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10 de mai. de 2016

Entrevista com Rodolfo Amorim


Temos o prazer de apresentar aos nossos leitores mais uma excelente entrevista com um dos expressivos pensadores no Brasil na área de Cosmovisão Cristã, pensador da tradição de Abraham Kuyper - também conhecida como tradição kuyperiana. Nosso entrevistado é Rodolfo Amorim. Formado em teologia e em RI com mestrado em Ciências Sociais pela UFMG, obreiro fundador de L'Abri, presbítero licenciado da Igreja Presbiteriana do Buritis. Esperamos que essa entrevista seja para cada leitor um material de elucidação importante sobre Kuyper e a importância do seu pensamento para nosso contexto nacional.
Boa leitura!

***

Vemos um crescente interesse no Brasil pelo pensamento neocalvinista holandês. Sabemos que o mais importante representante foi seu idealizador, ou reformulador, no sentido de aplicar o calvinismo a seu tempo: Abraham Kuyper. No entanto, a tradição kuyperiana ainda é bem desconhecida do grande público de estudantes e leitores da teologia reformada em matéria de cosmovisão. Em sua opinião, qual a importância do pensamento de Kuyper e suas formulações aplicadas às esferas e como esse pensamento pode nos ajudar no Brasil em nosso contexto cultural?

A importância de Kuyper para o contexto brasileiro atual se dá sobretudo em duas frentes importantes de formação da identidade e vivência cristã: sua capacidade de engajar com o mundo moderno e suas questões culturais específicas e; seu zelo por manter o centro da ortodoxia cristã protegido contra adaptações desta para fins de relevância cultural.

Em relação ao primeiro ponto, o de capacidade de engajamento cultural no contexto moderno, podemos dizer que o neocalvinismo iniciado por Kuyper talvez tenha sido o movimento cristão protestante, após a reforma do século XVI, que mais se esforçou por entender e responder a uma miríade de novas questões e desafios que a igreja cristã ocidental passou a enfrentar após o advento da modernidade. Enquanto muitas expressões do cristianismo ocidental observaram passivamente o crescimento e o domínio cultural das forças do modernismo – o qual tem suas raízes no impulso humanista da renascença - o movimento de Kuyper passou a elaborar respostas distintas a questões que a modernidade fez surgir: existe, de fato, um campo de expressão cultural puramente secular, como defendem os modernistas, em que a razão humana seria autônoma na busca do direcionamento da vida humana? ou comunidades humanas com crenças distintas participam de forma conjunta e diversa da tarefa comum de criar cultura e dar direções específicas à sociedade e à civilização? Seria o espaço de ação e autoridade da igreja cristã apenas a esfera da vida privada, sem qualquer relação com as produções culturais no espaço público? Teria a Igreja de Cristo corresponsabilidade por aquilo que é produzido culturalmente no dia a dia das civilizações, moldando a forma de as pessoas conhecerem e agirem no mundo? A igreja teria uma função a desempenhar junto a instituições culturais estratégicas como a universidade, a ciência, as artes, a política, o lazer, a economia, dentre outras? ou aos cristãos está destinado apenas apresentar uma mensagem de salvação e esperança pessoal para uma vida no porvir? A todas estas perguntas o movimento de Kuyper respondeu com um não às tendências de aversão à vida na criação e ao envolvimento na cultura e com um sim à tarefa de participação cultural e vivência prática de cuidado e amor cristão em ações criativas no mundo.

Dentro deste contexto, dois conceitos desenvolvidos por Kuyper, posteriormente aprofundados por seus seguidores, foram cruciais para a articulação e expansão do movimento não só na Holanda como em outros países influenciados. Eles são o conceito de graça comum e o conceito de soberania das esferas. No primeiro, é reconhecida a presença da manutenção por parte do Criador das estruturas habilitadoras da vida humana em sua ordem criada. Ou seja, até que o juízo final se desvele, todos os seres humanos têm acesso às normas estruturais que possibilitam a vida humana no cosmos, bem como participam na criação e no desfrute de produções culturais diversas, como nas artes, na ciência, na tecnologia, na política, etc. Este princípio teológico potencializou a prática do diálogo respeitoso da comunidade cristã com outras comunidades presentes na sociedade bem como suas produções culturais, retirando cristãos ortodoxos de guetos de isolamento cultural. Já o conceito de soberania das esferas possibilitou aos cristãos a discernirem a presença soberana e controladora de Deus sobre sua ordem criada, dirigindo o progresso histórico-cultural. Ao mesmo tempo, ele forneceu uma filosofia social capaz de orientar a ação cristã na cultura, auxiliando na identificação da quebra desta diversidade criacional em atitudes centralizadoras de poder, ou idólatras, e ao apontar caminhos de ação para a promoção de um progresso cultural capaz de discernir a ameaça a esta pluralidade social intencionada pelo criador e revelada pelas Escrituras. Os princípios divinos para variados aspectos e instituições sociais devem, portanto, ser discernidos e cultivados em resposta ao mandato cultural (Gn. 1:28; 2:15). Como exemplo destes princípios vemos as aplicações neotestamentárias de diferentes direções éticas a instâncias ou campos distintos da vida como a família, a igreja local, o Estado, o indivíduo, dentre outros. A quebra destas normas estruturantes da vida geraria, simultaneamente, uma ausência de reconhecimento da glória do Criador, a quem pertence todo o poder, e uma diminuição do resplendor de sua imagem em nós, seres humanos bem como a plenitude de suas criaturas. Para o contexto brasileiro, onde a igreja evangélica, de forma geral, encontra fortes dificuldades de engajamento com a cultura mais ampla e suas produções, sobretudo modernas, uma proposta de engajamento como a reformacional de Kuyper se faz mais do que necessária.

