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8 de ago. de 2016

Religião, Cultura e Redenção

Por Herman Bavinck

Entre todos os povos do mundo, encontramos uma noção de pecado e miséria, e todos sentem a necessidade e a esperança de redenção. O otimismo é impotente para rejeitar o primeiro fato e reconciliar completamente os seres humanos consigo mesmos e com o mundo. O pessimismo, porém, nunca foi bem sucedido em desfazer o segundo fato e em erradicar  a esperança para o futuro do coração do humano. Além disso, vimos anteriormente que a expectativa de uma redenção vindoura está ligada, em muitas religiões, a uma pessoa vindoura e especificamente baseada no aparecimento de um rei. 

Aqui podemos acrescentar que a ideia de redenção está quase sempre associada à de reconciliação. Redenção, devemos dizer, é primariamente um conceito religioso e, portanto, ocorre em todas as religiões. Admito que os seres humanos têm à sua disposição muitos meios para se manterem na luta pela existência e para se protegerem contra a violência. Eles não estão sozinhos, mas vivem em comunidades. Eles têm mentes com as quais pensar, mãos com as quais trabalhar e podem, pelo trabalho e pelo esforço, conquistar, estabelecer e expandir um lugar para si mesmos no mundo. É digno de nota, porém, que todas essas ajudas e suportes não são suficientes para eles. Por mais que as pessoas se desenvolvam culturalmente, elas nunca ficam satisfeitas com isso e não alcançam a redenção pela qual pela qual estão ansiosas, pois ao mesmo tempo em que a cultura satisfaz suas necessidades, incentiva a ter orgulho no grande progresso que fizeram, por outro, elas lhes dá uma noção progressivamente mais clara do longo caminho que ainda precisam percorrer. Na medida em que as pessoas colocam o mundo sob seus pés, elas se sentem mais e mais dependentes daquelas forças celestiais contra as quais, com medida em que resolvem problemas, vêem os mistérios do mundo e da vida se multiplicarem e aumentarem em complexidade. 

Enquanto sonham com o progresso da civilização, ao mesmo tempo vêem abrir diante de si a instabilidade e a futilidade do mundo existente. A cultura tem grandes, até mesmo incalculáveis vantagens, mas também traz consigo seus próprios inconvenientes e perigos peculiares. Quanto mais abundantemente os benefícios da civilização escorrem por nosso caminho, mais vazia a vida se torna. É por isso que em adição à cultura, em toda parte, teve origem e alcançou maturidade sob a influência da religião. Se os males da humanidade foram causados pela cultura, certamente eles poderiam ser curados de nenhuma outra forma a não ser pela cultura. Mas os males que temos em mente são oriundos do coração humano, que sempre  permanece o mesmo, e a cultura somente os realça. Com toda a sua riqueza e poder, ele apenas mostra que o coração humano, no qual Deus colocou a eternidade (Ec 3.11), é tão grande que nem todo mundo pode satisfazê-lo. Os seres humanos estão em busca de uma redenção melhor do que aquela que a cultura pode lhes dar. Eles estão procurando felicidade duradoura, um bem eterno. Eles estão ansiosos por uma redenção que os salve física e também espiritualmente, para  o tempo e também para a eternidade, e isso somente a religião, e nada mais, pode lhes dar. Somente Deus pode lhes dar isso, não a ciência ou a arte, a civilização ou a cultura. Por essa razão, a redenção é um conceito religioso, é encontrada em todas as religiões  e é quase sempre associada à ideia de reconciliação, pois a redenção que os seres humanos procuram e precisam é uma redenção na qual são erguidos acima de todo o mundo e inseridos  em comunhão com Deus. 

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Fonte: Dogmática Reformada. Ed. Cultura Cristã, Volume 3, p.331-32.

