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4 de abr. de 2016

Cosmovisão Sob Perspectiva - Criacional, Redentora e Escatológica

Por Thomas Magnum[i]


O passo mais importante para o cristão é tornar-se informado sobre a cosmovisão cristã, uma visão abrangente e sistemática da vida e do mundo como um todo. Nenhum crente hoje pode ser realmente eficaz na arena das ideias até que tenha sido treinado a pensar em termos de cosmovisão. (Ronald Nash)


Não raro, a aplicação do estudo teológico as mais variadas esferas da vida humana se limitam a comunidade cristã local e a seu calendário de programações semestrais ou anuais; com conferências, congressos, simpósios etc. Não sou contra essas programações, pelo contrário participo tanto ouvindo, como falando em eventos assim e acho benéfico, mas, o problema é que esse tipo de reflexão não pode se limitar a períodos programados.

 Ao pedir que cristãos leigos ou mesmo seminaristas apliquem o estudo teológico de forma contextual a sociedade, arte, música, família, relacionamentos, atividade profissional e atividades intelectuais ou acadêmicas deve-se saber que esbarraremos em grandes muralhas que precisam ser transpostas. A aplicação da teologia na vida prática muitas vezes é um grande dilema para muitos cristãos. Como ser um profissional para glória de Deus ou como ser um pai ou mãe par glória de Deus? Ou mesmo, como ser um pintor ou escultor ou poeta para glória de Deus? Por vivermos num contexto secularizado e como dizia Francis Schaeffer pós-cristão, temos dificuldades enormes para equiparar nossa vida de forma integral com o ensino do cristianismo. Ao falarmos da visão teológica é necessário que esclareçamos alguns pontos importantes. Todo homem possui a semen religionis (semente da religião), todo homem ou mulher tem afeições religiosas, sejam essas direcionadas corretamente ao Deus da Bíblia ou a um deus criado pela imaginação humana.

Ao tratarmos de culto e cultura estaremos em campos paralelos, à prática cultural é identificável pela prática religiosa de indivíduos, grupos sociais, cidades, países ou num contexto mundial. A visão teológica está presente em todos os contextos culturais, o missiólogo e antropólogo Ronaldo Lidório nos diz que

Observar a cultura como ela é (a partir de uma observação êmica) e estudá-la à luz de um processo bíblico (observação teológica) é um exercício válido para todos os que lidam com a exposição e a vivência do evangelho com outras culturas, a fim de entender bem como aquele valor bíblico está de fato sendo compreendido e aplicado pelo grupo receptor [ii].

A observação pelo espetro sócio-cultural como diz Lidório em seu livro Comunicação e Cultura não pode ser apenas pelos primas ético e êmico, a partir de meus valores culturais e a partir somente dos valores culturais do outro, daquele que será receptor da mensagem do evangelho, mas sim, por uma observação êmico-teológica num contexto missiológico. A cultura também é beneficiada pela graça comum de Deus em muitos aspectos, no nosso caso no Ocidente temos uma forte influência da moral cristã. O pensamento social e político em muitas esferas nacionais são fruto da cristandade. No entanto há uma dificuldade de empregabilidade dos ensinos cristãos a uma prática ética, esta prática não tem compromisso com a Escritura Sagrada. Quando um contabilista é tentado a realizar manobras ou transações que chocam com o ensino cristão? O que fazer? É evidente que a resposta a essa pergunta é a mesma para toda a ética ensinada pelo cristianismo que são fruto da lei de Deus, não furtarás. 

A Bíblia é a lente pela qual devemos ler o mundo. O cristianismo é a única forma correta de ler a sociedade em todas as suas camadas – famíliar, política, educacional, artística, relacional. Nosso grande desafio de fato é uma visão teológica teoreferente. No desenvolvimento do pensamento cristão a cristandade foi tentada a mudar sua referência teológica de Deus para uma referência antropocêntrica, houve uma convergência para o homem, centralizando a criatura. 

Precisamos ter uma visão teoreferente, Deus como referencial não só para a vida em comunidade de fé, mas, nosso papel na sociedade, na academia, na vizinhança, na família. Essa visão será fruto inicialmente de uma correta apreensão da criação descrita nas Escrituras Sagradas.

A doutrina da criação é de grande importância para uma cosmovisão teoreferente, se não houver uma correta abordagem da origem do mundo e do homem não se obterá uma completa e correta concepção do propósito para o qual o homem fora criado, para o qual o mundo fora criado. A criação ex nihilo é nosso ponto de partida para uma cosmovisão cristã bíblico-teológica tendo Deus como o ponto central de sua gênese ao seu sentido último. Franklin Ferreira nos diz que

Esse Deus criou por seu poder todas as coisas do nada, e, originalmente, toda a criação era boa. Essa noção da criação do nada é importantíssima para a fé cristã. A expressão latina é ex nihilo. Deus não precisou de nada preexistente para criar. O Deus Eterno cria tudo do nada, sem precisar de nenhuma ajuda. Portanto, não havia nenhuma matéria prévia ao lado de Deus na criação. Deus cria a matéria. Aliás, Deus cria o próprio tempo. Deus cria a história. Tudo foi criado por Ele. Deus criou toda a criação muito boa. Gênesis 1.1-31 afirma esta verdade seis vezes. Deus cria e diz: “É bom” (Gn 1.10,12,18,21,25,31). Deus cria, e é bom. E no final do relato bíblico, Deus cria e diz: “Muito bom”. E Deus cria todas as coisas para que estas anunciem sua glória, amor e bondade [iii].