Em relação ao segundo ponto, reconhecemos que a tradição kuyperiana não necessitou e nem teve como intenção na promoção deste engajamento aberto com a modernidade, negar sua identificação e apego às doutrinas e crenças celebradas pela tradição ortodoxa e católica da Igreja. Ou seja, diferentemente de movimentos liberais, que admitem uma alteração da ortodoxia para alcançar uma suposta relevância histórico-cultural, o movimento kuyperiano sempre partiu, em sua proposta cultural mais ampla, deste centro de identidade confessional clássico. Contrariamente àquele, a proposta kuyperiana acredita que negociar a identidade confessional em nome de uma suposta relevância histórica será o caminho certo da irrelevância e do esquecimento histórico. Este insight pode ser comprovado pelo reconhecimento factual de uma série de movimentos de adaptação das crenças cristã ao espírito dos tempos que hoje ficaram como relíquias discretas no “museu” da história. Para o contexto de fé brasileiro evangelical, com tendências confessionais conservadoras, mesmo com pouca consciência da tradição teológica cristã, um movimento zeloso com a ortodoxia cristã como o de Kuyper tem um grande potencial de assimilação e incorporação em nossas práticas e formação no contexto eclesiástico.   

Temos no meio evangélico uma série de problemas com respeito a referenciais teológicos, científicos e também para uma maturação de uma filosofia política genuinamente evangélica e reformacional. Como a tradição kuyperiana pode contribuir para alcançarmos essa maturação?

A meu ver o meio evangélico não só brasileiro, mas internacional, padece de duas tendências igualmente perniciosas para o alcance de uma vivência cristã plena na cultura e na criação divina, o isolacionismo e o ativismo religioso. Fortemente influenciado pelo ethos fundamentalista que teve origem nos EUA no início do século XX, o evangelicalismo ainda padece de uma forte tendência de isolamento e alienação cultural. Quando alguém se torna um cristão evangélico, geralmente esta pessoa é incentivada a colocar em segundo plano qualquer contribuição sua para a introdução de novidades no mundo, seja por meio da ciência, da política, da luta por justiça, das artes, etc. O contexto vocacional do cristão é geralmente sufocado por uma suposta urgência na salvação de almas e de engajamento no nível da igreja local. Mas como todos os cristãos invariavelmente têm corpos e vivem na dinâmica da ordem criacional estabelecida pelo próprio Deus, as atividades culturais inescapáveis envolvendo trabalho, criatividade, obediência civil, desfrute estético, passam a ser performadas com uma certa indiferença e até desleixo. É como se Deus não tivesse relação com estes campos da vida. Como consequência, os cristãos evangélicos se tornam reprodutores das formas culturais dominantes, que muitas vezes partem de orientações existenciais e de visões de mundo distintas, e até mesmo contrárias, às suas. É o caso do professor cristão que ensina teorias anticristãs na sala de aula pensando que o que Deus exige de si é apenas um bom testemunho, ou dedicação ao trabalho, esquecendo-se de que deveria amar e servir ao Senhor e ao próximo também com todo o seu entendimento.

A segunda tendência evangelical abrangente é uma espécie de ativismo triunfalista. Assim que alguma proposta de ação é divisada pela comunidade evangélica, refletindo o perfil de muitos de seus líderes, os cristãos passam a efetivar uma série de programas e eventos com o fim de alcançar suas metas, geralmente impulsionados por fortes apelos emotivos. O problema disto é que sem uma reflexão responsável e sóbria sobre seus próprios fundamentos de fé e a construção laboriosa de pontes de significado e discernimento de ações específicas em um mundo altamente complexo como o nosso, a maioria destes programas acaba por frustrar as expectativas originais, gerando frutos altamente questionáveis sobre sua validade e reflexo cristão. Temos visto isso no Brasil com o envolvimento evangélico com a política. Várias igrejas passaram a incluir, sobretudo nas últimas duas décadas, a participação e o engajamento político como algo legítimo a ser buscado e incentivado. E isto não está equivocado em si mesmo. Na prática, porém, o que temos visto após este engajamento excessivamente rápido e pragmático é que os políticos “enviados” por estas igrejas são, em grande maioria, um mal exemplo de serviço vocacional. Em uma pesquisa feita pela ONG Transparência Brasil em 2012, a bancada evangélica no congresso foi descrita como a mais ausente das seções do plenário, a que menos propôs projetos de lei, e a que tinha mais representantes, proporcionalmente a outras bancadas, envolvidos em processos de corrupção. Isto nos mostra que não basta se lançar em atividades e eventos contando com a aprovação divina de qualquer tipo de ação. Se não discernirmos os princípios orientadores que têm origem em nossa fé e as complexidades específicas dos campos de poder que hoje ordenam nossa sociedade, nossas ações serão medíocres e frustrantes.