3 de fev. de 2015

O Problema do Conhecimento Médio (Molinismo)

Por Herman Bavinck


Mas os jesuítas, entrando na discussão [sobre o pré-conhecimento de Deus], fizeram mudança. Com o intuito de articular a onisciência de Deus com a liberdade humana, seguindo a linha semi-pelagiana, eles introduziram o chamado conhecimento médio(media scientia) entre o conhecimento “necessário” e o conhecimento “livre” de Deus. Com esse conhecimento médio eles se referem a um conhecimento divino de eventos contingentes que é logicamente antecedente aos seus decretos. O objeto desse conhecimento ao é o meramente possível que nunca será realizado, nem aquilo que, em virtude de um decreto divino, é certo de acontecer, mas as possibilidades de que dependam, para sua realização, de uma ou outra condição. Ao governar o mundo, Deus faz que muitos resultados possíveis dependam de condições e sabe, com antecedência, o que fará, caso essas condições sejam ou não cumpridas pelos seres humanos. Em todos os casos, portanto, Deus está pronto. Ele antevê e conhece todas as possibilidades e toma suas decisões e providências levando em conta todas essas possibilidades. Ele soube, com antecedência, o que faria se Adão caísse e também se ele não caísse; se Davi fosse ou não até Queila; se Tiro e Sidom se arrependessem ou não. Portanto, o conhecimento que Deus tem de eventos contingentes precede seu decreto a respeito de eventos futuros “absolutos”. Embora os seres humanos, a cada momento, tomem suas decisões livres e independentes, nunca poderão surpreender Deus com as decisões que tomam ou desfazer seus planos, pois, em seu pré-conhecimento, Deus levou em conta todas as possibilidades. Essa teoria do conhecimento mediado foi apoiada por numerosos textos da Escritura que atribuem a Deus conhecimento daquilo que aconteceria em um dado caso se alguma condição fosse ou não fosse cumprida(e.g.,  Gn 11.6; Êx. 3.19; 34.16; Dt. 7.3, 4; 1Sm 23.10 – 13; 25.29ss; 2Sm 12.8; 1Rs 11.2; 2Rs 2.10; 13.19; Sl 81.14 – 16; Jr. 26.2, 3; 38.17 – 20; Ez 2.5 – 7; 3.4 – 6; Mt. 11.21, 23; 24.22; 26.53; Lc. 22.66 – 68; Jo. 4.10; 6.15; At. 22.18; Rm. 9.29; 1Co 2.8).

Embora, de fato, tenha recebido oposição dos tomistas e agostinianos (e.g., Bannez, os salmanticenses [carmelitas de Salamanca, Espanha] e Billuart), essa teoria do conhecimento médio também foi fervorosamente defendida pelos molinistas e congruístas (Suárez, Belarmino, Lessius, etc). O temor do Calvinismo e do jansenismo favoreceu essa teoria na Igreja Católica e, de maniera mais ou menos pronunciada, ganhou aceitação expressa por parte de quase todos os teólogos católicos. Desse modo, a linha de pensamento expressa por Agostinho foi abandonada e a de Orígenes foi recuperada. Ainda que a teologia grega tenha tomado essa posição desde o princípio, a teologia católica romana agora a seguiu. Os luteranos e os remonstrantes também não se mostraram indispostos com essa teoria. Em tempos modernos, muitos teólogos afirmaram, aproximadamente da mesma forma, que, para Deus, também, o mundo é um conhecimento médio. Ele, de fato, pré-conhece os eventos contingentes futuros como possíveis, mas descobre, com o mundo, se eles serão realizados ou não. Para todos os casos, porém, ele conhece “uma ação que se encaixará precisamente na ação da criatura, seja o que for que possa acontecer”. Ele estabeleceu o esboço do plano do mundo, mas deixa o enchimento desse esboço por conta das criaturas”. Em contraste com essa linha de pensamento, seguindo o exemplo de Agostinho, os reformados rejeitaram a teoria de um “pré-conhecimento nu”(nuda praescientia) e o “conhecimento médio”(media scientia).