Deus não precisava criar, afinal, Deus não precisa de nada, se precisasse não era Deus. Ele decidiu criar em um ato de soberania e sabedoria divina e o propósito dessa criação é sua glória. Deus criou do nada, seu eterno poder criou de forma boa, sua criação segue seu propósito, seu decreto estabelece a história da humanidade, sua providência guia o mundo a encarnação do seu eterno propósito, trazendo a cabo o que foi estabelecido por seu decreto eterno.

O estudo dos decretos leva naturalmente à consideração da sua execução, e esta começa com a obra da criação. É a primeira, não somente em ordem cronológica, mas, também como prioridade lógica. É o começo e a base de toda revelação divina e, consequentemente, é também o fundamento de toda vida ética e religiosa. A doutrina da criação não é exposta na Escritura como uma solução filosófica do problema do mundo, mas, sim, em seu significado ético e religioso, como uma revelação da relação do homem com seu Deus. Ela salienta o fato de Deus é a origem de todas as coisas, e de que todas as coisas Lhe pertencem e Lhe estão sujeitas. O conhecimento desta doutrina só se obtém da Escritura e se aceita pela fé (Hb 11.3)[iv].

Fica entendido que por nossa perspectiva teológica é incoerente interpretar a criação e seu propósito sem o decreto de Deus. Como nos disse Berkhof : o estudo dos decretos nos levam à consideração lógica da sua execução. Sem essa compreensão a partir do decreto de Deus na criação toda ordem do mundo é adulterada, somente através do que diz a Bíblia sobre o mundo e a finalidade de sua existência podemos ter um verdadeiro entendimento da criação e sua ordem missional [v]. Como dito anteriormente essa adoração do universo e toda a criação de Deus lhe é prestada como finalidade, o telos. Deus, sendo Deus não precisa de nada nem de ninguém como Hodge afirma:

[...] À luz da auto-suficiência absoluta de Deus, deduz-se que a criação não foi designada para suprir ou satisfazer qualquer necessidade de sua parte. Ele não é mais perfeito ou mais feliz por haver criado o mundo. Além disso, deduz-se da natureza de um ser infinito que a razão (ou seja, tanto o motivo quanto o fim) da criação deve estar  nele mesmo. Como todas as coisas são dele e por meio dele, assim também são para ele[vi].

O fato da criação não alterar em nada o caráter de Deus nos é um tema caro na teologia sistemática, Deus não se tornou criador, mas é o eterno criador. Deus é imutável e antes do tempo existir Deus era Deus, auto-suficiente, o Eu Sou o que Sou. Essa independência de Deus e sua suficiência nele mesmo o eleva a um Ser necessário para explicar o sentido da criação. Nos diz Bavinck que

[...] Deus é o Eterno: nele não há passado nem futuro, nem transformação e nem mudança. Tudo o que ele é, é eterno: seu pensamento, sua vontade, seu decreto. Eterna nele é a ideia do mundo, que ele pensa e expressa no Filho; eterna nele também é a decisão de criar o mundo; eterna nele é a vontade de que o mundo seja criado no tempo; eterno nele também é o ato de  criar  como um ato de Deus, uma ação tanto interna quanto imanente. Deus não se tornou Criador, de modo que, primeiro , por um longo tempo, ele não criou e depois criou. Em vez disso ele é o Criador Eterno, e, como Criador, ele era o Eterno, e como o Eterno, ele criou [vii].

A observação por meio sociocultural não é suficiente para uma conceituação antropológica.

O estudo teológico não tem por obrigação somente a instrução dos cristãos no âmbito devocional e eclesiástico. Toda construção teológica desembocará em resultados práticos na vida de um receptor, daquele que for recipiente do discurso dogmático. A teologia não serve como um depósito de debates infindáveis e sem utilidade (embora tenha sido assim em muitos casos), a teologia deve atender e responder questões ligadas a Deus, a sua igreja, ao homem como ser criado e onde ele está inserido – a sociedade – a teologia versa ou dialoga com todas as áreas do conhecimento, sobrepujando-as, a teologia é por assim dizer superior a todos os campos de conhecimento, por ter como objeto de estudo a revelação escrita de Deus. Com isso não estou invalidando a importância dos variados campos do saber, pelo contrário, Deus tem dois “livros” que o revelam, a revelação geral e a especial/histórico-redentiva. As duas, com distinta importância, mas, a última como superior a primeira conforme nos mostra o Salmo 19. 