Neste sentido, creio que a tradição reformacional pode auxiliar a comunidade cristã evangélica corrigindo de alguma forma estas duas tendências. Em relação ao isolacionismo, isto pode se dar incentivando a igreja de Cristo a exercer seus dons e talentos não somente no contexto congregacional, que dificilmente pode ser identificado com um espaço físico, mas também no contexto da comunidade dispersa de vocacionados. Pois na cultura cristãos agem em diversas esferas da vida e tipos de responsabilidades culturais e civis, como no comércio, no ensino, na ciência, nas artes, etc. Em relação ao segundo ponto, do ativismo, a tradição kuyperiana tem sido reconhecida como capaz de apontar horizontes de entendimento das ações necessárias em contextos sócio-culturais complexos. Para que os cristãos contribuam (e não dominem) culturalmente nas sociedades contemporâneas, se faz necessário discernir as formas de pensamento, os estatutos específicos, as liturgias incorporadas em cada campo de atuação. Em mais de cem anos de reflexão extensiva sobre a ação de cristãos nos mais diversos campos, com frutos expressivos apresentados, seja na política (e.g., a atuação do partido da União Cristã é um dos mais respeitados no contexto holandês atual), nas artes (e.g. cristãos respeitados em áreas de produção artística, como cinema e artes visuais – CIVA), jornalismo, direito, moda, reforma social, dentre outras áreas, a tradição kuyperiana pode ajudar os evangélicos a temperar seu ímpeto ativista com mais sabedoria e propriedade no discernimento necessário anterior às ações.  

Observamos uma demanda por livros, sites, blogs, vídeos que tratem sobre cosmovisão cristã e suas mais variadas abordagens, como você observa essa procura e que caminho recomenda para um estudo sistemático e crescente sobre o assunto?

Já existe uma literatura introdutória sobre estes temas e tradição na língua portuguesa, apesar de ainda não alcançar o público mais amplo. A procura por este tipo de abordagem tem crescido de forma exponencial no Brasil dos últimos anos. Quando começamos a compartilhar sobre cosmovisão cristã e a necessidade da construção de uma sabedoria cristã para lidar com temas atuais, por volta do ano 2003/2004, poucas pessoas tinham sequer noção sobre a necessidade de construção responsável de uma reflexão cristã sobre variados temas de pertinência cultural. O isolacionismo e ativismo abordados na segunda pergunta  eram os grandes responsáveis por esta “indiferença”. Hoje o cenário já é diferente. Creio que dois fatores colaboraram para isto. Primeiramente, o crescimento exponencial evangélico e a consequente necessidade desta comunidade mais expressiva em termos sociais de enfrentar demandas culturais inegáveis, como u mundo da academia, o engajamento político, a ação no mundo empresarial, etc. Em segundo lugar, eu mencionaria a conclusão prática que muitos chegaram de que os evangélicos não têm conseguido traduzir as riquezas do Evangelho em riqueza de participação social e cultural. Pelo contrário. Me lembro de um amigo próximo que disse que estava cansado de todos os fins de semana ir ao açaí ou à pizzaria gospel tomar Fanta e ouvir Fernandinho. Ou seja, a vida cristã deve ter mais a oferecer do que a participação monótona nos guetos de cultura gospel.

Minha dica àqueles que se interessam pela rica tradição cristã e pela necessidade de formar uma mentalidade cristã é de entrarem em contato com autores recentemente introduzidos por aqui e se envolverem pessoalmente. Dentre os que recomendaria estão o próprio Abraham Kuyper, Francis Schaeffer, Hans Rookmaaker, Herman Dooyeweerd, Egbert Schuurman, David Koyzis, Albert Wolters, Brian Walsh, Os Guinness, Nancy Pearcey, Steve Turner, Brian Godawa, Charles Colson, e algumas publicações nacionais como os livros de Maurício Cunha e Pedro Dulci e as obras editadas por mim e pelo Guilherme de Carvalho pela Editora Ultimato e as várias publicações do Guilherme de Carvalho disponíveis hoje pela internet. Indicaria também a aproximação e participação em organizações que expressam as crenças cristãs básicas enfatizadas pelo neocalvinismo como o CADI (Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral), a ABC² (Associação Brasileira de Cristãos na Ciência), a AKET (Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares), o L’Aabri em Belo Horizonte e os Amigos de L’Abri pelo Brasil, o L’Abrarte em Natal, enfim, organizações que compartilham e vivenciam estes princípios.

Como você define o Neocalvinismo holandês?

Em uma definição breve diria que o neocalvinismo holandês é um movimento de renovação espiritual e cultural iniciado no século XIX que entende a responsabilidade do Cristão e da Igreja de servirem seu Senhor como uma tarefa realizada diante de desafios sempre renovados à expressão da verdade básica de nossa fé: a de que Jesus Cristo é o Senhor de todas as coisas, aquele em que todas as coisas encontram seu significado e sentido último em todos os campos e esferas da vida humana.

Diante do crescente número de publicações no Brasil de material relacionado ao Neocalvinismo, e a grupos como a AKET e ABC², é notório que há uma movimentação para um trabalho que emprega esse conhecimento reformacional à missão, ou ao que muitos chamam de reformissão. Em sua opinião quais são os benefícios dessa movimentação e quais são os possíveis mal entendidos que devem ser esclarecidos em relação ao conceito calvinista de cultura, visto que há criticas ao pensamento kuyperiano de redenção da cultura?