Ora, com respeito a esse conhecimento médio, a pergunta não é se as coisas [ou eventos] não estão frequentemente relacionadas umas às outras por um tipo de conexão condicional, que é conhecida e desejada pelo próprio Deus. se isso fosse tudo o que ele quer dizer, ele seria aceito sem qualquer dificuldade, assim como Gomarus e Walaeus o entenderam e reconheceram nesse sentido. Entretanto, a teoria do conhecimento tem um objetivo diferente: se propósito é harmonizar a noção pelagiana da liberdade da vontade com a onisciência de Deus. Nessa interpretação, a vontade humana é, por sua natureza, indiferente. Ela tanto pode fazer uma coisa quanto outra. ela não é determinada nem por sua própria natureza nem pelas várias circunstâncias nas quais é colocada. Embora as circunstâncias  possam influenciar a vontade, no fim das contas ela permanece livre e escolhe conforme desejar. É claro que a liberdade da vontade assim concebida não pode se harmonizar com um decreto de Deus, aliás, ela consiste essencialmente em independência do decreto de Deus. Em vez de determinar essa vontade, Deus a deixou livre. Ele não podia determinar a vontade sem destruí-la. Com relação a essa vontade de suas criaturas racionais, Deus tem de adotar uma postura de espera vigilante. Ele observa para ver o que elas farão. Ele, porém, é onisciente. Por isso ele conhece todas as possibilidades, todas as contingências e também pré-conhece todos os eventos futuros reais. Nesse contexto e conservando-o, Deus tomou todas as suas decisões e criou seus decretos. Se uma pessoa, em certas circunstâncias, aceitará a graça de Deus, ele escolheu essa pessoa para a vida eterna; se essa pessoa não crer, ela foi rejeitada.

Ora, é claro que essa teoria diverge, em princípio, do ensino de Agostinho e de Tomás de Aquino. Certamente, em sua mente, o pré-conhecimento de Deus precede os eventos e nada pode acontecer se não for pela vontade de Deus. “Nada, portanto, acontece, a não ser pela vontade do Onipotente”. Não o mundo, mas os decretos são o meio pelo qual Deus conhece todas as coisas. Portanto, os eventos contingentes e as ações livres podem ser conhecidos infalivelmente em seu contexto e ordem. O escolasticismo, reconhecidamente, às vezes já expressava, nesse ponto, de um modo que diferia de Agostinho. Anselmo, por exemplo, afirmou que o pré-conhecimento não implicava uma “necessidade interna e antecedente”, mas apenas uma “necessidade externa e consequente”. E Tomás de Aquino, de fato, acreditava que Deus eterna e certamente conhece os eventos futuros contingentes de acordo com o estado no qual eles realmente estão, isto é, de acordo com sua própria imediação, mas que, em suas “causas  imediatas”, eles são contingentes e indeterminados. Isso, porém, não altera o fato de que, com relação à sua “causa primária”, esses eventos futuros contingentes são absolutamente certos e, portanto, não podem ser chamados de contingentes. E, em outro ponto, ele novamente afirma que “tudo que existe foi destinado a existir antes que viesse à existência, porque existia por sua própria causa para que pudesse vir à existência”.

A doutrina do conhecimento médio, porém, representa os eventos futuros contingentes como contingentes e livres também em relação a Deus. Isso é feito não somente com relação à predestinação de Deus, mas também com relação ao seu pré-conhecimento, como em Orígenes, em que as coisas não acontecem porque Deus as conhece, mas Deus as conhece porque elas acontecerão. Portanto, a sequência não é conhecimento necessário, conhecimento de visão, o decreto de criar (etc), mas, em vez disso, é conhecimento necessário, conhecimento médio, decreto de criar (etc), e o conhecimento de visão de Deus não deriva seu conhecimento dos livres atos dos seres humanos de seu próprio ser, de seus decretos, mas da vontade das criaturas.