A teologia reformada tem sido um baluarte desde a reforma protestante. Lutero, Calvino e os demais reformadores foram pensadores sociais também, sua teologia era missional, encarnacional, aplicada a realidade de sua época de forma que o Evangelho responde questões referentes ao homem e seu habitat. Toda construção da antropologia social irá versar sobre questões contingentes e não contingentes em relação à vivência humana ou a seus aspectos observacionais, psicológicos. Conquanto muitas vezes ou a maioria delas, essas observações são tomadas como axiomáticas de forma que tais observações acabam ser tornando “canônicas” na determinação de quem é o homem, o que ele faz aqui, qual é sua função no âmbito social e qual é o propósito de sua vida. Toda essa construção tem um viés ideológico e espiritual, tudo que promove exame da persona irá atrelar-se ou pelo menos tentar ligar-se a realidade, o problema é que a realidade acerca do que é o homem e seu propósito escatológico somente pode ser determinado por uma conceituação fora do homem. A forma de saber quem é o homem e porque ele está aqui é algo espiritual, nem o epicurismo, nem o marxismo, nem o freudismo, nem o psicologismo, nem o sexismo, nem o feminismo, nem socioconstrutivismo tem condições de determinar o que é o homem, a antropologia através de suas investigações observacionais pode até eximir algum raio de luz em relação ao que é o homem, mas, não pode de forma observacional apenas, dizer o que é o homem. O ser humano não pode ser apenas observado eticamente [viii], nem êmicamente [ix], mas, de forma que seja observado por um prisma maior e eficaz, em que a ética e a observação êmica serão julgados por um exame êmico-teológico.

Um arcabouço doutrinário/teológico frouxo nunca poderá produzir um pensamento social e político coerente com o Ser de Deus revelado nas Escrituras. Uma teologia que mina a soberania de Deus e a vileza e o estado caído do homem e sua total inabilidade para alcançar a Deus, produzirá um sistema de pensamento contrário ao cristianismo bíblico. Toda teologia que defende a autonomia da razão humana será um pressuposto para sistemas políticos totalitários, opressores, ímpios, e promotora de atitudes contrárias a uma ética que sobrepuje a construção ideológica.

Sem uma correta abordagem teológica viabilizada pela dogmática cristã não podemos construir ou descobrir qual é o modelo correto de sociedade, política, abordagens artísticas, métodos educacionais, crescimento dos campos do saber. A teologia irá nos mostrar através de suas abordagens do dogma cristão, como Deus deseja que sua criação funcione. É entendível que não há na Bíblia uma fórmula sagrada para a composição de sinfonias, ou uma determinação musical sagrada para a utilização de determinados compassos, ou para uma sacramentalização de determinados instrumentos musicais. Como não há uma fórmula bíblica para técnicas de artes plásticas, ou uma aprovação teológica ao impressionismo ou expressionismo quanto escolas de arte, não há uma ordenança bíblica para se tomar o cubismo ou dadaísmo como escolas de arte cristãs ou mesmo o surrealismo como algo fundamental para a cristandade. O que teremos nas Escrituras é o estabelecimento de uma cosmovisão criacional e redentora. A partir da criação e dos mandatos estabelecidos em Gênesis 1.26-30 temos todo um fundamento para a visão cristã de mundo que será desenvolvido e aplicado em todas as Escrituras.

Podemos concluir  que a cosmovisão cristã é fundamentalmente criacional e redentora. O motivo básico cristão de criação –  queda – redenção é muito importante para uma correta leitura teológica que estabelecerá a ponte para percepções cristãs de mundo. Essa percepção cristã do mundo se exalta sobre toda e qualquer cosmovisão concorrente. Como nos diz Ronald Nash:

Óculos corretos são capazes de por o mundo em foco mais claro - e a cosmovisão correta pode funcionar de um modo muito parecido. Quando alguém olha o mundo pela perspectiva da cosmovisão errada, o mundo não faz muito sentido. Ou o que a pessoa pensa fazer sentido estará, na verdade, errado em aspectos importantes. Aplicar o esquema conceitual correto, isto é, ver o mundo através da cosmovisão correta, pode ter repercussões importantes para o resto da compreensão da pessoa de acontecimentos e ideias [x].

Com essa afirmação de Nash podemos dizer que em grande medida cosmovisões não cristãs tem sua dose de niilismo. Não há propósito último. Numa cosmovisão cristã que se desenvolve a partir de uma abordagem criacional temos claramente uma ordem básica de entendimento em arche, ethos e escathon. Existe um criador de todas as coisas e esse criador estabeleceu leis para o funcionamento de todas as coisas e para suas criaturas, essas leis sejam elas as leis naturais que estarão ligadas ao uma abordagem da teologia natural ou leis preceituais ligadas a revelação especial de Deus, uma teologia redentiva, uma revelação que leva a humanidade a salvação. Essa revelação está em Jesus Cristo encarnado, verbo de Deus e nas Sagradas Escrituras. Com isso estabelecido é evidente que todo esse plano criacional tem um fim, um escathon. Aqui está a importância da progrecividade e organicidade da revelação de Deus aos homens, a Bíblia, a teologia da revelação é crescente e progressivamente dirigida ao clímax da história da redenção de toda criação, essa redenção final contempla tanto os homens como o mundo criado, a restauração de todas as coisas cumpre o escathon de Deus. Sem uma cosmovisão criacional e redentora não chegaremos a uma compreensão escatológica do plano divino.

O passo mais importante para os cristãos é tornar-se informado sobre a cosmovisão cristã, uma visão abrangente e sistemática da vida e do mundo como um todo. Nenhum crente hoje pode ser realmente eficaz na arena das ideias até que tenha sido treinado a pensar em termos de cosmovisão [xi].

