomás de Aquino, dava-se esmagadora
ênfase às coisas celestes, tão remotas e transcendentes, tão santas e sublimes,
representadas através de símbolos, com pouco interesse pela natureza como tal.
Com o advento de Tomás de Aquino temos o verdadeiro surto da Renascença
humanista. A concepção tomista da natureza e graça não envolvia completa
descontinuidade dos dois princípios porquanto sustentava Tomás de Aquino um
conceito de unidade que as correlacionava. Desde os tempos de Aquino, por
muitos anos a seguir, houve empenho constante de estabelecer-se uma unidade da
graça e natureza, bem como a esperança de que a racionalidade houvesse de dizer
algo a respeito de uma e outra.
Uma boa porção de coisas
excelentes adveio do surto do pensamento renascentista. De modo particular a
natureza passou a usufruir de conceito mais apropriado. Do ponto de vista
bíblico a natureza é importante porquanto criada por deus e, por isso, não deve
ser menosprezada. Nem devem ás coisas relativas ao corpo ser desprezadas quando
comparadas com as da alma. Tudo que reflete a beleza se reveste de importância.
A sexualidade em si mesma não é um mal. Tudo isto se integra no fato de que
Deus nos outorgou na própria natureza uma dádiva excelente, pelo que, se o
homem a desdenha, está na realidade atentando contra a dignidade daquilo que é
criação divina. Destarte em certo sentido está desprezando o próprio Deus, pois
que despreza o que Deus natureza é importante porquanto criada por deus e, por
isso, não deve ser menosprezada. Nem devem ás coisas relativas ao corpo ser
desprezadas quando comparadas com as da alma. Tudo que reflete a beleza se
reveste de importância. A sexualidade em si mesma não é um mal. Tudo isto se integra
no fato de que Deus nos outorgou na própria natureza uma dádiva excelente, pelo
que, se o homem a desdenha, está na realidade atentando contra a dignidade
daquilo que é criação divina. Destarte em certo sentido está desprezando o
próprio Deus, pois que despreza o que Deus criou.
Tomás
de Aquino e o Autônomo
Ao mesmo tempo
estamos agora em condições de ver o significado do diagrama da natureza e graça
numa perspectiva diferente. Embora bons resultados adviessem da posição de
maior realce conferida à natureza, isso deu lugar a muita coisa de cunho
destrutivo, como se verá. Na concepção tomista a vontade humana estava caída,
mas não o intelecto. Dessa noção incompleta do conceito bíblico da Queda, defluíram
todas as dificuldades subsequentes. O intelecto humano se tornou autônomo.
Em um aspecto era o homem agora independente,
autônomo. Esta esfera do autônomo em Tomás de Aquino assume várias formas. Um
dos resultados, por exemplo, foi o desenvolvimento da teologia natural. Nesta
perspectiva, a teologia natural é uma teologia que se poderia formular
independentemente das Escrituras. Embora fosse um estudo autônomo, ele esperava
que resultasse numa unidade e dizia existir uma correlação inegável entre a
teologia natural e a Bíblia. O ponto importante, porém, no que se seguiu foi
que uma área completamente autônoma assim se estabelecia.
Com base neste princípio de autonomia, também
a filosofia se tornou livre e se separou da revelação. Portanto, a filosofia
começou a criar asas, por assim dizer, voando por onde quer que lhe aprazia,
deixando à margem as Escrituras. Não quer isto dizer que essa tendência não se manifestara
em tempos anteriores, apenas que de agora em diante se patenteia de maneira
mais completa.
Nem se limitou à teologia
filosófica de Tomás de Aquino. Bem logo se fez sentir no mundo da arte. O
processo educacional hodierno tem um ponto falho por não levar em conta as
associações naturais entre as diferentes disciplinas. Tendemos a estudá-las
todas á parte, em linhas paralelas.