Deus, portanto, torna-se dependente do mundo, extrai do mundo conhecimento que ele não tinha e não pode obter por si mesmo e, portanto, em seu conhecimento, deixa de ser um, simples, independente – isto é, deixa de ser Deus. Inversamente, a criatura, em grande parte, torna-se independente diante de Deus. Ela, de fato, em um momento, recebe o “ser”(esse) e o “ser capaz”(posse) de Deus, mas, agora, tem a “volição”(velle) completamente em suas próprias mãos. Ela soberanamente toma suas próprias decisões, realiza ou não realiza alguma coisa de forma totalmente independente de um decreto divino anterior. Uma coisa pode, portanto, vir à existência totalmente à parte da vontade de Deus. A criatura é, agora, criadora, autônoma, soberana: toda a história do mundo é tirada das mãos de Deus e colocada em suas mãos. Primeiro os seres humanos decidem, depois Deus responde com um plano que corresponde a essa decisão. Ora, se essa decisão ocorreu – como no caso de Adão – somos capazes de concebê-la. Mas decisões de maior ou menor importância ocorrem milhares de vezes em toda vida humana. O que podemos pensar, então de um Deus que sempre espera todas essas decisões e mantém à mão um estoque de todos os planos possíveis para todas as possibilidades? O que, então, resta até mesmo de um esboço de um plano mundial quando sua execução é deixada nas mãos dos seres humanos? E de que vale um governo cujo executivo é o escravo de seus próprios subordinados?

Na teoria do conhecimento médio, é exatamente isso o que acontece com Deus. Deus é um mero espectador, enquanto os seres humanos decidem. Não é Deus que faz distinção entre as pessoas, mas as pessoas é que se distinguem. A graça é concedida de acordo com o mérito e a predestinação depende das boas obras. As ideias às quais a Escritura, em toda parte, opõe-se e que Agostinho rejeitou em sua polêmica contra Pelágio são transformadas na doutrina católica romana padrão pelo ensino dos jesuítas. Os proponentes do conhecimento médio, de fato, recorrem a muitos textos da Escritura, mas totalmente sem fundamento. Não há dúvida de que a Escritura reconhece o fato de que Deus inseriu as coisas (eventos, etc) em uma rede variada de conexões umas com as outras, e que essas conexões são, frequentemente, de natureza condicional, de modo que uma coisa não pode acontecer se outra coisa não acontecer primeiro. [Por exemplo], sem a fé não há salvação, sem o trabalho não há sustento, etc.

No entanto, os textos citados pelos jesuítas para fundamentar a teoria do conhecimento médio não provam o que precisa ser provado. Reconhecidamente, eles falam sobre condição e cumprimento, obediência e promessa, aceitação e consequência daquilo que acontecerá se um ou outro caminho for escolhido. No entanto, nenhum desses textos nega que, em todos os casos, Deus – embora fale aos seres humanos e lide com eles em termos humanos – conhecia e determinou aquilo que será realizado – presente em Deus somente como uma ideia – e aquilo que é certo e foi decretado por Deus não há uma área que possa ser controlada pela vontade dos seres humanos. Uma coisa sempre pertence a uma área ou a outra. se ela é somente uma possibilidade e nunca será realizada, ela é objeto do conhecimento “necessário” de Deus e se, um dia, ela realmente será realizada, ela é conteúdo de seu conhecimento “livre”. Não há um terreno médio entre os dois, não há conhecimento “médio”.

As teorias do conhecimento médio, além disso, não alcançam seu objetivo. Elas têm o objetivo de colocar a liberdade da vontade humana – no sentido de indiferença – em harmonia com o pré-conhecimento divino. Ora, elas alegam que esse pré-conhecimento concebido como conhecimento médio deixa a conduta humana totalmente livre, não-necessária. De fato, isso está correto, a não ser que, nesse caso, ele deixe de ser pré-conhecimento. Se Deus conhece infalivelmente com antecedência o que uma pessoa fará em determinado caso, ele só pode pré-conhecer isso se os motivos da pessoa determinarem sua vontade em uma direção específica, e isso, portanto, não consistiria indiferença. Inversamente, se essa vontade fosse indiferente, o pré-conhecimento seria impossível, e só existiria um conhecimento post-factum. O pré-conhecimento de Deus a vontade concebida como arbitrariedade são mutuamente excludentes. Pois, como Cícero já dizia, “se ele conhece, isso certamente acontecerá, mas, se isso obrigatoriamente deve acontecer, não existe algo como o acaso”. Portanto, juntamente com Agostinho, devemos procurar a solução do problema em outra direção. A liberdade da vontade não consiste, como descobriremos adiante, em indiferença, arbitrariedade ou acaso, mas em “prazer racional”. Esse prazer racional, em vez de estar em conflito com o pré-conhecimento de Deusa, é implicado e sustentado por ele. A vontade humana – juntamente com sua natureza, antecedentes e motivos, suas decisões e consequências – está integrada à “ordem de causas que é certa para Deus e abrangida por seu pré-conhecimento”. No conhecimento de Deus, as coisas estão relacionadas na mesma rede de conexões nas quais ocorrem na realidade. Não é pré-conhecimento nem predestinação aquilo que intervém, vindo de cima, com força de imposição. Toda decisão humana, todo ato humano é motivado, em vez disso, por aquilo que o precede, e, nessa rede de conexões, está incluído no conhecimento de Deus. conservando sua própria natureza conhecida e ordenada por Deus, os eventos contingentes e as ações livres estão ligados na ordem de causas que, pouco a pouco, nos é revelada na história do mundo.

