Por Ronaldo Lidório
Após participar de um encontro de
igrejas no nordeste da França tive a oportunidade de dar uma palavra também aos
adolescentes de uma escola cristã. Na entrada da escola a réplica de um mapa de
1573 chamou a minha atenção. Era o mapa do império francês do fim do século 16
com centenas e centenas de marcas, em forma de uma cruz, espalhadas por toda a
sua extensão. O diretor da escola se aproximou explicando que as marcas
indicavam a localização de cada escola cristã na França da época, cerca de duas
mil! Com voz melancólica completou que “hoje não passam de vinte”. A forte presença
de escolas cristãs era um resultado direto da Reforma Protestante sob a
influência de Lutero, Calvino, Zwínglio, Farel e Knox que defendiam a pregação
da Palavra, uma escola cristã em cada igreja cristã e um culto centrado em
Cristo e não na Igreja.
A Reforma Protestante -
desencadeada com as 95 teses de Lutero divulgadas em 31 de outubro de 1517 –
foi, sobretudo, eclesiástica em um momento que todos os olhares se voltavam
para a reestruturação daquilo que a Igreja cria e vivia. Renasceram assim os dogmas
evangélicos.
A Sola Scriptura defendia uma
Igreja centrada nas Escrituras, Palavra de Deus; a Sola Gratia reconhecia a
salvação e vida cristã fundamentadas na Graça do Senhor e não nas obras
humanas; a Sola Fide evocava a fé e o compromisso de fidelidade com o Senhor
Jesus; a Solus Christus anunciava que o próprio Cristo estava construindo Sua
Igreja na terra sendo seu único Senhor e a Soli Deo Gloria enfatizava que a
finalidade maior da Igreja era glorificar a Deus.
A missão da Igreja, sua Vox
Clamantis, não fez parte dos temas defendidos e pregados na Reforma Protestante
de forma direta. Isso por um motivo óbvio: os reformadores possuíam em suas
mãos o grande desafio de reconduzir a Igreja à Palavra de Deus e, assim, todos
os escritos e esforços foram revestidos por uma forte convicção eclesiológica e
sem preocupação imediata com a missiologia. Isso não dilui, entretanto, a
profunda ligação entre a reforma e a missão como veremos a seguir.
A Reforma e as Escrituras na
língua do povo
A Reforma levou a Igreja a crer
que o curso de sua vida e razão de existir deveriam ser conduzidos pela Palavra
de Deus, submetendo o próprio sacerdócio a esse crivo bíblico. Foi justamente
essa ênfase escriturística que despertou Lutero para a tradução da Palavra na
língua do povo e inspirou posteriormente centenas de traduções populares em
diversos idiomas, fomentando movimentos como a WycliffeBibleTranslators com a
visão da tradução das Escrituras para todas as línguas entre todos os povos da
terra.
Hoje contamos com a Palavra do
Senhor traduzida para mais de duas mil línguas vivas. João Calvino enfatizava
que “... onde quer que vejamos a Palavra de Deus pregada e ouvida em toda a sua
pureza... não há dúvida de que existe uma igreja de Deus”. O grande esforço
missionário para a tradução bíblica resulta diretamente deste conceito
resgatado na Reforma Protestante.
A Reforma e o culto participativo
A Reforma reavivou o culto em que
todos os salvos, e não apenas o sacerdote, podem louvar e buscar a Deus. E
Lutero, como uma de suas primeiras atitudes, colocou em linguagem comum os
hinos entoados nos cultos. Esta convicção de que é possível ao homem comum
louvar a Deus incorporou na Igreja pós-reforma o pensamento multiétnico através
do qual “o desejo de levar o culto a todos os homens”, como disse Zuínglio, não
demorou a ressoar na Igreja, culminando com o envio de missionários para o
Ceilão pela igreja Reformada holandesa no século 17. Isso, então, disparou um
progressivo envio missionário e expansão da fé Cristã nos séculos que viriam.
Um culto vivo ao Deus vivo foi um
dos pressupostos reformados que induziu a obra missionária a levar esse culto a
todos os homens transpondo barreiras linguísticas, culturais e geográficas.
A Reforma e a expansão da fé
cristã
A Reforma destacou a Glória de
Deus como motivo de existência da Igreja e isso definiu o curso de todo o
movimento missionário pós-reforma no qual o estandarte de Cristo, e não da
Igreja, era levado com a Palavra proclamada entre outros povos. Os morávios já
testificavam sobre isto, no século 18, quando o conde Zinzendorf, ao ser
questionado sobre seu real motivo para tão expressivo e sacrificial movimento
missionário, respondeu: “estamos indo buscar para o Cordeiro o galardão do Seu
sacrifício”. John Knox, na segunda metade do século 16, escreveu que, como
resultado da Reforma, o Evangelho era exposto em toda parte, perto e longe. O
centro das atenções, portanto, era Cristo e nascia ali um modelo cristocêntrico
de pregação do Evangelho que marcaria o curso da história missionária nos
séculos posteriores.
