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10 de out. de 2016

Argumentos a favor do Amilenismo

Por Wayne Grudem

1. Quando olhamos para a totalidade da Bíblia, somente uma passagem (Apocalipse 20:1-6) parece ensinar o reino milenar terreno e futuro de Cristo, e essa passagem em si mesma é obscura. Não é sábio basear tão importante doutrina em uma passagem de interpretação incerta e amplamente controvertida.

Mas, como os amilenistas entendem Apocalipse 20:1-6? A interpretação amilenista vê essa passagem como referindo-se à presente era da igreja. A passagem é esta:

"E vi descer do céu um anjo, que tinha a chave do abismo e uma grande cadeia na sua mão. Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o Diabo e Satanás, e o amarrou por mil anos. Lançou-o no abismo, o qual fechou e selou sobre ele, para que não enganasse mais as nações até que os mil anos se completassem. Depois disto é necessário que ele seja solto por um pouco de tempo. Então vi uns tronos; e aos que se assentaram sobre eles foi dado o poder de julgar; e vi as almas daqueles que foram degolados por causa do testemunho de Jesus e da palavra de Deus, e que não adoraram a besta nem a sua imagem, e não receberam o sinal na fronte nem nas mãos; e reviveram, e reinaram com Cristo durante mil anos. Mas os outros mortos não reviveram, até que os mil anos se completassem. Esta é a primeira ressurreição.Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes não tem poder a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com ele durante os mil anos".

De acordo com a interpretação amilenista[1], a prisão de Satanás nos versículos 1 e 2 é a prisão que ocorreu durante o ministério terreno de Jesus. Ele falou sobre amarrar o valente a fim de poder saquear a casa (Mateus 12:29 - “Ou, como pode alguém entrar na casa do valente, e roubar-lhe os bens, se primeiro não amarrar o valente? e então lhe saquear a casa”) e disse que o Espírito de Deus estava presente naquele tempo em poder para triunfar sobre as forças demoníacas: “Mas se é pelo Espírito de Deus que eu expulso demônios, então chegou a vocês o Reino de Deus” (Mateus 12:28). Semelhantemente, com respeito à destruição do poder de Satanás, Jesus disse durante o Seu ministério: "Eu vi Satanás caindo do céu como relâmpago” (Lucas 10:18).

O amilenista argumenta que essa prisão de Satanás em Apocalipse 20:1-3 tem um propósito específico: “para assim impedi-lo de enganar as nações” (v. 3). Isso, então, é o que aconteceu quando Jesus veio e o evangelho começou a ser proclamado não simplesmente aos judeus, mas, após o Pentecoste, a todas as nações do mundo. De fato, a atividade missionária mundial da igreja e a presença da igreja na maioria das nações do mundo ou em todas elas mostra que o poder que Satanás tinha no Antigo Testamento de “enganar as nações” e mantê-las nas trevas acabou.

Na visão amilenista, argumenta-se que, como João viu as “almas” e não os corpos físicos no versículo 4, essa cena deve estar ocorrendo no céu. Quando o texto diz que “eles ressuscitaram”, não quer dizer que ressuscitaram fisicamente. Isso possivelmente significa que eles simplesmente “viveram”, já que o verbo no aoristo ezesan pode facilmente ser interpretado como a afirmação de um evento que ocorreu por um longo período de tempo. Alguns intérpretes amilenistas, no entanto, tomam o verbo ezesan como significando que “eles vieram à vida” no sentido de vir a uma existência celestial na presença de Cristo e começar a reinar com Ele do céu.

Conforme essa visão, a expressão “primeira ressurreição” (v. 5) refere-se a ir para o céu para estar com o Senhor. Essa não é uma ressurreição corporal, mas uma ida à presença do Senhor no céu. De modo semelhante, quando o versículo 5 diz que “o restante dos mortos não voltou a viver até se completarem os mil anos”, isso é entendido como se eles não tivessem vindo à presença de Deus para juízo até o final dos mil anos. Assim, tanto no versículo 4 quanto no 5, a expressão “voltou a viver” significa ir para a presença de Deus. (Outra posição amilenista da “primeira ressurreição” é a que se refere à ressurreição de Cristo e à participação dos crentes na ressurreição de Cristo por meio da união com Ele).


2. O segundo argumento muitas vezes propostos em favor do amilenismo é o fato de que a Escritura ensina somente uma ressurreição, tanto os crentes como os descrentes serão levantados da morte, não duas ressurreições (a ressurreição de crentes antes de o milênio começar e a ressurreição de descrentes para o juízo após o fim do milênio). Esse é uma argumento importante, porque a posição pré-milenista requer duas ressurreições separada por um período de mil anos.