Fonte:  BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. Vol. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 204 - 209. Publicado no  blog Bereianos.

29 de dez. de 2014

Santidade e Justiça

Por Herman Bavinck

A santidade e a justiça de Deus caminham de mãos dadas com a Sua bondade e com a Sua Graça. Deus é chamado o Santo não apenas porque Ele é exaltado sobre todas as Suas criaturas, mas especialmente porque Ele é separado de tudo o que é pecaminoso e impuro no mundo. Portanto, Ele exige que Seu povo, que pela Sua livre Graça Ele escolheu para que fosse Seu, seja santo, e Ele se santifica a Si mesmo nesse povo através de Cristo (Ef 5.26,27),pois apesar de Cristo ter santificado a Si mesmo por Seu povo e em lugar dele, esse povo pode ser santificado na verdade (Jo 17.19). E a retidão e justiça de Deus estão intimamente relacionadas com a Sua santidade, pois, sendo o Santo, Ele não pode ser amigo do pecado. Ele abomina o pecado (SI 45.7; Jó 34.10), levanta-se contra ele (Rm 1.18), é zeloso de Sua honra (Ex 20.5) e, portanto, não pode inocentar o culpado (Ex 25.5,7). 

Sua natureza santa requer também que, fora de Si mesmo, no mundo de Suas criaturas, Ele mantenha a justiça e, de forma imparcial, retribua a cada um segundo as Suas obras (Rm 2.2-11; 2Co 5.10). Hoje em dia há aqueles que tentam fazer com que outras pessoas acreditem que Deus não se importa com os pensamentos e atos pecaminosos do homem. Mas o Deus vivo e verdadeiro que as Escrituras nos apresentam pensa muito diferente sobre isso. Sua ira contra o pecado é terrível, e Ele pune o pecador tanto temporal-mente quanto eternamente por meio de um justo julgamento (Dt 27.26; Gl 3.10).

Mas Ele não apenas pune os incrédulos de acordo com Sua justiça. É um ensino notável das Escrituras que de acordo com essa mesma justiça Ele conceda salvação aos santos. De fato, esses santos são pecadores também, e em nada são melhores do que os outros. Mas enquanto o incrédulo oculta os seus pecados ou os encobre, os santos os reconhecem e confessam. Essa é a distinção entre eles. Apesar de serem pessoalmente culpados e impuros, eles estão do lado de Deus e contra o mundo. Eles podem, portanto, apelar à promessa do pacto da Graça, à verdade da Palavra de Deus, à justiça que Deus realizou em Cristo.

Em termos dessa justiça nós podemos dizer, corajosa e reverentemente, que Deus é obrigado a perdoar os pecados de Seu povo e dar-lhe vida eterna. E se Deus deixa que Seu povo espere por Ele e prova sua fé por um longo tempo, segue-se que em sua perfeita redenção a integridade e a fideli­dade de Deus são demonstradas mais gloriosamente.
O Senhor aperfeiçoará aque­les que pertencem a Seu povo, pois Sua misericórdia dura para sempre (SI 138.8). O Senhor é mi­sericordioso e gracioso, longânimo e abundante em bondade e verdade.
Uns confiam em carros, ou­tros, em cavalos; nós, porém, nos gloriaremos em o nome do Se­nhor, nosso Deus. Esse Deus é o nosso Deus para todo o sempre; Ele será o nosso guia até à morte(SI 48.14). Ele é um Deus abençoador glorioso (ITm 6.15; Ef1.17). E feliz é o povo cujo Deus é o Senhor (SI 33.12).
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Fonte: O Calvinismo