A Reforma Protestante passou a
Igreja pelo crivo da Palavra e isto revelou a nossa identidade bíblica segundo
o coração de Deus. Seguindo o esboço da eclesiologia reformada, poderemos
concluir que somos uma comunidade chamada e salva pelo Senhor e com uma
finalidade na terra. Zwínglio, logo após manifestar sua intenção de passar a
pregar apenas sermões expositivos, em janeiro de 1519 afirmou em sua primeira
prédica que “a salvação põe sobre nós a responsabilidade de obediência”. Não
era suficiente apenas ouvir e compreender. Era preciso obedecer e seguir.
A Reforma e a motivação para o
serviço e a missão
A Reforma também destacou o
assunto do nosso propósito de vida e elucidou que a finalidade maior da nossa
existência não é servir à Igreja ou a nós mesmos. A exposição de Calvino da
carta aos Romanos, com especial destaque no último capítulo, deixa bem clara a
evidência bíblica e convicção reformada de que vivemos e trabalhamos para a
glória de Deus. A obra missionária, assim, passou a ser realizada não para
expandir uma instituição, uma ideia ou um clero, mas para glorificar ao Supremo
Criador e esta foi uma das grandes contribuições da Reforma para a missiologia
protestante e para as ações missionárias.
Em Romanos16, versos 25 a 27,
lemos: “Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu Evangelho”
(fala de Deus), “conforme a revelação do mistério” (o “mistério” é o Messias
prometido a todos os povos), "e foi dado a conhecer por meio das
Escrituras Proféticas" (aponta para o meio de revelação), "segundo o
mandamento do Deus eterno" (aponta para o desejo fomentador da nossa
salvação), "para a obediência por fé"(aponta para o meio de
salvação), "entre todas as nações” (esta é a extensão do plano salvífico
de Deus).
Que lindo texto! Nele, Paulo
resume a teologia da missão e expõe o propósito de Deus em resgatar pessoas de
perto e de longe, em Cristo Jesus.
Mas qual o motivo maior para esse
plano divino que visa a redenção de todos os povos? Ele completa no verso 27:
“Ao Deus único e sábio seja dada glória ...”. É a glória de Deus! E esse é
também o maior e mais importante motivo para nos envolvermos com o propósito de
fazer Jesus conhecido até a última fronteira do país mais distante, ou da
família na casa vizinha.
Martinho Lutero, em um sermão
expositivo em 1513, baseado no Salmo 91, afirmou que “a glória de Deus precede
a glória da igreja”. É momento de renovar nosso compromisso com as Escrituras,
reconhecer que existimos como Igreja pela graça de Deus, orar ardentemente por
fidelidade de vidas e entender que o próprio Jesus está construindo a Sua
igreja na terra.
A Reforma e a busca por um
coração pronto e sincero
O símbolo de Calvino passou a ser
um coração seguro por uma mão e apresentado bem alto. Ao redor, escrito em
latim, se lia Cor Meum Tibi Offero Domine Prompte et Sincere – “meu coração a
ti ofereço Senhor, pronto e sincero”. Calvino, usado por Deus em sua geração e
tantas outras entendia que, além de todo o conhecimento teológico e humano,
havia a grave necessidade de um coração quebrantado e pronto.
John Knox, na busca por um
coração aquecido e avivado no Senhor Jesus proclamava que a ponte entre o
conhecimento e a transformação era o quebrantamento. Dizia em outras palavras
que, sem um coração quebrantado, nenhum conhecimento teológico ou humano
produziria uma vida transformada.
Concluo citando uma vez mais as
palavras do reformador Lutero no livro GlorytoGlory em que ele nos ensina a dar
passos e nos mostra que nossa vida em Cristo, como também a nossa missão na
terra, são uma caminhada.
“Esta vida, portanto, não é
justiça, mas crescimento em justiça. Não é saúde, mas cura. Não é ser, mas se
tornar. Não é descansar, mas exercitar. Ainda não somos o que seremos, mas
estamos crescendo nesta direção. O processo ainda não está terminado, mas vai
prosseguindo. Não é o final, mas é a estrada. Todas as coisas ainda não brilham
em glória, mas todas as coisas vão sendo purificadas”.
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Fonte: Revista Ultimato