Evidência a favor de uma única ressurreição é encontrada em versículos como João 5:28-29, nos quais Jesus diz: “Não fiquem admirados com isto, pois está chegando a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal ressuscitarão para serem condenados”. Aqui Jesus fala de uma única “hora” em que tantos crentes como descrentes mortos sairão de suas tumbas (ver também Daniel 12:2; Atos 24:15).

“E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno” (Daniel 12:2)

“Tendo esperança em Deus, como estes mesmos também esperam, de que há de haver ressurreição tanto dos justos como dos injustos” (Atos 24:15)


3. A idéia de crentes glorificados e de pecadores vivendo na terra juntos é muito difícil de aceitar. Berkhof diz: “É impossível entender como uma parte da velha terra e da humanidade pecadora poderá coexistir com uma parte da nova terra e de uma humanidade já glorificada. Como poderão os santos em corpos glorificados ter comunhão com pecadores na carne? Como poderão os santos glorificados viver nesta atmosfera sobrecarregada de pecado e em cenário de morte e decadência?”[2].


4. Se Cristo vem em glória para reinar sobre a terra, então como as pessoas ainda poderiam persistir no pecado? Uma vez que Jesus esteja realmente presente em Seu corpo ressurreto e reinando como rei sobre a terra, não parece altamente improvável que pessoas ainda O rejeitem e que o mal e a rebelião ainda cresçam na terra até o ponto de finalmente Satanás reunir as nações para a batalha contra Cristo?

5. Em conclusão, os amilenistas dizem que a Escritura parece indicar que todos os eventos mais importantes que ainda estão por acontecer antes do estado eterno ocorrerão de uma só vez. Cristo vai retornar, haverá uma só ressurreição de crentes e descrentes, o juízo final acontecerá, e o novo céu e a nova terra serão estabelecidos. Então, entraremos imediatamente para o estado eterno, sem qualquer milênio futuro.

***

NOTAS:

[1] - Aqui estou seguindo amplamente a excelente discussão de Anthony A. Hoekema, na obra Milênio: significado e interpretações, Robert G. Clouse, org. (Editora Cultura Cristã), p. 141-170.

[2] - Teologia Sistemática, p. 658.



Fonte: Wayne Grudem, Teologia Sistemática, Editora Vida. (Via Monergismo)

30 de set. de 2016

A Graça Comum

 Por Wayne Grudem

Introdução e definição

Quando Adão e Eva pecaram, tornaram-se réus da punição eterna e da separação de Deus (Gênesis 2:17). Do mesmo modo, hoje, quando os seres humanos pecam, eles se tornam sujeito à ira de Deus e à punição eterna: “o salário do pecado é a morte” (Romanos 6:23). Isso significa que, uma vez que as pessoas pecam, a justiça de Deus requer somente uma coisa — que elas sejam eternamente separadas de Deus, alienadas da possibilidade de experimentar qualquer bem da parte dEle, e que elas existam para sempre no inferno, recebendo eternamente apenas a Sua ira. De fato, isso foi o que aconteceu aos anjos que pecaram e poderia ter acontecido exatamente conosco também: “Pois Deus não poupou aos anjos que pecaram, mas os lançou no inferno, prendendo-os em abismos tenebrosos a fim de serem reservados para o juízo” (2 Pedro 2:4).

Mas, de fato, Adão e Eva não morreram imediatamente (embora a sentença de morte começasse a ser aplicada na vida deles no dia em que pecaram). A execução plena da sentença de morte foi retardada por muitos anos. Além disso, milhões de seus descendentes até o dia de hoje não morrem nem vão para o inferno tão logo pecam, mas continuam a viver por muitos anos, desfrutando bênçãos incontáveis nesta vida. Como pode ser isso? Como Deus pode continuar a conferir bênçãos a pecadores que merecem somente a morte — não somente aos que finalmente serão salvos, mas também a milhões que nunca serão salvos, cujos pecados nunca serão perdoados?

A respostas a essas perguntas é que Deus concede-lhes graça comum. Podemos definir graça comum da seguinte maneira: Graça comum é a graça de Deus pela qual Ele dá às pessoas bênçãos inumeráveis que não são parte da salvação. A palavra comum aqui significa algo que é dado a todos os homens e não é restrito aos crentes ou aos eleitos somente.

