1509725595914942

17 de out. de 2014

Reconstrucionismo para leigos

Por Solano Portela

Vou colocar algumas informações sobre os teonomistas (Theonomists), também conhecidos como dominionistas (Dominonists), amplamente extraídas da memória, portanto, com possíveis lapsos e imperfeições e sem nenhuma pretensão de dar todos os ângulos sobre o movimento, ou sobre as pessoas que têm recebido esse rótulo.

Como indica o próprio nome, teonomia tem a ver com a lei de Deus. Mais especificamente com o papel da lei de Deus e sua aplicabilidade em todas as eras. Ainda mais restritamente, com o entendimento da abrangência da lei de Deus. Os chamados teonomistas dizem que as expressões da lei de Deus representam um modelo a ser emulado em qualquer época ou sociedade - não aceitando sem muitas qualificações a clássica divisão entre lei civil ou judicial; lei religiosa e cerimonial e lei moral. O movimento começou na década de sessenta, do século passado, nos Estados Unidos e destaco os seguintes pontos a relembrar e a ponderar:


1. O Guru do movimento foi o já falecido Rousas J. Rushdoony (1916-2001), brilhante teólogo reformado e apologista cristão, seguidor do pensamento do apologista e teólogo Cornelius Van Til, do Westminster Theological Seminary, especialmente na sua identificação como um "pressuposicionalista" (contrapondo-se aos "evidencialistas").


2. Possivelmente, o livro mais famoso dese teólogo foi o seu "Institutes of Biblical Law". Nesse livro ele faz uma exposição principalmente dos Dez Mandamentos, mas também de inúmeros pontos da legislação judicial mosaica, representando uma coletânea de ensaios ético-teológicos, sobre os diversos aspectos da lei de Deus, com considerações práticas na história e na vida contemporânea. Um dos pontos defendidos, no livro, é o da aplicabilidade da legislação civil a todas as sociedades, em todas as eras. Nesse sentido, a tarefa dos cristãos seria reconstruir uma sociedade formada à luz da lei de Deus, pela pregação do evangelho e por esforços de pressão e persuasão junto ao governo e legisladores. Daí serem chamados, também, de reconstrucionistas, além de teonomistas.


3. O movimento atraiu muitos reformados, principalmente dentro do campo presbiteriano (especialmente na Igreja Presbiteriana Ortodoxa - OPC, denominação de vários de seus proponentes, por vários anos). Também fez progresso no meio de vários Batistas Reformados; veio, entretanto, tomar uma forma mais teórica com a publicação de um livro do Greg L. Bahnsen em 1977, chamado: "Theonomy in Christian Ethics". Bahnsen, escritor eficaz e debatedor de primeira linha (dizem que os ateus temiam debatê-lo) lecionava no Reformed Theological Seminary e o livro ajudou a popularizar o movimento e a atrair, também, muita oposição.


4. O pós-milenismo veio a tornar-se uma das características do movimento, pois os que se identificavam com a linha viam a ação do cristianismo como fonte de uma sociedade futura justa e controlada por princípios emanados da Palavra. Rushdoony escreveu um livreto, que teve ampla circulação, defendendo esse pós-milenismo (que difere do pós-milenismo clássico - que via uma melhoria progressiva na raça humana; e do pós-milenismo puritânico - que via o milênio como o resultado de um reavivamento operado por Deus pela igreja), chamado: "Eschatology of Victory".


5. Logo muitos livros foram publicados e um peródico acadêmico ("Journal of Christian Reconstruction"), contendo vários artigos profundos sobre temas correlatos, era publicado duas vezes por ano. Os artigos produzidos e outras publicações emanadas do campo teonomista sempre tinham uma boa profundidade e grande dose de erudição, bem como a tentativa de fundamentação bíblica às idéias apresentadas. Um dos autores que mais escreveram, nessa linha, foi o Gary North (genro de Rushdoony). North, economista de formação - e não teólogo, espinafrou com competência as políticas inflacionárias dos governos. Um dos ótimos artigos publicados no "journal" já mencionado, teve o título: "Isaiah's Critique of Inflation", e baseava-se na condenação que Isaías faz dos que adulteravam a prata. North comparava isso ao abandono de um padrão monetário fiel e chama explicitamente de roubo. Hoje ele está muito mais dedicado a artigos econômicos do que a ensaios teológico-sociais, como antigamente.