Ronald Nash mais uma vez nos esclarece a importância da cosmovisão para o mundo visto por óculos redentivos. Sem essa compreensão cristãos não terão condições de cumprirem devidamente sua missão, que não é apenas evangelizar, mas, glorificar a Deus entre todas as nações. Por isso nos diz o Salmo 98:

Cantem ao Senhor um novo cântico, pois ele fez coisas maravilhosas; a sua mão direita e o seu braço santo lhe deram a vitória!
O Senhor anunciou a sua vitória e revelou a sua justiça às nações.
Ele se lembrou do seu amor leal e da sua fidelidade para com a casa de Israel; todos os confins da terra viram a vitória do nosso Deus.
Aclamem o Senhor todos os habitantes da terra! Louvem-no com cânticos de alegria e ao som de música!
Ofereçam música ao Senhor com a harpa, com a harpa e ao som de canções,
com cornetas e ao som da trombeta; exultem diante do Senhor, o Rei!
Ressoe o mar e tudo o que nele existe, o mundo e os seus habitantes!
Batam palmas os rios, e juntos, cantem de alegria os montes;
cantem diante do Senhor, porque ele vem, vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, com retidão.

Salmos 98 (NVI)


[i] O autor é bacharel em teologia pelo Centro de Estudos Teológicos Brasileiro; Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade Joaquim Nabuco; Mestrando em Estudos Teológicos pelo Mints International Seminary, Miami. É professor de Teologia Sistemática no Seminário Congregacional do Nordeste (Campus Recife e Maceió) e no Seminário Presbiteriano Fundamentalista do Brasil, campus Recife. É presbítero na Igreja Evangélica Congregacional de Casa Amarela na cidade do Recife em Pernambuco.

[ii] Ronaldo Lidório Comunicação e Cultura, Ed. Vida Nova, 2014, p.59.

[iii] Franklin Ferreira –  O Credo dos Apóstolos – As doutrinas centrais da fé cristã, p.110,111. Ed. FIEL.

[iv] Louis Berkhof - Teologia Sistemática, p.119. Ed. Cultura Cristã.

[v]  Ao tratar de ordem missional na criação ressalto que tudo que foi criado por Deus rende glória ao Criador, a criação adora ao Criador e lhe obedece às ordens que são manifestadas como obra da providência, sejam de forma ordinária ou de forma extraordinária, logo concluo que a criação também atende a um chamado missional no que se refere a proclamar a glória de Deus (Salmos 19).

[vi] Charles Hodge  Teologia Sistemática, p. 422, ed. Hagnos.

[vii] Herman Bavinck Dogmática Reformada, vol 2, p. 438 – Ed. Cultura Cristã.

[viii] Me refiro ao julgamento cultural baseado em valores culturais peculiares de um povo, ao utilizar o termo ética aqui não há ligação com o julgamento da ético-teológico, mas, a um sistema de costumes e valores de um povo sendo ou não antagônicos ao cristianismo.

[ix] Ao me referir e usar o termo êmico, bem trabalhado pelo antropólogo e missiólogo, Ronaldo Lidório, verso sobre a observação do homem pela lente dele mesmo, observando a cultura por pela ótica do nativo, isolando tal análise de um exame teológico.

[x] Ronald Nash - Cosmovisões em conflito, Editora Monergismo, p.27.

[xi] Ibdem, p.22.


29 de out. de 2014

Os Fundamentos da Religião

Por Herman Bavinck

O significado da Religião cristã pode ser determinado a partir da disputada etimologia da palavra “religião”. A Bíblia não dá uma ideia geral de religião, mas apresenta a revelação de Deus de forma pactual como seu objetivo e o temor do Senhor como lado subjetivo. Deus deve ser honrado e sua revelação deve ser crida e obedecida. A religião bíblica é, em primeiro lugar, um assunto do coração: ela nunca é esgotada pela observação.

De acordo com Tomás de Aquino, a religião não é uma questão de virtudes teológicas (fé, esperança, caridade), que têm Deus como seu objeto direto, mas de virtudes morais (prudência, justiça, firmeza e temperança), das quais Deus é o fim. O real objeto da religião aqui é a devoção obedientemente oferecida a Deus. A religião pertence à virtude da justiça, é a virtude pela qual os seres humanos oferecem a Deus a devoção e a adoração a Ele devidas.

Os teólogos reformados distinguem mais claramente a piedade como o princípio e a adoração como o ato da religião. A piedade é, antes de tudo, um estado de existência, um hábito e uma disposição que levam os seres humanos a adorar a Deus. Schleiermacher até mesmo definiu a religião em termos de piedade, como “sentimento absoluto de dependência”. Embora essa definição seja inadequada, ela também contém elementos de verdade. Nós, criaturas humanas, somos radicalmente dependentes de Deus. Subjetivamente, isso é conhecido como fé, a fé que nos leva ao serviço, a atos de obediência e ao amor. A verdadeira religião consiste na confiança absoluta em Deus e em um sincero desejo de viver em obediência a Ele.

A era moderna deus origem a um estudo comparativo cientifico, histórico ou psicológico de todas as religiões. Embora todas as religiões tenham similaridades  formais (revelação, culto, dogma), não existe uma religião genérica, apenas religiões concretas, todas com alegações conflitantes. Os esforços para se chegar a essência da religião em geral levaram a resultados magros com proposições vagas, e a pesquisa deve ser considerada um impasse. Não há como escapar da necessidade de julgar o conteúdo de religiões especificas como “verdadeiro” ou “falso”. Os juízos dogmáticos não podem ser evitados.