Diferentemente da graça comum, a graça de Deus que leva pessoas à salvação é muitas vezes chamada “graça salvadora”. Naturalmente, quando falamos a respeito da “graça comum” e da “graça salvadora”, não estamos sugerindo que há duas diferentes espécies de graça no próprio Deus, mas apenas estamos dizendo que a graça de Deus se manifesta no mundo de duas maneiras diferentes. A graça comum é diferente da graça salvadora quanto aos resultados (ela não traz salvação), seus destinatários (é dada aos crentes e descrentes igualmente) e sua fonte (ela não flui diretamente da obra expiatória de Cristo, visto que a morte dEle não obtém nenhuma medida de perdão para os descrentes e, portanto, nem os crentes nem os descrentes fazem jus às suas bênçãos). Contudo, sobre o último ponto, deve ser dito que a graça comum flui indiretamente da obra redentora de Cristo, porque o fato de Deus não julgar o mundo assim que o pecado entrou nele talvez seja apenas porque Ele planejou finalmente salvar alguns pecadores por meio da morte de Seu Filho.

Exemplos de graça comum

Se olhamos para o mundo ao nosso redor e o contrastamos com o fogo do inferno que ele merece, podemos ver imediatamente a abundante evidência da graça comum de Deus em milhares de exemplos na vida diária. Podemos distinguir diversas categorias específicas nas quais essa graça comum pode ser vista.

1. A esfera física. Os descrentes continuam a viver neste mundo somente por causa da graça comum de Deus — cada vez que as pessoas respiram é pela graça, pois o salário do pecado é a morte, não a vida. Além disso, a terra não produz somente espinhos e ervas daninhas (Gênesis 3:18), nem permanece um deserto ressequido, mas a graça comum de Deus provê comida e material para roupa e abrigo, muitas vezes em grande abundância e diversidade. Jesus disse: “Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus. Porque Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mateus 5:44,45). Aqui Jesus apela para a abundante graça comum de Deus como encorajamento aos seus discípulos, para que eles também concedam amor e orem para que os descrentes sejam abençoados (cf. Lucas 6:35,36). Semelhantemente, Paulo disse ao povo de Listra: “No passado [Deus] permitiu que todas as nações seguissem os seus próprios caminhos. Contudo. Deus não ficou sem testemunho: mostrou sua bondade, dando-lhes chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo-lhes sustento com fartura e um coração cheio de alegria” (Atos 14:16,17).

O Antigo Testamento também fala da graça comum de Deus que vem aos descrentes tanto quanto aos crentes. Um exemplo específico é o de Potifar, o capitão da guarda do Egito que comprou José como escravo: “o Senhor abençoou a casa do egípcio por causa de José. A bênção do Senhor estava sobre tudo o que Potifar possuía, tanto em casa como no campo” (Gênesis 39:5). Davi fala de modo muito mais geral a respeito das criaturas que o Senhor fez:

“O Senhor é bom para todos; a sua compaixão alcança todas as suas criaturas. [...] Os olhos de todos estão voltados para ti, e tu lhes dás o alimento no devido tempo. Abres a tua mão e satisfazes os desejos de todos os seres vivos” (Salmos 145:9,15,16).

Estes versículos são outro lembrete de que a bondade que é encontrada em toda a criação não acontece automaticamente — ela se deve à bondade de Deus e Sua compaixão.

2. A esfera intelectual. Satanás é “mentiroso e pai da mentira” e “não há verdade nele” (João 8:44), porque lhe foi dado ter domínio sobre o mal e sobre a irracionalidade e comprometimento com a falsidade que acompanha o mal radical. Mas os seres humanos no mundo de hoje, mesmo os descrentes, não estão totalmente entregues à mentira, irracionalidade e ignorância. Todas as pessoas são capazes de ter um pouco de compreensão da verdade; de fato, algumas possuem grande inteligência e entendimento. Isso também deve ser visto como resultado da graça comum de Deus. João fala de Jesus como “a verdadeira luz, que ilumina todos os homens” (João 1:9), pois, em seu papel como criador e sustentador do universo (não particularmente em seu papel como redentor), o Filho de Deus concede iluminação e entendimento que vêm a todas as pessoas no mundo.