Creio que alguns pontos têm de ficar bem entendidos em relação a esta proposta como forma de cautela para se evitar maus usos, o que já ocorreu historicamente. Primeiramente, ela não é perfeita e não é Palavra de Deus. Ou seja, a tradição kuyperiana é um esforço de servos falhos de Cristo a cumprirem seu papel diante dos desafios que o mundo presente nos apresenta. Portanto, o uso de suas propostas não deve ser dogmático ou fechado a correções e críticas. O que pode gerar uma espécie de idolatria neocalvinista. Um segundo ponto importante a se lembrar é que ao nos envolvermos com a cultura enquanto cristãos e igreja de Cristo, o que é inescapável e totalmente legítimo, não devemos assumir uma postura de desejo pelo poder ou de domínio cultural. Francis Schaeffer enfatizava um princípio cristão que deve ser caro aos que se envolvem intencionalmente na cultura: devemos fazer a obra do Senhor da forma do Senhor. Ou seja, Cristo serviu e modificou as formas culturais? Sim, isso é inegável. O mundo da cultura e da civilização nunca foi o mesmo após Cristo. A segunda pergunta é: como Cristo fez isso? E a resposta está em sua vida de serviço, sacrifício e cruz. Cristo nunca foi conivente com os sistemas de poder culturais vigentes, e sempre os enfrentou de forma aberta. Mas o espaço de mudança efetiva que conquistou não se deu por um embate direto com os poderes do mundo, senão por meio do serviço intencional e sacrificial. Haverá momentos em que a Igreja de Cristo terá poder nas mãos? Sim, e a história testifica disso. Mas em todos os momentos que a Igreja usou o poder para seu próprio benefício, ou para exercer um domínio excessivo, ela causou tanto mal quanto bem, oprimindo e violentando a dignidade de pessoas e comunidades a quem devia servir. Este é um cuidado que temos de ter enquanto cristãos que lidam com instâncias culturais que sempre compreendem poder. O cultivo da civilidade no espaço público e a presença constante junto aos marginalizados da sociedade são práticas importantes a cristãos que assumem um quadro de referência kuyperiano para a missão. Quanto aos pontos positivos, creio que já tenha respondido nas perguntas 1 e 2 feitas acima.

Vista a grande crise política, moral e ideológica que tem se instaurado no Brasil, qual seria -em sua análise - a contribuição da tradição neocalvinista para uma filosofia e uma ciência política que rompam com essa vacuidade entre teoria política e prática econômica e administrativa no país?

Creio firmemente que o kuyperianismo apresenta uma alternativa possível ao esgotamento crescente aos modelos ideológicos que prevalecem no embate político vigente. Alguns pontos confirmam, a meu ver, esta possibilidade. Primeiramente, o kuyperianismo é uma das únicas tradições teológicas contemporâneas (talvez junto da articulação anabatista contemporânea de John Howard Yoder e a Otodoxia Radical inaugurada por John Milbank) que lançam um olhar crítico para a origem secular e humanista das tendências polares das ideologias políticas contemporâneas. Enquanto esta raiz originadora dos polos do espectro político (direita/esquerda) não for revelada em sua fragilidade original comum, que se relaciona com as teorias de contrato social artificiais como originadoras das instancias institucionais que configuram a sociedade, não poderemos avançar para além deste embate polarizador que paralisa, mais do que permite o florescimento, dos ricos potenciais presentes em nossa gente, sociedade e cultura.

Em segundo lugar, a tradição kuyperiana apresenta uma filosofia social que respeita a pluralidade das instituições positivadas historicamente que tornam a vida humana e suas relações sociais mais plenas e potencializadas, o que deveria ser o fim de toda política. Isto ocorre pela capacidade de localizar reducionismos inerentes às teorias seculares e modernas de sociedade, reconhecendo o foco absoluto de poder não em alguma instituição específica, mas em Deus que transcende nossa presente ordem social. Ou seja, ao reconhecer que o poder pertence somente a Deus, que está para além de nossas várias instituições e estruturações de poder, torna-se possibilitada uma filosofia social (um “mapa” da diversidade e coerência social institucional e suas diversas relações) plural e inclusiva. A família, o Estado, as instituições de fé (religiosas), os centros de produção científica, as instituições de arte e manifestação estética, as organizações voluntárias de amparo, as unidades produtivas comerciais, as demais instituições jurídicas e de promoção da justiça (além do Estado), os centros de potencializaçãode trocas comerciais (bolsa de valores, câmaras de comércio, etc), as instâncias de expressão da vida individual, dentre outras, passam a encontrar seu lugar de funcionamento e ordenação apropriadas no contexto social sem ameaçar a existência e a direção interna de outras instituições e instâncias. Podemos chamar a isso de um pluralismo estrutural, ou uma pluralidade societal, possibilitada pelo correto entendimento do conceito de esferas de soberania e a necessidade e de relativização do poder nos domínios culturais humanos.

Um terceiro elemento de contribuição do kuyperianismo em relação à política é a introdução de uma visão, digamos, agostiniana de mal e conflito social, a qual evita os erros comuns dos maniqueísmos sociais das teorias seculares. Visões binárias da sociedade que localizam o conflito em estruturas previamente definidas sempre são insuficientes de realizar uma leitura da realidade dinâmica e complexa das sociedades. A opressão nem sempre está na relação patrão/empregado, ou burguesia/proletariado, ou mercado/Estado, ou burocracia estatal/trocas individuais. Estas formas consagradas de entender a sociedade tendem a cindir o tecido social e a tornar impossível o discernimento para a aplicação de justiça pública efetiva na relação entre pessoas e grupos na sociedade (função relacionada ao Estado). Ao abrir mão de uma visão maniqueísta de mal social, podemos enxergar de forma mais ampla e específica em quais instâncias ocorre a injustiça e quais são os perpetradores e as vítimas. Em dado momento, a sociedade talvez precise diminuir o tamanho da burocracia estatal e seu poder sobre instancias específicas da sociedade. Em outro, um Estado mais forte e presente pode ser necessário. Em um contexto, a justiça tem de se dar contra o poder abusivo dos sindicatos e instâncias de proteção dos direitos de classe, em outros atuar contra a injustiça realizada pela classe empregadora e detentora de capital econômico. Ou seja, ao mesmo tempo em que promove uma pluralidade estrutural, a visão kuyperiana permite uma visão mais dinâmica e fenomenológica de conflitos presentes no seio da sociedade, superando as visões limitadoras e insuficientes típicas do maniqueísmo secularista, à direita ou à esquerda. Fomentar a contribuição específica de cada instituição social para a potencialização da vida humana em um arranjo de unidade e diversidade cada vez mais crescente, corrigindo pontualmente as injustiças reais que surgem no processo histórico, seria parte do horizonte de uma proposta política reformacional.