Antropologicamente, qual é o lugar da religião na psique humana? A religião é primariamente conhecimento, moralidade ou sentimento? Grande parte do pensamento moderno, notavelmente o idealismo, tem uma interpretação intelectualista da religião. Para Hegel, todo o mundo é um desdobramento da mente. A religião é uma forma de conhecimento substituído somente pela filosofia. A tradição kantiana, contudo, define a religião voluntaristamente como conduta moral e localiza e localiza sua sede na vontade humana. Outros, como Schleiermacher, influenciados pelo romantismo, consideram a religião como primariamente estética e localizada no sentimento humano. Embora intelecto, moralidade e sentimento desempenhem papéis importantes na verdadeira religião, ela não deve ser reduzida a uma só faculdade. A verdadeira religião é central para todos os atos culturais e produtos humanos: ciência, moralidade e arte.

Cientificamente, tentativas históricas para explicar a origem da religião não dão certo. Nem o temor, nem a ilusão sacerdotal, nem a fraqueza humana, nem a busca da felicidade, nem a ignorância é uma explicação satisfatória. Tentativas de considerar a religião como uma “auto-afirmação da vida do Espírito” fazem com que Deus e a religião sejam uma criação humana, inventada para satisfazer a necessidade humana, Deus é um servo da humanidade.

Finalmente, o estudo científico, histórico, das religiões não pode encontrar resposta  para a origem da religião – somente a revelação pode fazer isso. A religião não pode ser entendida sem Deus e, para que possamos conhecê-lo, ele tem de se revelar a nós. A revelação é o princípio externo do conhecimento da religião. A revelação e a religião não são estranhas à natureza humana. Em vez disso, como portadores da imagem de Deus, os seres humanos são, por natureza, religiosos. Portanto, a religião é uma realidade universal. Somos criados por Deus. A religião existe porque Deus é Deus e quer ser honrado. Para esse fim ele se revela a nós e faz com que sejamos subjetivamente aptos a conhecê-lo.

Fonte: Dogmática Reformada – Vol. 1, cap.8, p.235,236

20 de out. de 2014

Regeneração

Por Asahel Nettleton*

Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.” (João 1.12-13)

Estes versículos ensinam uma doutrina simples, mas importante: aqueles que recebem a Cristo, aos quais foi-lhes dado o poder para tornarem- se filhos de Deus e crêem no nome de Cristo, foram nascidos de Deus. Em outras palavras, uma pessoa se torna verdadeiro crente por meio de uma especial aplicação de poder por parte do Todo poderoso a fim de mudar seu coração. A expressão, “nasceram... de Deus”, freqüentemente utilizada pelos escritores do Novo Testamento, expressa linguagem figurada. Sua adequação, quando aplicada às coisas espirituais, resulta da analogia que existe entre o início de nossa existência física e de nossa vida espiritual. Os crentes são filhos de Deus; isto precisa ser entendido em um sentido peculiar. Todos os homens são criados por Deus e dEle recebem suas capacidades naturais; neste sentido todos são filhos de Deus. Mas, quando a Bíblia aplica a expressão “filhos de Deus” aos crentes, para distingui-los das outras pessoas, ela o faz para ressaltar um relacionamento que Deus não tem com os demais seres humanos. E somente Ele é o autor da regeneração, pela qual os crentes se tornam seus filhos e é dito que eles são nascidos de Deus. As Escrituras afirmam que os crentes foram gerados por Deus, em comparação ao relacionamento que existe entre os pais terrenos e seus filhos.

O objetivo destes versículos é mostrar que nosso relacionamento com Deus, como seus filhos espirituais, foi produzido exclusivamente por meio de seu soberano poder. A princípio, estes versículos foram adaptados para oporem-se aos preconceitos carnais dos judeus. A opinião comum destas pessoas era que todos os descendentes de Abraão eram herdeiros das promessas divinas e tinham o direito à vida eterna. Este conceito foi consistentemente combatido por Cristo e seus apóstolos. Deixando de lado a tentativa de determinar o significado exato da afirmativa.os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus., observamos que havia três maneiras de pessoas serem consideradas filhos de Abraão: por descendência natural, por meio de um relacionamento ilícito e por adoção. Independentemente da maneira, os judeus imaginavam que se tornava um filho de Deus aquela pessoa que se tornava filho de Abraão. O bem-conceituado Dr. Lightfoot propôs que o objetivo do apóstolo João era aniquilar as falsas esperanças dos judeus, afirmando que, se alguém havia se tornado filho de Abraão através de alguma destas maneiras, isto não o transformava em filho de Deus. Outro tipo de nascimento é necessário; uma nova filiação, vinda do alto. Era preciso que Deus os fizesse nascer de novo. Qualquer que seja o significado específico destes versículos, a impressão geral e o objetivo específico do escritor sagrado é que todos os outros métodos de alguém tornar-se filho de Deus são falsos e imaginários, exceto o ser nascido de novo. Estas palavras foram escritas para combater as idéias predominantes naqueles dias, e hoje podemos utilizá-las de maneira semelhante.