A graça comum de Deus na esfera intelectual é vista no fato de que todas as pessoas têm certo conhecimento de Deus: “porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças” (Romanos 1:21). Isso significa que há um senso da existência de Deus e muitas vezes a fome de conhecer Deus que Ele permite que permaneça no coração das pessoas, embora isso resulte muitas vezes em muitos religiões diferentes criadas pelos homens. Portanto, mesmo quando falando a pessoas que sustentavam religiões falsas, Paulo pôde encontrar um ponto de contato com respeito ao conhecimento da existência de Deus, exatamente como fez quando falou aos filósofos atenienses: “Atenienses! Vejo que em todos os aspectos vocês são muito religiosos [...] o que vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio” (Atos 17:22,23).

A graça comum de Deus na esfera intelectual também resulta na capacidade de captar a verdade e distingui-la do erro e de experimentar crescimento em conhecimento que pode ser usado na investigação do universo e na tarefa de dominar a terra. Isso significa que toda ciência e tecnologia desenvolvida pelos não-cristãos é resultado da graça comum, permitindo-lhes fazer descobertas e invenções incríveis, para desenvolver os recursos do planeta na criação de muitos bens materiais, para produção e distribuição desses recursos e para alcançar habilidades na obra produtiva. Em sentido prático, isso significa que, cada vez que entramos em uma mercearia, andamos em um automóvel ou entramos em uma casa, devemos lembrar que estamos experimentando os resultados da abundante graça comum de Deus derramada tão ricamente sobre toda a raça.

3. A esfera moral. Pela graça comum Deus também refreia as pessoas de serem tão más quanto poderiam. Novamente o reino demoníaco, totalmente dedicado ao mal e à destruição, proporciona um contraste claro com a sociedade humana, na qual o mal é claramente refreado. Se as pessoas persistem dura e repetidamente em seguir o pecado durante o curso de sua vida, Deus finalmente as entregará ao maior de todos os pecados (cf. Salmos 81:12; Romanos 1:24,26,28), mas no caso da maioria dos seres humanos eles não caem nas profundezas às quais seus pecados normalmente os levariam, porque Deus intervém e coloca freio na sua conduta. Um refreamento muito eficaz é a força da consciência. Paulo diz: “De fato, quando os gentios, que não têm a Lei, praticam naturalmente o que ela ordena, tornam-se lei para si mesmos, embora não possuam a Lei; pois mostram que as exigências da Lei estão gravadas em seu coração. Disso dão testemunho também a sua consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora defendendo-os” (Romanos 1:32). E em muitos outros casos, essa sensação interior da consciência leva os indivíduos a estabelecer leis e costumes na sociedade que são, em termos da conduta exterior que eles aprovam ou proíbem, totalmente iguais às leis morais da Escritura. As pessoas muitas vezes estabelecem leis ou têm costumes que respeitam a santidade do casamento e da família, protegem a vida humana e proíbem o roubo e a falsidade no falar. Por causa disso, elas muitas vezes seguem caminhos moralmente retos e exteriormente andam conforme os padrões morais encontrados na Escritura. Embora a conduta moral delas não possa ganhar méritos com Deus, visto que a Escritura claramente diz que “diante de Deus ninguém é justificado pela Lei” (Gálatas 3:11) e “Todos se desviaram, tornaram-se juntamente inúteis; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer” (Romanos 3:12), contudo, em algum sentido menor que ganhar a aprovação ou o mérito eterno de Deus, os descrentes realmente fazem “o bem”. Jesus sugere isso quando diz: “E que mérito terão, se fizerem o bem àqueles que são bons para com vocês? Até os 'pecadores' agem assim” (Lucas 6:33).

4. A esfera da criatividade. Deus distribuiu medidas significativas de capacidade em áreas artísticas e musicais, assim como em outras esferas nas quais a criatividade e a habilidade podem expressar-se, como praticar esportes, cozinhar, escrever, e assim por diante. Além disso, Deus nos dá a capacidade de apreciar a beleza em muitas áreas da vida. E nessa área, assim como na esfera física e intelectual, as bênçãos da graça comum são às vezes derramadas sobre os descrentes até mais abundantemente que sobre os crentes. Todavia, em todos os casos, ela é resultado da graça de Deus.

5. A esfera da sociedade. A graça de Deus também é evidente na existência de várias organizações e estruturas na raça humana. Vemos isso primeiramente na família humana, ressaltado pelo fato de que Adão e Eva permaneceram marido e mulher após a queda e então tiveram filhos, homens e mulheres (Gênesis 5:4). Os filhos de Adão e Eva casaram-se e formaram famílias para si mesmos (Gênesis 4:17,19,26). A família humana permanece ainda hoje, não simplesmente como instituição para os crentes, mas para todas as pessoas.