6. Uma outra publicação que cresceu e se estabeleceu, foi a revista (no início, era apenas uma newsletter) chamada "Chalcedon Report", que existe até hoje, acredito. Na realidade, o movimento foi abrigado pela Chalcedon Foundation, cujas atividades foram bem além da publicação da revista: distribuía sermões e palestras gravadas (outro grande meio de divulgação, nos States), publicava livros e empregava, em tempo integral vários dos pensadores do movimento (site atual: http://www.chalcedon.edu/) .

7. Pelo que sei, patrocinaram uma faculdade e fizeram sua presença sentida em quase todos os seminários de linha reformada, desde a década de setenta até o presente, provocando grandes debates e alinhamentos entre alunos e, por vezes, envolvendo professores nas controvérsias. Na década de noventa atraíram para o quadro de articulistas o Rev. Steve Schlissel, grande pregador e escritor de Nova York, que foi expulso da Christian Reformed Church porque se insurgiu contra várias diluições doutrinárias naquela denominação, especialmente com relação à abertura progressiva dela ao homossexualismo. Ele produziu (produz?) inúmeros artigos interessantes, inclusive uma série de oito ou dez artigos sobre o princípio regulador no culto, no qual defende uma posição, com várias diferenças das normalmente apresentadas na tradição puritana, com muita competência e precisão.

8. Os teonomistas nem sempre foram caracterizados por graça na defesa apaixonada de suas posições. A linguagem era, por vezes, virulenta contra irmãos na fé. Na área de obediência às leis, defenderam, por muitas vezes e em muitas situações, uma postura de desobediência civil. Alguns radicais, do campo, chegaram a advocar a concretização da resistência ao governo "ímpio e corrupto", na forma de recusa no pagamento de impostos - principalmente o "de renda" (não fiquem tentados...). No cômputo final, terminaram por brigar consideravelmente entre si. Gary North brigou com o próprio sogro (Rushdoony) e continua escrevendo bastante, mas em rumo separado dos teonomistas.


9. O link que coloquei, acima, provavelmente é uma das melhores fontes do estado atual do movimento. Na minha avaliação, os teonomistas têm muito a nos ensinar, mas não posso embarcar na visão anacrônica e não bíblica da aplicabilidade da lei judicial ou civil de Israel aos dias de hoje (quiçá da cerimonial), nem na visão de uma sociedade controlada e transformada pela lei, em vez de "salgada" e "iluminada" pelo evangelho (e, assim, na providência divina, preservada até o tempo do julgamento de Deus). Gosto muito de Rushdoony e ele tem uma leitura interessante e elucidativa de vários aspectos da lei moral de Deus. Na área filosófica, um dos expoentes do reconstrucionismo foi o Dr. Gordon Clark[1902-1985] - mente brilhante, um dos meus favoritos (Um dos seus grandes livros é: "A Christian View of Man and Things").


10. No Brasil, algumas pessoas têm se interessado pela corrente, ou por alguns de seus expoentes. Se o teonomismo encontra dificuldades e resistência em uma terra que tem raizes (e ainda algumas nuances) cristãs, imagine em uma sociedade secularizada e dicotomizada (religião x sociedade civil) como a nossa! No rescaldo, vejo-me aprendendo uma coisa aqui e outra ali, dos tenomistas, enquanto exerço minha liberdade cristã de rejeitar vários dos fundamentos defendidos por eles. Não aceito "comprar o pacote completo", nem descartá-los como inconsequentes e não bíblicos em tudo. São, via de regra, gente séria e sincera, que tem muito a ensinar, principalmente no apreço pela Palavra de Deus e em encontrar uma forma de aplicação dos principios das Escrituras nas questões do dia a dia da vida. Uma nota curiosa, é que encontrei já vários segmentos neo-pentecostais que se alimentam da filosofia e das idéias dos reconstrucionistas (principalmente um determinado grupo, da Guatemala, liderado pelo pastor Harold Caballeros - da Igreja El Shaddai e do Movimento Apostólico). Aparentemente os ensinamentos dos teonomistas, de entrelaçamento com a sociedade civil e de conquista (reconstrução), encontraram eco em pontos tipicamente neo-pentecostais relacionados com batalha territorial, conquistas e respeitabilidade social, mesmo com a identificação que os reconstrucionistas fazem, de si próprios, como verdadeiros expositores e abraçadores da teologia da reforma.