Um último ponto de contribuição, embora existam muitos outros para compartilhar (talvez em outra oportunidade), é a capacidade de promoção de uma secularidade não utópica da tradição kuyperiana, permitindo um pluralismo real e democrático em sociedades complexas checando possíveis autoritarismos e totalitarismos. Por ser uma teoria regulada pelo princípio de esperança cristã (em termos sociais, o ceticismo diante de projetos humanos utópicos), esta tradição possibilita que a diversidade seja respeitada sem que seu projeto específico tenha de permear todas as relações sociais. Ou seja, o conceito de secular em sua formulação original (como um tempo a ser pacientemente aguardado na promoção da virtude entre a parousia de Cristo e o eschaton futuro) é empregado enquanto uma disciplina constante de exercício cético diante das tentativas de imposição de um sistema totalitário sobre certo domínio social sob a alegação de necessidade para a resolução dos conflitos presentes. Ao mesmo tempo em que este princípio regulador da esperança/secularidade permite que outras visões sejam expressas na sociedade, ela combate qualquer forma de imposição totalitária, até mesma por arte de cristãos, resguardando os princípios do Estado democrático de direito e a pluralidade de visões de mundo e sua expressão política. 

Rodolfo, para finalizarmos nossa entrevista, qual seria suas indicações bibliográficas para aqueles que querem se inteirar sobre a tradição kuyperiana e quais conselhos daria a quem deseja colocar em prática aquilo que o pensamento reformacional tem falado?

Posso indicar alguns livros básicos nesta tradição. Talvez o primeiro seja o próprio Calvinismo, de Abraham Kuyper (Ed. Cultura Cristã), que de certa forma inaugura o movimento e delineia inicialmente seu programa. Os livros de Herman Dooyeweerd poderiam vir como um complementos a este, aprofundando nos insights de Kuyper e ampliando sua capacidade de entendimento e aplicações. Em língua portuguesa temos: No Crepúsculo do Pensamento Ocidental (Ed. Hagnos), Estado e Soberania (Ed. Vida Nova) e Raízes da Cultura Ocidental (Ed. Cultura Cristã). Na área da política indico o Visões e Ilusões Políticas, de David Koyzis (Ed. Vida Nova). Na área das artes indico os livros de Hans R. Rookmaaker A Arte não Precisa de Justificativa (Ed. Ultimato) e Arte Moderna e Morte de Uma Cultura (Ed. Ultimato). Em relação à ciência e tecnologia indico o Fé, Esperança e Tecnologia, de Egbert Schuurman (Ed. Ultimato). Como introdução geral à tradição kuyperiana indico nossos livros pela Ed. Utimato: Cosmovisão Cristã e Transformação e Fé Cristã e Cultura Contemporânea.

Em relação à prática, busque se inteirar, ler sobre a tradição e compreender suas propostas. Em um segundo momento, sugiro o envolvimento pessoal com algumas das atividades e comunidades que expressam esta visão. O L’Abri neste ponto é muito importante.

6 de dez. de 2014

Kuyper e o Conflito de Fé e Ciência

Por Rodolfo Amorim

Não verdade não existe, segundo Kuyper, um conflito básico entre fé e ciência! Nenhuma surpresa. É que a ciência, quando tenta estabelecer a relação entre sujeito e objeto, necessita pressupor pela fé vários princípios não verificáveis racional ou empiricamente. Dentre estes estão: a autoconsciência do investigador; o trabalho acurado dos sentidos na medida em que este fornece informações reais sobre a externalidade; o funcionamento correto das leis do pensamento atuando no sujeito da investigação; fé em algo universal escondido por detrás dos fenômenos especiais; fé na vida; e fé nestes princípios gerais dos quais o sujeito procede em qualquer empreendimento científico (2002: 138).
Em sua obra Sacred Theology, Kuyper parte de uma reflexão interna do próprio processo de fundamentação da ciência, dialogando com propostas empiristas e racionalistas, afirmando a base cristã fundamental do próprio empreendimento científico, o qual o influenciará na proposta de uma ciência cristã. Após explorar os aspectos da relação entre sujeito e objeto Kuyper afirma:
Uma vez que o objeto não produz o sujeito, e o sujeito não produz o objeto, o poder que liga os dois organicamente juntos precisa necessariamente ser buscado fora de ambos (…) e por mais que ponderemos ou tentemos especular, não há forma de conceber como esta relação de afinidade orgânica se apresenta (…) sob a qual o edifício da ciência é erigido, até que às mãos da Escritura Sagrada confessamos que o Autor do cosmos criou o homem no cosmos como micro-cosmos conforme sua imagem e semelhança. (Kuyper, 1980:19)
Um segundo aspecto fundamental na proposta kuyperiana que fundamenta sua proposta de duas ciências é a afirmação de que o sujeito do fazer científico opera basicamente em um processo de encadeamento causal a partir de princípios firmemente estabelecidos em sua consciência. Segundo Kuyper, o grau de certeza que uma pessoa tem de sua convicção não pode ser exposto sem causar a antítese com o resultado científico de outros, se tornando fator marcante no resultado científico. E isto se torna ainda mais presente quando se trata de uma ciência espiritual, cujo objeto é psíquico. A consciência subjetiva de comunidades inteiras, das quais procedem os princípios gerais que orientam o empreendimento científico, operam fortemente na direção das ações humanas, moldando-os conforme seus princípios, seja na ciência, na arte, religião, vida social, e negócios (1980: 49).