Esta tendência é
real tanto na educação secular como na educação cristã. Esta é uma das razões
porque evangélicos se têm surpreendido ante a tremenda mudança produzida em
nossa geração. Temos estudado exegese apenas como exegese, teologia apenas como
teologia, filosofia apenas como filosofia; estudamos algo na esfera da arte,
apenas como arte; estudamos música simplesmente como sendo música,
despercebidos de que são elaborações humanas e as coisas do homem não se podem
conceber como linhas paralelas não relacionadas. Há diversas maneiras em que
esta associação de teologia, filosofia e arte emergiu em sequela a Tomás de
Aquino.
Pintores
e Escritores
O primeiro
artista a ser assim influenciado foi Cimabue (1240-1302), mestre de Giotto
(1267-1337). Visto que Tomás de Aquino viveu de 1225 a 1274, estas influências
se fizeram sentir bem depressa no campo da arte. Ao invés de situarem todos os
motivos da arte acima da linha divisória entre a natureza e a graça na maneira
simbólica do Bizantino, Cimabue e Giotto começaram a pintar as coisas da
natureza como natureza. Neste período de transição a mudança não ocorreu toda
de uma vez. Havia, por isso, a tendência, a princípio, de se pintarem os
elementos de menos importância no quadro de forma naturalista, continuando,
porém a se representar Maria, por exemplo como um Símbolo.
Depois Dante
(1265-1321) passou a escrever de maneira como estes artistas pintava. De
repente, tudo começa a alterar-se no sentido de que a natureza veio a tornar-se
importante. Idêntica expressão pode-se perceber nos renomados escritores Petrarca
(1304-1374) e Bocácio (1313-1375). Petrarca foi o primeiro de quem se ouviu
dizer jamais haver escalado montanhas sem ser pelo simples prazer de fazê-lo.
Tal interesse pela natureza como Deus a criou é, como já vimos, bom e
apropriado. Tomás de Aquino, porém, havia aberto caminho a um Humanismo
Autônomo, uma filosofia autônoma e, tão logo o movimento adquiriu força, a
tendência se tornou um verdadeiro dilúvio.
Natureza
versus Graça
O princípio
vital a notar-se é que, à medida que a natureza se fazia autônoma, passava a
”devorar” a graça. Através da Renascença, de Dante a Miguel Ângelo,
gradualmente a natureza se fez mais inteiramente autônoma. Ela libertou-se de
Deus à medida que os filósofos humanistas começaram a operar cada vez mais à
vontade. Quando a Renascença chegou ao seu clímax, a natureza havia devorado a
graça. De várias maneiras pode-se demonstrar isto. Comecemos com uma miniatura
conhecida como Grandes Heures de Rohan (Grandes Horas de Rohan), pintada por
volta de 1415. O motivo que explora é uma estória miraculosa do período. Maria,
José e o menino, em fuga para o Egito, passam por um campo em que um homem está
semeando, e um milagre se realiza. Germina o grão semeado, e cresce no espaço
de mais ou menos uma hora, e se mostra em condições de ser ceifado. Quando o
homem se põe a cortar o trigo, aparecem os soldados que vinham em perseguição à
família fugitiva e indagam: “Quanto tempo faz que passaram por aqui?” Responde
o lavrador que na ocasião ele estava semeando aquele cereal e, diante disso, os
soldados retrocedem. Não é, porém, propriamente a estória que nos interessa mas
a maneira como se dispõem as figuras na miniatura. Em primeiro lugar, há uma
notória diferença no tamanho das figuras de Maria e José, do menino, do criado
e do jumento, que ocupam a parte superior da tela e a dominam pelas dimensões
avultadas, e as minúsculas representações do soldado e do homem que empunha a
foice na porção inferior do quadro. Em segundo lugar, a mensagem se evidencia
não só mercê do porte das figuras superiores mas ainda pelo fato de que o fundo
dessa porção é coberto de linhas douradas. Há, pois, total expressão pictórica
da graça e da natureza.
Este é o antigo conceito, a graça
avultadamente importante, a natureza merecendo pouco destaque.
