Quando eu era bem pequeno, meu
pai me destinou aos estudos de teologia. Mais tarde, porém, ao ponderar que a
profissão jurídica comumente promovia aqueles que saíam em busca de riquezas,
essa visão o induziu a subitamente mudar seu propósito. E assim aconteceu de eu
ser afastado dos estudos de filosofia e encaminhado aos estudos de
jurisprudência. A essa atividade me diligenciei a aplicar-me com toda
fidelidade, em obediência ao meu pai. Mas Deus, pela secreta orientação de sua
providência, por um ato súbito de conversão, subjugou e trouxe minha mente a
uma disposição suscetível. Tendo assim recebido alguma experiência e
conhecimento da verdadeira piedade, imediatamente me senti inflamado de um
desejo tão intenso de progredir nesse novo caminho que, embora não tivesse
abandonado totalmente os outros estudos, me ocupei deles com menos ardor.
Fiquei totalmente aturdido ao
descobrir que, antes de haver-se esvaído um ano, todos quanto nutriam algum
desejo por uma doutrina mais pura vinham constantemente a mim com o intuito de
aprender, embora eu mesmo não passasse de mero neófito e principiante.
Possuidor de uma disposição um
tanto rude e tímida, passei, então, a buscar algum canto isolado onde pudesse
furtar-me da opinião pública. Em suma, enquanto meu único e grande objetivo era
viver em reclusão, sem ser conhecido, Deus me guiava através de crises e
mudanças, de modo a jamais me permitir descansar em lugar algum, até que, a
despeito da minha natural disposição, me transformasse em atenção pública.
Deixando meu país natal, a França, de fato me refugiei na Alemanha, com o
expresso propósito de poder ali desfrutar em algum canto obscuro o repouso que
eu havia sempre desejado, o qual me fora sempre negado.
Mas qual! Enquanto me escondia em
Basiléia, conhecido apenas de umas poucas pessoas, muitos fiéis e santos eram
queimados na França. E a notícia dessas mortes em fogueira, tendo alcançado as
nações distantes, incitavam a mais forte desaprovação entre uma boa parte dos
alemães, cuja indignação, acendeu-se contra os autores de tal tirania. A fim de
conter tal indignação, fizeram-se circular certos panfletos ímpios e
mentirosos, declarando que ninguém era tratado com tal crueldade, exceto os
anabatistas e pessoas sediciosas, que, por seus perversos desvarios e falsas opiniões,
estavam transformando não só a religião, mas ainda toda a ordem civil.
Frente a tudo isso, pareceu-me
que, a menos que eu lhes fizesse oposição, usando o máximo de minha habilidade,
meu silêncio não poderia ser justificado entre a acusação de covardia e
traição.
Essa foi a consideração que me
induziu a publicar minhas Institutas da
Religião Cristã (1536). Meu objetivo era, antes de tudo, provar que tais
notícias eram falsas e caluniosas, e assim defender meus irmãos, cuja morte era
preciosa aos olhos do Senhor. Como essas mesmas crueldades poderiam muito em
breve ser praticadas contra muitas pessoas infelizes e indefesas, eu alimentava
a esperança de sensibilizar nações estrangeiras para que elas tivessem um
mínimo de compaixão e solicitude pelas próximas vítimas. Ao serem aplicadas, As Institutas não eram essa obra ampla e
bem trabalhada de agora; na verdade, não passavam de um pequeno tratado
contendo o sumário das primeiras verdades da religião cristã.
Tenho lutado fielmente para abrir
o tesouro das Sagradas Escrituras a todo o povo de Deus. Embora o que tenho
feito não corresponda aos meus desejos, a tentativa que empreendi merece ser recebida
com certa medida de simpatia. Quando alguém ler os meus escritos, verá
claramente que não busquei ser agradável, a menos que eles, ao mesmo tempo,
sejam proveitosos a outrem.
JOÃO CALVINO
GENEBRA, 22 DE JULHO DE 1557
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Fonte: Sou eu Calvino – Uma Biografia,
Editora Ultimato.