Como aspecto de diferenciação básica entre duas propostas científicas está à noção kuyperiana depalingenesis, ou nova criação. A dogmática descreve, segundo Kuyper, a realidade experimentada pelos filhos de Deus, de que ocorre no homem regenerado uma transformação fundamental que está acima da consciência humana, e que a transforma de forma radical, uma regeneração, um nascer de novo, seguido por uma iluminação, que modifica o homem em seu mais interno ser. Esta distinção gerada pela palingênese não é em grau ou especificidade, mas de tipo, como na relação entre uma arvore enxertada e uma selvagem, que gerarão frutos completamente distintos. Segundo Kuyper:
Nos falamos enfaticamente em dois tipos de pessoas. Ambos são humanos, mas internamente são distintos um do outro, e consequentemente sentem um conteúdo distinto emergindo de sua consciência; assim eles encaram o cosmos de diferentes perspectivas, e são impelidos por diferentes impulsos. E o fato de que há dois tipos de pessoas ocasiona a necessidade do fato de que há dois tipos de vida e de consciência de vida, e de dois tipos de ciência. (1980: 51)
Para Kuyper, assim, a aceitação da unidade da ciência seria a negação do fato da palingeneses, e que por princípio conduz à negação da própria religião cristã. Assim, mesmo operando com impulsos em direção ao fim da ciência e utilizando métodos semelhantes, os dois modelos de ciência partem de princípios distintos, e chegarão a resultados distintos, estabelecendo a afirmativa de que no esforço científico destas duas comunidades estão sendo construídos dois edifícios do conhecimento científico, e não um. E embora a palingeneses não interfira sobre a capacidade de apreensão dos sentidos e do uso das leis da lógica, presente no início de qualquer processo científico, a interpretação posterior presente em todas as ciências, seja nas naturais ou espirituais, conduzirá o empreendimento científico a resultados claramente distintos.
Somente a partir de uma cosmovisão cristã abrangente pode a ciência ter o seu domínio restaurado, ser favorecida em sua busca como pela própria glória de Deus, e produzir resultados verdadeiros, em consonância com o estado das coisas na realidade do universo criado por Deus compreendido a partir de sua revelação.
Referências:
KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã. 2002.
KUYPER, Abraham. Sacred Theology. Delaware: Associated Publishers and Authors, 1980.
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Fonte: O Teste da Fé Brasil

18 de nov. de 2014

Existe um lugar para a Arte, no Calvinismo?

Por Abraham Kuyper

O Calvinismo não Criou Estilo Próprio Exatamente por seu Estágio Superior de Desenvolvimento Religioso

Assim, por si só, deve ser negada a possibilidade que um estilo de arte próprio possa originar-se independentemente da religião; mas mesmo se fosse de outro modo, e este é meu segundo argumento, ainda seria ilógico exigir do Calvinismo uma tendência secular como esta. Pois, como vocês podem desejar que um movimento de vida, que encontrou a fonte de seu poder na acusação de todos os homens e de toda vida humana perante a face de Deus, tivesse visto o impulso, a paixão e a inspiração para sua vida fora de Deus em um campo tão excessivamente importante como este das poderosas artes? Portanto, não resta nenhuma sombra de realidade na reprovação desdenhosa de que a não criação de um estilo arquitetônico próprio é uma prova conclusiva da pobreza artística do Calvinismo. Somente sob os auspícios de seu princípio religioso o Calvinismo poderia ter criado um estilo de arte geral e exatamente porque tinha alcançado um estágio muito mais alto de desenvolvimento religioso, seu próprio princípio proibia a expressão simbólica de sua religião em formas visíveis e sensoriais.

Existe um Lugar para Arte, no Calvinismo?

Por isso, a questão deve ser formulada de modo diferente. E isso nos conduz ao nosso segundo ponto. A questão não é se o Calvinismo com seu ponto de vista superior produziu o que não era mais permitido criar, a saber, um estilo de arte geral próprio dele, mas qual interpretação sobre a natureza da arte flui de seu princípio. Em outras palavras, há na biocosmovisão do Calvinismo um lugar para a arte, e se sim, qual lugar? Seu princípio é oposto a arte, ou, se julgado pelos padrões do princípio calvinista, um mundo sem arte perderia uma de suas esferas ideais? Eu não falarei agora do abuso, mas simplesmente do uso da arte. Em cada campo, a vida é obrigada a respeitar as dimensões desse campo. A transgressão dos domínios dos outros é sempre ilegal; e nossa vida humana atingirá sua mais nobre harmonia somente quando todas as suas funções cooperarem na justa proporção para nosso desenvolvimento geral. A lógica da mente não pode desprezar os sentimentos do coração, nem o amor pela beleza deveria silenciar a voz da consciência. Por mais santa que a Religião possa ser, ela deve guardar-se dentro de seus próprios limites, para que não se degenere em superstição, insanidade ou fanatismo ao atravessar suas linhas. E, do mesmo modo, a tão exuberante paixão pela arte que despreza o sussurro da consciência, deve resultar num desacordo desagradável completamente diferente do que os gregos exaltavam em seus kalokagathos.[1]

Calvino se Opôs ao Uso Ilegítimo da Arte

O fato, por exemplo, de que o Calvinismo se dispôs contra toda diversão ímpia com a honra da mulher, e estigmatizou toda forma de prazer artístico imoral como uma degradação, encontra-se portanto fora de nosso alcance. Tudo isto denuncia adequadamente o abuso, embora não tenha qualquer peso quanto a questão do uso legítimo. E o próprio Calvino não se opôs ao uso legítimo da arte, mas encorajou e até mesmo recomendou, como suas próprias palavras prontamente provam. Quando a Escritura menciona a primeira aparição da arte nas tendas de Jubal, que inventou a harpa e o órgão, Calvino recorda-nos enfaticamente que esta passagem trata dos “excelentes dons do Espírito Santo”. Ele declara que, quanto ao instinto artístico, Deus tinha enriquecido Jubal e sua posteridade com raros dons naturais. E, abertamente, declara que esses poderes inventivos da arte são o mais evidente testemunho do favor divino. Ele declara mais enfaticamente ainda, em seu comentário sobre Êxodo, que “todas as artes vêm de Deus e devem ser consideradas como invenções divinas”.