No Norte
Europeu, Van Eyck (1380-1441) foi quem abriu a porta à natureza numa nova
maneira. Começou a pintar a natureza real, tal qual se mostra. Em 1410, data
muito importante na história da arte, pintou uma miniatura de reduzidas
proporções. Mede apenas doze por oito centímetros. É, contudo, um quadro de
tremendo significado porque representa a primeira paisagem real. Deu origem a
todos os fundos de quadro que surgiram posteriormente no decurso da Renascença.
O tema é o batismo de Jesus, mas a cena abrange apenas diminuta área no quadro
como um todo. O fundo apresenta um rio, um castelo muito real, casas, colinas e
outros elementos – paisagem natural: a natureza se tornou importante. Depois
desta, paisagens do gênero se difundiram rapidamente do norte ao sul da Europa.
Surge logo o
estágio seguinte. Em 1435, Van Eyck pintou a Madona do Chanceler Rolin – hoje
no Museu do Louvre em Paris. A característica significante é que o Chanceler
Rolin, ao defrontar-se com Maria, tem as mesmas dimensões que ela. Maria não
mais se retrata remota, o Chanceler não mais uma figura minúscula, como teria
sido o caso em relação aos patrocinadores do período anterior. Embora tenha as
mãos em postura de prece, aparece em pé de igualdade com Maria. De agora em
diante a pressão se faz sentir: como resolver este equilíbrio entre a graça e a
natureza?
Neste ponto cabe uma menção a
Masaccio (1401-1428), outro vulto importante. Ele dá o próximo grande passo na
Itália após Giotto, que faleceu em 1337, por introduzir perspectiva e espaço
reais. Pela primeira vez, a luz é projetada da direção própria. Por exemplo, na
maravilhosa Capela Carmina em Florença, há uma janela que e ele levou em
consideração ao pintar os quadros nas paredes, de sorte que as sombras nas
pinturas caem na posição que a luz advinda dessa janela determinada. Estava
Masaccio fitando a natureza real, verdadeira. Pintava de tal modo que seus
quadros pareciam refletir a exata perspectiva da realidade em três dimensões;
dão a sensação de atmosfera; e ele introduziu a composição real. Vivel apenas
até os vinte e sete anos; entretanto, abriu quase de completo a porta à
natureza. Com a obra de Masaccio, assim como a maior pare dos trabalhos de Van
Eyck, a ênfase à natureza foi AL que poderia ter levado à pintura um verdadeiro
ponto de vista bíblico.
Com Filippo
Lippi (1406-1469), salta à vista que a natureza começa a “devorar” a graça de
modo mais sério do que se viu na Madona do Chanceler Rolin, de Van Eyck. Bem poucos
anos antes, artista nenhum ousaria pensar em pintar Maria em moldes naturais –
pintar-lhe-ia apenas um símbolo. Quando, porém, Filippo Lippi executou o quadro
da Madona em 1465 a mudança que se patenteava era surpreendente. Retratava uma
jovem extremamente formosa com uma criança nos braços em uma paisagem que sem
dúvida fora grandemente influenciada pela obra de Van Eyck. Esta Madona já não
mais era um símbolo remoto, distante, de cunho transcendetnte, era uma linda
jovem com uma criança. Mas há algo ainda que devemos saber acerca deste quadro.
A jovem que representava Maria era nada menos que sua amante, fato conhecido de
toda Florença. Ninguém teria ousado fazer isso alguns anos antes. A natureza
estava matando a graça. Na França, Fouquet (cerca de 1416-1480) pintou, por
volta de 1450, a amante do rei, Agnes Sorel, como Maria. Todos quantos
conheciam a Corte de perto, vendo o quadro, sabiam tratar-se da então amante do
rei. Ademais, Fouquet pintou-a com um dos seios a mostra. Enquanto nos tempos
precedentes a representação seria de Maria amamentando o menino Jesus, agora
era a amante do rei, com um seio à vista – e a graça estava morta! O ponto a
acentuar-se é que a natureza, uma vez tratada como coisa autônoma, reveste-se
de caráter destrutivo. Tão logo se estabelece esse reino autônomo verifica-se
que o elemento inferior começa a corroer o superior. Daqui por diante
referir-me-ei a estes dois elementos como o “andar inferior” e o “andar
superior”.