29 de out. de 2014

Os Fundamentos da Religião

Por Herman Bavinck

O significado da Religião cristã pode ser determinado a partir da disputada etimologia da palavra “religião”. A Bíblia não dá uma ideia geral de religião, mas apresenta a revelação de Deus de forma pactual como seu objetivo e o temor do Senhor como lado subjetivo. Deus deve ser honrado e sua revelação deve ser crida e obedecida. A religião bíblica é, em primeiro lugar, um assunto do coração: ela nunca é esgotada pela observação.

De acordo com Tomás de Aquino, a religião não é uma questão de virtudes teológicas (fé, esperança, caridade), que têm Deus como seu objeto direto, mas de virtudes morais (prudência, justiça, firmeza e temperança), das quais Deus é o fim. O real objeto da religião aqui é a devoção obedientemente oferecida a Deus. A religião pertence à virtude da justiça, é a virtude pela qual os seres humanos oferecem a Deus a devoção e a adoração a Ele devidas.

Os teólogos reformados distinguem mais claramente a piedade como o princípio e a adoração como o ato da religião. A piedade é, antes de tudo, um estado de existência, um hábito e uma disposição que levam os seres humanos a adorar a Deus. Schleiermacher até mesmo definiu a religião em termos de piedade, como “sentimento absoluto de dependência”. Embora essa definição seja inadequada, ela também contém elementos de verdade. Nós, criaturas humanas, somos radicalmente dependentes de Deus. Subjetivamente, isso é conhecido como fé, a fé que nos leva ao serviço, a atos de obediência e ao amor. A verdadeira religião consiste na confiança absoluta em Deus e em um sincero desejo de viver em obediência a Ele.

A era moderna deus origem a um estudo comparativo cientifico, histórico ou psicológico de todas as religiões. Embora todas as religiões tenham similaridades  formais (revelação, culto, dogma), não existe uma religião genérica, apenas religiões concretas, todas com alegações conflitantes. Os esforços para se chegar a essência da religião em geral levaram a resultados magros com proposições vagas, e a pesquisa deve ser considerada um impasse. Não há como escapar da necessidade de julgar o conteúdo de religiões especificas como “verdadeiro” ou “falso”. Os juízos dogmáticos não podem ser evitados.

Antropologicamente, qual é o lugar da religião na psique humana? A religião é primariamente conhecimento, moralidade ou sentimento? Grande parte do pensamento moderno, notavelmente o idealismo, tem uma interpretação intelectualista da religião. Para Hegel, todo o mundo é um desdobramento da mente. A religião é uma forma de conhecimento substituído somente pela filosofia. A tradição kantiana, contudo, define a religião voluntaristamente como conduta moral e localiza e localiza sua sede na vontade humana. Outros, como Schleiermacher, influenciados pelo romantismo, consideram a religião como primariamente estética e localizada no sentimento humano. Embora intelecto, moralidade e sentimento desempenhem papéis importantes na verdadeira religião, ela não deve ser reduzida a uma só faculdade. A verdadeira religião é central para todos os atos culturais e produtos humanos: ciência, moralidade e arte.

Cientificamente, tentativas históricas para explicar a origem da religião não dão certo. Nem o temor, nem a ilusão sacerdotal, nem a fraqueza humana, nem a busca da felicidade, nem a ignorância é uma explicação satisfatória. Tentativas de considerar a religião como uma “auto-afirmação da vida do Espírito” fazem com que Deus e a religião sejam uma criação humana, inventada para satisfazer a necessidade humana, Deus é um servo da humanidade.

Finalmente, o estudo científico, histórico, das religiões não pode encontrar resposta  para a origem da religião – somente a revelação pode fazer isso. A religião não pode ser entendida sem Deus e, para que possamos conhecê-lo, ele tem de se revelar a nós. A revelação é o princípio externo do conhecimento da religião. A revelação e a religião não são estranhas à natureza humana. Em vez disso, como portadores da imagem de Deus, os seres humanos são, por natureza, religiosos. Portanto, a religião é uma realidade universal. Somos criados por Deus. A religião existe porque Deus é Deus e quer ser honrado. Para esse fim ele se revela a nós e faz com que sejamos subjetivamente aptos a conhecê-lo.