Dentre todos os assuntos, aquele que se refere à nossa passagem da morte para a vida com certeza é o mais importante e interessante. Ter idéias claras e definidas sobre este assunto é crucial; errar no que concerne a ele equivale a um perigo terrível. Em certo sentido, todas as coisas pertencem a Deus. Ele é o Criador e Governador de tudo. Todos os poderes e capacidades que um homem possui procedem de Deus. Todos os meios da graça e ordenanças espirituais foram instituídas por Ele. Mas, quando as Escrituras falam sobre nascer de novo, elas querem dizer muito mais do que um homem ser influenciado por esses meios da graça e ordenanças espirituais, ao utilizar seus poderes e capacidades naturais. A fim de evitar uma compreensão errada sobre o assunto, afirmei no início que a regeneração é uma obra especial efetuada pelo poder do Todo poderoso. Os que erram neste assunto jamais tentaram negar abertamente que os crentes são nascidos de Deus, pois isto corresponderia a renunciar toda aparência de confiança nas Escrituras. Eles escolheram um método mais seguro para divulgarem suas opiniões: ao mesmo tempo que preservam as palavras dos autores sagrados, atacam e desprezam o significado das mesmas, de modo que a regeneração se torna uma simples aplicação de um rito externo ou uma persuasão da mente afetada de maneira comum, que resulta em uma reforma da moralidade.

Esclarecer o erro ajuda-nos a compreender a verdade. De maneira abreviada, consideraremos alguns conceitos errados sobre a regeneração e, em seguida, mostraremos o que significa ser nascido de Deus.

Não preciso gastar muito tempo esforçando-me para demonstrar que o batismo não é regeneração. Nada é tão evidente quanto o fato de que um rito exterior não pode mudar o coração. O batismo é apenas um sinal ou símbolo das salvadoras influências do Espírito Santo, e não a obra de regeneração. Tanto a Escritura quanto a experiência mostram que nem todas as pessoas batizadas são regeneradas, pois algumas delas em suas vidas e conversas não diferem do mundo que jaz no Maligno.. Quanto a isto, precisamos apenas citar as palavras de um eminente teólogo inglês: O ensino da regeneração através do batismo é a completa rejeição e desprezo da graça de nosso Senhor Jesus Cristo.; e acrescentou: ”A vaidade desta presunção tola destrói a graça do evangelho; é uma presunção forjada para apoiar os homens em seus pecados e ocultar lhes a necessidade de nascerem de novo e de se converterem a Deus. Entretanto, irmãos amados, não foi assim que aprendemos de Cristo”.

O absurdo de alterar assim o verdadeiro ensino sobre a regeneração e outras doutrinas semelhantes é tão palpável e grotesco, que pode ser detectado e percebido onde existe qualquer grau de conhecimento acerca da natureza da vida espiritual. Encontramos menor perigo em tais noções extravagantes do que naquelas que são mais sutis e sofisticadas.

Pelágio, no século IV, inventou e advogou um esquema de regeneração que, com poucas modificações, às vezes na fraseologia ou no acréscimo e diminuição de algumas partes, tem sido o método de quase todos os sectários, os quais se apartaram dos ensinos ortodoxos do evangelho. Em épocas diferentes, autores têm surgido em diversos países, levando adiante este ilusório ensino sobre o novo nascimento em termos elaborados por eles mesmos. E muitos que lêem seus escritos de maneira superficial têm sido enganados, acreditando neste falso conceito. O fato é que quase todo o sistema de ensinos fundamentado em noções obscuras e inadequadas sobre este importante assunto da regeneração é apenas um reflexo da heresia de Pelágio, universalmente condenada pela igreja dos primeiros séculos, que agora se apresenta em nova roupagem e, para assegurar sua aceitação, segue os padrões do mundo moderno.

Os principais aspectos do ensino de Pelágio e Armínio (ambos, em essência, ensinaram as mesmas coisas) são estes:

1. Deus não somente proclama e oferece de maneira semelhante a graça e a salvação a todos os homens, mas também o Espírito Santo é derramado de modo suficiente e igual sobre todos eles, para garantir-lhes a salvação, contanto que se aproveitem dos benefícios que lhes são concedidos;

2. Os preceitos e promessas do evangelho, além de serem bons e desejáveis em si mesmos, são tão adaptados à mente do homem natural e aos interesses da humanidade, que estes se inclinarão a recebê-los, a menos que sejam vencidos pelo preconceito e por uma vida habitual no pecado.

3. Pensar sobre as ameaças e promessas do evangelho é suficiente para remover os preconceitos e levar a pessoa a deixar a vida no pecado.

4. Aqueles que meditam com seriedade e consertam suas vidas têm a promessa do Espírito Santo e recebem direito para desfrutarem os benefícios da nova aliança.

Esta irreal declaração de princípios fundamentais, capaz de convencer mentes que não ponderam sobre estes assuntos, anula a própria essência da verdade do evangelho. Este sistema de doutrina preceitua que todos os homens são regenerados de igual modo, possuem a mesma medida do Espírito, e a diferença entre um e outro encontra- se totalmente em si mesmos, dependendo da maneira como eles se beneficiam das bênçãos outorgadas. Neste caso, regeneração significa uma reforma na vida, induzida por meio de persuasão moral ou iniciada como resultado de ser iluminado o entendimento e as emoções serem comovidas exclusivamente por meio da verdade divina. Se indagarmos de que modo neste sistema de doutrina a salvação resulta da graça divina, a resposta é que todos os meios de alguém se beneficiar das bênçãos recebidas são concedidos por Deus e, por conseguinte, constituem a graça.