Leonardo DaVinci e Rafael
Leonardo da
Vinci é a figura que em seguida se impõe à consideração. Ele introduz um novo
fator no fluxo da história e mais do que qualquer vulto que o precedeu é a
individualidade que mais se aproxima do homem moderno. Viveu de 1452 a 1519,
faixa que se reveste de não reduzida importância porquanto coincide com os
primórdios da Reforma Protestante. Integra também, e com acentuada relevância,
a assinalada mudança que se manifestou no pensamento filosófico. Cósimo, o
velho de Florença, que faleceu em 1464, foi o primeiro a perceber a importância
da filosofia de Platão. Tomás de Aquino havia introduzido o pensamento
aristotélico. Cósimo começou a bater-se pelo Neoplatonismo. Ficino (1433-1499),
o grande neoplatonista, foi mestre de Lourenço, o Magnífico (1449-1492). Nos
dias de Leonardo da Vinci era o Neoplatonismo força dominante em Florença.
Assumiu essa relevância simplesmente porque se fazia mister encontrar algo a
colocar-se no “andar superior”.
O Neoplatonismo era guindado a essa
privilegiada posição com vistas a restaurar ideias e ideais – isto é, coisas
universais.
GRAÇA
– UNIVERSAIS
NATUREZA -
PARTICULARES
Um quadro que
ilustra este ponto é A Escola de Atenas, de Rafael (1483-1520). Na sala do
Vaticano em que se encontra esta obra famosa, Rafael pintou em uma das paredes
um mural que representa a Igreja Católica Romana que contrabalança, na parede
oposta, A Escola de Atenas, que tipifica o pensamento pagão clássico. Em A
Escola de Atenas Rafael retrata a diferença entre o elemento aristotélico e o
platônico. Os dois filósofos ocupam o centro do quadro, Aristóteles com as mãos
voltadas para o chão, Platão a apontar para o alto. Este problema pode-se
expressar de outra forma. Onde encontrar a unidade depois de conceder plena
liberdade à diversidade? Se são libertadas, de que modo conservá-las num todo
uno? Leonardo se debateu com esse problema. Ele era um pintor neoplatônico, e,
muitos o tem dito – julgo que com muita propriedade – o primeiro matemático
moderno. Percebeu ele que, se partirmos da racionalidade autônoma, chegaremos á
matemática (matéria que se pode medir); e a matemática trata somente de
particulares, nunca de universais. Portanto, não iremos nunca além da mecânica.
A uma pessoa que se apercebia de quão necessária era a unidade, era patente a
insuficiência deste esquema. Procurou, pois pintar a alma. Não a alma cristã; a
alma era-lhe a universalidade, a alma, por exemplo, do amor ou da árvore.
ALMA – UNIDADE
MATEMÁTICA –
PARTICULARIDADES – MECÂNICA
Uma das razões por que jamais
pintou de modo intenso foi simplesmente porque procurou desenhar, sempre
desenhar, com vistas a ser capaz de retratar o universal . Não é necessário
dizer que jamais o conseguiu.
Giovanni Gentile, um
dos maiores expoentes do pensamento filosófico italiano, falecido em tempos
relativamente recentes, disse que Leonardo morreu em desalento porquanto não
queria abrir mão da esperança de uma unidade racional entre os particulares e o
universal. Para haver escapado a esse desalento, necessário teria sido que
Leonardo fosse criatura diferente. Ter-lhe-ia sido imperativo desvencilhar-se
desse anelo por uma unidade acima e abaixo da linha. Leonardo, que não era
pensador da linhagem moderna, jamais abandonou a esperança de um campo de
conhecimento unificado. Em outras palavras, não abriria mão da esperança do
homem erudito que, no passado, se caracterizou por esta esta insistência em um todo unificado de
conhecimento.
____________
Extraído do Livro: A Morte da Razão