As Artes Procedem do Espírito Santo

Segundo Calvino, nós devemos estas coisas preciosas da vida natural originalmente ao Espírito Santo. Em todas as Artes Liberais, tanto nas mais como nas menos importantes, o louvor e a glória de Deus devem ser acentuadas. As artes, diz ele, foram dadas para nosso conforto, nesse nosso estado deprimido de vida. Elas reagem contra a corrupção da vida e da natureza pela maldição. Quando seu colega, o Prof. Cop, levantou armas em Genebra contra a arte, Calvino propositadamente instituiu medidas, como ele escreve, para restaurar esse homem louco ao bom senso e a razão. Calvino declara ser indigno de refutação o preconceito cego contra a escultura com base no Segundo Mandamento. Ele exalta a música como um poder maravilhoso para comover corações e para dignificar tendências e princípios morais. Entre os excelentes favores de Deus para nossa recreação e prazer, ela ocupa em sua mente o posto mais alto. E mesmo quando a arte se rebaixa para tornar-se o instrumento de mero entretenimento para o povo, afirma que este tipo de prazer não lhe deveria ser negado.

Em vista de tudo isto, podemos dizer que Calvino apreciava a arte em todas as suas ramificações como um dom de Deus, ou mais especialmente, como um dom do Espírito Santo; que ele entendeu plenamente os profundos efeitos produzidos pela arte sobre a vida das emoções; que ele apreciava o fim pelo qual a arte fora dada, a saber, que por ela poderíamos glorificar a Deus, dignificar a vida humana, e beber na mais alta fonte de prazeres, sim até mesmo no esporte comum; e, finalmente, que longe considerar a arte como simples imitação da natureza, ele lhe atribuiu a nobre vocação de desvendar para o homem uma realidade mais alta do que foi oferecida a nós pelo mundo pecaminoso e corrupto.

A Arte Revela uma Realidade Superior à Oferecida pelo Mundo

Ora, se isso implicava em nada mais que a interpretação pessoal de Calvino, certamente seu testemunho não teria valor conclusivo para o Calvinismo em geral. Mas quando observamos que o próprio Calvino não era artisticamente desenvolvido, e que por isso ele deve ter inferido seu breve sistema de Estética [2] de seus princípios, ele pode ser reconhecido como tendo exposto a consideração calvinista sobre a arte como tal. Para ir direto ao coração da questão, comecemos com a última declaração de Calvino, a saber, que a arte revela para nós uma realidade mais alta do que é oferecida por este mundo pecaminoso.

Vocês estão familiarizados com a questão, já mencionada, se a arte deveria imitar a natureza ou se deveria transcendê-la. Na Grécia uvas eram pintadas com tal precisão que os pássaros eram iludidos por sua aparência e tentavam comê-las. E esta imitação da natureza parece ter sido o ideal maior da escola Socrática. Aqui, encontra-se a verdade muitas vezes esquecida pelos idealistas, de que as formas e relações exibidas pela natureza são e sempre devem ser as formas e relações fundamentais de toda realidade atual, e uma arte que não observa as formas e movimentos da natureza nem escuta seus sons, mas arbitrariamente gosta de flutuar acima dela, se degenera num bárbaro jogo de fantasia.

Mas por outro lado, toda interpretação idealista da arte deveria ser justificada em oposição à puramente empírica, sempre que a empírica confina sua tarefa a mera imitação. Por isso, muitas vezes é cometido na arte o mesmo equívoco cometido pelos cientistas quando limitam sua tarefa científica à mera observação, computação e relatório acurado dos fatos. Pois do mesmo modo como a ciência deve subir dos fenômenos para a investigação de sua ordem inerente, a fim de que o homem, enriquecido pelo conhecimento desta ordem, possa reproduzir espécies de animais, flores e frutos mais nobres do que a própria natureza poderia produzir, assim a vocação da arte é, não simplesmente observar cada coisa visível e audível, a fim de apreendê-la e reproduzi-la artisticamente, mas muito mais, descobrir naquelas formas naturais a ordem da beleza, e enriquecido por este conhecimento superior, produzir uma beleza mundial que transcende a beleza da natureza.