Todo este sistema de doutrina resume-se no seguinte: Deus outorga as capacidades e a graça a todos os homens de maneira semelhante; e, tendo sido estas outorgadas, eles trabalham por sua própria salvação, sendo persuadidos a fazer isso por meio das promessas e ameaças do evangelho. A terrível ilusão causada por esse tipo de doutrina resulta de sua plausibilidade, tem aparência de verdade, mas está repleta de erros graves e perigosos.

Não tenho dúvidas de que o Espírito Santo se utiliza da Palavra e de muitos outros instrumentos para trazer os pecadores a Cristo. Mas afirmar que os homens são naturalmente inclinados a aprovarem e obedecerem aos preceitos do evangelho, exceto quando algum tipo específico de pecado os impede, isso claramente contradiz o evangelho. Pelo contrário, como princípio fundamental o evangelho revela que todos os homens, por natureza, são filhos da ira e cegos no que se refere à luz da verdade divina; estão em inimizade com Deus e mortos em ofensas e pecados. A idéia de que o Espírito Santo é conferido a todos, de maneira suficiente para salvá-los, anula o conceito da graça especial e torna nascidos de Deus tanto uns quanto outros! O texto bíblico citado no início afirma que todos quantos receberam a Cristo e creram em seu nome foram nascidos de Deus. Se isto é verdade, outros que não O receberam não foram nascidos de Deus; portanto, não podemos dizer que as influências do Espírito são iguais para todos.

É uma grande pedra de tropeço, para muitos, o fato de que Deus outorga do seu Espírito mais para uma pessoa do que para outras. A fim de remover este preconceito, Pelágio e muitos depois dele têm sustentado o ensino de que todos os homens recebem os mesmos dons, para labutarem em favor de sua própria salvação. É lógico que tal ensino destrói o novo nascimento e o torna comum a todos os homens. De acordo com este ensino, Judas Iscariotes recebeu tanto da graça divina quanto o apóstolo Paulo; Acabe se vendeu à impiedade, mas o mesmo poderia ter feito Davi, o homem segundo o coração de Deus. Toda a diferença entre os homens deve-se a maneira diferente como eles se aproveitam de seus privilégios.

Sei que esse tipo de doutrina agrada a natureza caída; e a aceitação que ela tem desfrutado desde que foi pregada pela primeira vez comprova quão agradável é ao raciocínio do homem natural. Porém, nem as Escrituras nem a experiência nos oferecem qualquer razão para crermos nessa doutrina. Não duvido que o Espírito Santo luta com todos os homens que não estão condenados.

Reconheço que as ameaças e promessas do evangelho seriam suficientes para persuadir- nos a um viver santo, se nosso entendimento não estivesse obscurecido e nossas afeições não fossem depravadas. Entretanto, nego que a graça comum a todos nos torna filhos de Deus, ou que somos persuadidos a nos tornarmos cristãos sem haver uma especial realização divina; ou que todos os homens recebem a mesma medida do Espírito Santo.

Apesar de todos os meios preparatórios, todas as ameaças e promessas do evangelho, todas as atividades da graça comum e todos os esforços dos pecadores não-regenerados, eles precisam nascer de novo para que se tornem filhos de Deus. É necessário que ocorra uma nova criação, uma obra realizada pelo Todo Poderoso numa atividade soberana, especial e sobrenatural, à semelhança da criação do mundo ou do ressuscitar um morto, pois sem esta grandiosa realização ninguém pode ver o reino de Deus. A persuasão não é capaz de fazer novas criaturas. Se o Espírito Santo opera nas mentes dos homens somente por meio de apresentar-lhes os argumentos e motivos mais diversos e mais adequados para a sua conversão, afinal de contas a vontade do homem determinará se ele será regenerado ou não. Nesse tipo de ensino, a glória da regeneração pertenceria a nós mesmos. Também não haveria certeza se Cristo teria qualquer descendência espiritual, visto que dependeria da incerta resolução de cada pessoa diante da qual os motivos foram colocados. Isto contradiz as Escrituras. Deus não limita as realizações de seu Espírito à apresentação de motivos persuasivos diante dos homens, pois apresentar-se-á voluntariamente o teu povo, no dia do teu poder. (Sl 110.3).

A persuasão moral que oferece uma vida melhor não outorga qualquer poder supranatural à alma, a fim de que esta seja capacitada a viver. A persuasão não produz novo interesse e discernimento espiritual. Se a regeneração acontece desta maneira, então o homem regenera a si mesmo, nasce de novo por si mesmo, tornando a si mesmo diferente dos outros homens. Se assim fosse, o Espírito Santo não teria mais a realizar do que fizeram Paulo e Apolo.

Não é por esse tipo de coisa que oramos: não oramos para que os motivos corretos sejam apresentados aos homens, para que regenerem a si mesmos. Oramos para que Deus mude os seus corações e os torne novas criaturas. As igrejas primitivas que sentiam intensas pressões externas invocavam esta súplica sobre os hereges, que negavam o exercício de um poder sobrenatural na regeneração.