Fonte: Dogmática Reformada – Vol. 1, cap.8, p.235,236

7 de out. de 2014

A Ciência da Teologia Dogmática

Por Herman Bavinck

O estudo sistemático das verdades da fé cristã é descrito por muitos termos diferentes. A designação “dogmática” tem a vantagem de fixar esse estudo no estudo no ensino normativo ou dogmas da igreja. Os dogmas são simplesmente aquelas verdades devidamente estabelecidas na Escritura como coisas que devem ser cridas.

Uma verdade confessada pela igreja não é um dogma porque a igreja a reconhece, mas unicamente porque ela repousa sobre a autoridade de Deus. Não obstante, o dogma religioso é sempre uma combinação da autoridade divina com a confissão da igreja.

Os dogmas são verdades reconhecidas por um grupo específico. Embora os dogmas da igreja tenham autoridade somente se forem realmente verdades de Deus, o ensino da igreja nunca é idêntico à verdade divina em si. Ao mesmo tempo, é um erro desvalorizar a maior parte dos dogmas como aberrações em inconstantes da pura essência do evangelho não-dogmático, como fazem alguns teólogos modernos.

A oposição ao dogma não é uma objeção geral ao dogma como tal, mas uma rejeição de dogmas específicos considerados inaceitáveis por alguns. Dessa forma, a teologia depois de Kant nega os dogmas arraigados em um conhecimento de Deus por causa do dogma moderno de que Deus é incognoscível. Os dogmas arraigados na moralidade ou na experiência religiosa são então colocados em seu lugar. Contudo, do ponto de vista da ortodoxia cristã, a dogmática é o conhecimento que Deus revelou em sua Palavra à sua igreja a respeito de si mesmo e de todas as criaturas em relação a Ele. Ainda que objeções a esta definição em nome da fé geralmente provoquem enganos, nunca se deve esquecer que o conhecimento de Deus, que é o verdadeiro objeto da teologia dogmática, só é obtido pela fé.

Deus não pode ser conhecido por nós sem a revelação recebida por meio da fé. A dogmática nada mais procura do que ser verdadeira para o conhecimento de fé dado nessa revelação. A dogmática, portanto, não é a ciência da fé ou da religião, mas a ciência sobre Deus.

A tarefa do dogmático é pensar os pensamentos de Deus à maneira dele e estabelecer sua unidade. Esta é uma tarefa que deve ser cumprida na convicção de que Deus falou, em humilde submissão à tradição de ensino da igreja, para comunicar a mensagem do evangelho ao mundo.

O lugar próprio da dogmática na grande enciclopédia do estudo teológico não é uma questão de grande debate. A principal questão tem a ver com a relação entre teologia dogmática e a filosofia. Nem a sujeição da dogmática aos pressupostos filosóficos nem a separação dualista entre teologia confessional e o estudo cientifico da religião são aceitáveis. Essa ruptura separa a vida dos professores de teologia e dos pastores. Os esforções para “resgatar”  os estudos religiosos da acidez da filosofia modernista são um favor que a igreja não pode deixar de aceitar. Todo conhecimento está arraigado na fé e toda fé inclui um importante elemento de conhecimento. A tarefa da teologia dogmática, em última análise, é nada menos que fazer uma exposição cientifica da verdade religiosa com base na Escritura Sagrada. A defesa apologética dessa verdade e suas aplicações éticas à conduta cristã estão baseadas e procedem da revelação divina e da fé; elas não fundamentam ou dão forma à fé. A dogmática e a ética são uma unidade, embora possam ser tratadas como disciplinas distintas. A dogmática descreve os atos de Deus por nós e em nós; a ética descreve aquilo que seres humanos renovados fazem agora com base e na força desses atos.
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Trecho da Dogmática Reformada de Herman Bavinck, Vol. I