O Calvinismo Compreendeu a Influência do Pecado

Isto é o que Calvino afirmou: a saber, que as artes exibem dons que Deus colocou à nossa disposição, agora que a verdadeira beleza fugiu de nós como triste consequência do pecado, a verdadeira beleza fugiu de nós. Sua decisão aqui depende inteiramente de sua interpretação do mundo. Se vocês consideram o mundo como a realização do bem absoluto, então não há nada superior, e a arte não pode ter outra vocação senão copiar a natureza. Se, como o panteísta ensina, o mundo segue da imperfeição para a perfeição por um processo lento, então a arte torna-se a profecia de uma fase adicional da vida por vir. Porém, se vocês confessam que o mundo outrora foi belo, mas que pela maldição tornou-se desfeito e por uma catástrofe final deve passar para seu pleno estado de glória, superando até mesmo a beleza do paraíso, então a arte tem a tarefa mística de lembrar-nos, em suas produções, da beleza que foi perdida e de antecipar seu perfeito brilho vindouro. Este último caso mencionado é a confissão calvinista. O Calvinismo compreendeu, mais claramente do que Roma, a influência horrenda e corruptora do pecado; isto o levou a maior apreciação da natureza do paraíso na beleza da justiça original; e guiado por esta encantadora recordação o Calvinismo também profetizou uma redenção da natureza exterior, a ser realizada no reino da glória celestial. A partir deste ponto de vista, o Calvinismo honrou a arte como um dom do Espírito Santo e como uma consolação em nossa vida atual, habilitando-nos a descobrir em e atrás desta vida pecaminosa um pano de fundo mais rico e mais glorioso. Considerando as ruínas desta criação outrora tão maravilhosamente bela, para o calvinista a arte chama a atenção tanto para as linhas do plano original ainda visíveis quanto, o que é ainda melhor, para a esplêndida restauração pela qual o Supremo Artista e Construtor Mestre um dia renovará e até mesmo intensificará a beleza de sua criação original.

A Arte não Pode Originar-se do Diabo

Portanto, se a interpretação pessoal de Calvino concorda inteiramente com a confissão calvinista sobre este ponto principal, o mesmo se aplica ao próximo ponto em questão. Se para o Calvinismo a soberania de Deus é e continua sendo seu imutável ponto de partida, então a arte não pode originar-se do Diabo; pois Satanás é destituído de todo poder criativo. Tudo que ele pode fazer é abusar das boas dádivas de Deus. Nem pode originar-se com o homem, pois, sendo ele mesmo uma criatura, o homem não pode senão empregar os poderes e dons colocados por Deus à sua disposição. Se Deus é e continua sendo soberano, então a arte não pode produzir nenhum encantamento exceto de acordo com as ordenanças que Deus ordenou para a beleza, quando ele, como o Supremo Artista, chamou este mundo à existência.

Deus Soberano Confere os Dons Artísticos

E além disso, se Deus é e continua sendo soberano, então ele também confere estes dons artísticos a quem ele quer, primeiramente, então, à posteridade de Caim e não a de Abel; não como se a arte fosse Cainita, mas a fim de que aquele que pecou contra os mais altos dons devesse ao menos, como Calvino tão belamente disse: nos menores dons da arte receber algum testemunho do favor Divino. Esta habilidade e capacidade artística como tal, pode ter lugar na natureza humana, nós a devemos à nossa criação segundo à imagem de Deus. No mundo real, Deus é o Criador de todas as coisas; o poder de produzir coisas realmente novas é seu somente, e portanto continua a ser sempre o artista criador. Como Deus, somente ele é o original, nós somos apenas os portadores de sua Imagem.

Nossa capacidade para criar segundo ele e segundo o que ele criou, pode consistir somente na criação imaginária da arte. Assim nós, à nossa maneira, podemos imitar o trabalho manual de Deus. Nós criamos um tipo de cosmos em nosso monumento Arquitetônico; embelezamos formas da natureza na Escultura; em nossa Pintura reproduzimos a vida, animada por linhas e cores; transfundimos as esferas místicas em nossa Música e em nossa Poesia. E tudo isto porque a beleza não é o produto de nossa própria fantasia, nem de nossa percepção subjetiva, mas tem uma existência objetiva, sendo ela mesma a expressão de uma perfeição Divina.

Arte e a Criação

Após a criação, Deus viu que tudo era bom. Imagine que cada olho humano fosse fechado e cada ouvido humano tapado, ainda assim a beleza permanece, e Deus a vê e a ouve, pois, não somente “seu eterno poder”, mas igualmente sua “divindade”, desde o momento da criação têm sido percebidos em sua criação, tanto espiritual como corporalmente. Um artista pode observar isto em si mesmo. Se ele compreende que sua própria capacidade artística depende de ter um olho para a arte [senso estético], deve necessariamente chegar à conclusão de que “o olho” original para a arte está no próprio Deus, cuja capacidade para produção artística é plena, e segundo esta imagem foi feito o artista entre os homens.

Sabemos isto a partir da criação ao nosso redor, do firmamento que forma um arco sobre nós, do luxo abundante da natureza, da riqueza de formas no homem e no animal, do som das corredeiras e do cântico do rouxinol; como pois toda esta beleza poderia existir exceto se criada pelo Único que preconcebeu a beleza em seu próprio ser e a produziu de sua própria perfeição Divina? Assim, vocês veem que a soberania de Deus e nossa criação segundo sua semelhança, necessariamente levaram a esta interpretação elevada da origem, da natureza e da vocação da arte, como adotada por Calvino, e ainda aprovada por nosso próprio instinto artístico. O mundo dos sons, o mundo das formas, o mundo das cores e o mundo das ideias poéticas não pode ter outra fonte senão Deus; e é nosso privilégio, como portadores de sua imagem, ter uma percepção deste mundo belo, para reproduzir artisticamente, para gozá-lo humanamente.
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NOTAS:
[1] - NT - Do grego kalokagateo , praticar a virtude, kalokagathia de kalos + agatos , honestidade, lealdade perfeita.
[2] - Estética pode ser definida como a ciência da beleza e do gosto; o ramo do conhecimento que pertence às belas artes e a arte crítica. Não há uma estética universalmente aceita. Há três escolas: a sensorialística (Hogarth); a empírica (Helmholtz); e a idealística, devendo sua origem a Kant.

Fonte: Monergismo - Extraído da introdução do excelente livro “Calvinismo”, de Abraham Kuyper, publicado no Brasil pela Editora Cultura Cristã.