Existe apenas uma maneira de uma pessoa morta em seus delitos e pecados ressurgir para a vida: por meio do poder de Deus que a vivifica e faz nascer de novo. Observe a linguagem que os escritores sagrados utilizaram para transmitirem este conceito: nascer de Deus, gerado de Deus, vivificar, receber vida e nascer de novo. Se disserem que esta linguagem é figurada, eu concordo. Mas, se encontramos qualquer significado nestas figuras, então a obra de regeneração fala do começo de uma nova existência espiritual. De outro modo, a linguagem das Escrituras, em todos os seus livros, é a mais obscura, imaginária e sem significado.

Você pode supor todas as preparações, conhecimento, motivos, moralidade, esforços que lhe convier; mas, apesar de tudo isso, repetimos, é necessário que aconteça o novo nascimento (os mortos precisam ser vivificados), pois os crentes são nascidos de Deus. O mesmo poder que ressuscitou Cristo dentre os mortos, o supremo poder do Deus vivo tem de realizar esta obra. Essa foi a súplica do apóstolo: que conheçamos .qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder, o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos. (Ef 1.19-20).

Na verdade, meus amigos, onde mais podemos encontrar a fonte de uma mudança que nos torna verdadeiros cristãos e nos traz da morte para a vida, senão na onipotência do Espírito Santo? É nosso entendimento que realiza esta mudança? Nosso entendimento está em trevas. “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus... e não pode entendê-las” (1 Co 2.14). É a nossa vontade? Somos inclinados para o mal, assim como dois e dois são quatro. Nossas vontades são perversas e rebeldes. É o nosso poder? Cristo morreu pelos ímpios, que estão sem poder. Não somos capazes em nós mesmos de ter bons pensamentos. São os nossos méritos que realizam esta mudança? Não merecemos nada, exceto a condenação. São os ministros de Deus que nos convencem? Alguns podem semear a Palavra, e outros, regá-la, mas a germinação é realizada por Deus.

Todos os esforços têm sido realizados pela ingenuidade humana, mediante doutrinas claramente errôneas ou aparentemente plausíveis, a fim de retirar do Espírito Santo a glória da obra de regeneração e levar o homem a reivindicar esta realização para si mesmo ou, pelo menos, a compartilhar da honra. No entanto, a origem da regeneração se encontra somente na livre e soberana graça do todo poderoso poder de Deus. A regeneração é uma obra totalmente divina; a glória, portanto, tem de pertencer e pertencerá para sempre a Deus.

Uma doutrina sustentada pelos grandes mestres da Reforma e pelas igrejas evangélicas desde então é que a regeneração é uma obra física. Com isto eles queriam dizer que havia realmente uma nova criação, tão absoluta quanto a criação do mundo; um novo interesse, princípio e discernimento espiritual é implantado por meio de uma soberana obra criadora da parte de Deus e não simplesmente um novo direcionamento de velhas capacidades.

Uma vez que esta obra é reconhecida, todas as demais doutrinas que constituem a verdade evangélica fluem dela: as doutrinas da graça, a soberania de Deus, a eleição, a redenção somente por meio de Cristo, a depravação humana e outras a estas relacionadas. Existe um grande, harmonioso e perfeito conjunto de doutrinas, e Deus é a essência e a glória de todas elas.

Meus amigos, eu estou plenamente certo de que existem dificuldades nas doutrinas que acabamos de apresentar. Mas a Bíblia fundamenta todas elas; isto é o bastante. Diante dela nosso entendimento carnal tem de se prostrar e nossos corações, submeterem se. Se você mudar estas verdades, utilizando idéias misteriosas, conceitos inúteis ou inconsistências, será assaltado não pelos homens, e sim pelo próprio Deus. Leia e atente aos ensinos da Palavra de Deus. Ela afirma permanentemente, em caracteres reluzentes: “Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.13).

Existe apenas um tipo de nascimento que pode nos preparar para o céu: “Se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3). Podemos atender à nossa imaginação e satisfazer nossa justiça própria, ao adotarmos os vagos conceitos pelagianos a respeito deste assunto; podemos protestar contra a absoluta dependência da graça de Deus, conforme demonstramos; mas perceberemos que um novo coração e um espírito de retidão são absolutamente necessários, pois sem eles pereceremos eternamente.
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*Asahel Nettleton (21 de abril, 1783 – 16 de maio 1844) foi um teólogo e pastor de Connecticut muito influente, durante o Segundo Grande Despertamento. O número de pessoas que se converteu ao cristianismo como resultado de seu ministério é estimado em 30.000. Ele participou do Yale College de 1805 até sua graduação em 1809 e foi ordenado ao ministério em 1811. Ele é, sobretudo, conhecido por sua oposição aos ensinamentos de Charles Finney.

A teologia de  Nettleton foi distintamente Reformada. Ele cria que a salvação era unicamente uma obra de Deus e, por conseguinte, rejeitava a prática de Finney de fazer apelos — chamada ao altar — durante suas pregações.  Ele cria que a introdução da chamada ao altar era uma negação das doutrinas do pecado original e da depravação total do homem.