O governo humano é também resultado da graça comum. Ele foi instituído no princípio por Deus após o dilúvio (ver Gênesis 9:6) e, segundo Romanos 13 claramente afirma, foi estabelecido por Deus: “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas”. Está claro que o governo é dom de Deus para a raça em geral, pois Paulo diz que a autoridade “é serva de Deus para o seu bem” e que ela é “serva de Deus, agente de justiça para punir quem pratica o mal” (Romanos 13:4). Um dos principais meios que Deus usa para refrear o mal no mundo é o governo humano. As leis humanas, as forças policiais e os sistemas judiciais proporcionam poderosa repressão às más ações, e esses são freios necessários, pois há muito mal no mundo que é irracional e pode ser restringido somente pela força, já que ele não será impedido pela razão ou pela educação. Obviamente a pecaminosidade das pessoas pode também afetar os governos em si mesmos, de forma que o governo humano, igual a todas as outras bênçãos da graça comum que Deus dá, pode ser usado tanto para o propósito do bem como do mal.

6. A esfera religiosa. Mesmo na esfera da religião humana, a graça comum de Deus traz algumas bênçãos para as pessoas incrédulas. Jesus nos diz: “Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem” (Mateus 5:44), e desde que não há qualquer restrição no contexto para que se ore simplesmente pela salvação deles e como a ordem de orar pelos que nos perseguem é combinada com a ordem de amá-los, parece razoável concluir que Deus pretende responder a nossas orações pelos que nos perseguem em muitas áreas de suas vidas. De fato, Paulo especificamente ordena que oremos “pelos reis e por todos os que exercem autoridade” (1 Timóteo 2:2). Quando procuramos o bem dos descrentes, isso é coerente com a própria prática divina de conceder sol e chuva a “maus e bons” (Mateus 5:45) e também está de acordo com a prática de Jesus durante o Seu ministério terreno, quando Ele curou cada pessoa que lhe era trazida (Lucas 4:40). Não há indicação alguma de que ele tenha exigido que todos cressem nele ou concordassem que ele era o Messias antes de lhes conceder cura física.

Deus responde às orações dos descrentes? Embora Deus não tenha prometido responder às orações dos descrentes como prometeu responder às orações dos que vêm a Ele em nome de Jesus, e embora Ele não tenha obrigação de responder às orações dos descrentes, mesmo assim Deus pode por Sua graça comum ouvir e responder positivamente às orações deles, demonstrando dessa forma Sua misericórdia e bondade de outro modo ainda (cf. Salmos 145:9,15; Mateus 7:22; Lucas 6:35,36). Esse é provavelmente o sentido de 1 Timóteo 4:10, que diz que Deus é o “Salvador de todos os homens, especialmente dos que crêem”. Aqui “Salvador” não significa restritamente “quem perdoa pecados e dá vida eterna”, porque tais coisas não são dadas aos que não crêem. “Salvador” deve ter aqui um sentido mais geral — a saber, “quem resgata da miséria, quem liberta”. Em caso de pobreza e miséria, Deus muitas vezes ouve as orações dos descrentes e os livra graciosamente de seus problemas. Além disso, mesmo os descrentes muitas vezes possuem um senso de gratidão para com Deus pela bondade da criação, pela libertação em meio ao perigo e pelas bênçãos da família, do lar, das amizades e do país.

7. A graça comum não salva pessoas. A despeito de tudo isso, devemos perceber que a graça comum é diferente da graça salvadora. A graça comum não muda o coração humano nem traz pessoas ao genuíno arrependimento ou à fé — ela não pode salvar e não salva pessoas (embora na esfera intelectual e moral ela possa preparar as pessoas para torná-las mais dispostas a aceitar o evangelho). A graça comum refreia o pecado, mas não muda a disposição fundamental de pecar nem purifica a natureza humana decaída.

Devemos também reconhecer que as ações que os descrentes realizam por causa da graça comum não merecem a aprovação ou o favor de Deus. Essas ações não procedem da fé (“tudo o que não provém da fé é pecado”, Romanos 14:23) nem são motivadas pelo amor a Deus (Mateus 22:37), e sim pelo amor ao ego sob uma ou outra forma. Portanto, embora possamos prontamente dizer que as obras dos descrentes que se conformam externamente às leis de Deus são “boas” em algum sentido, contudo elas não são boas em termos de merecer a aprovação de Deus nem de tornar Deus endividado para com o pecador em sentido algum.

Finalmente, devemos reconhecer que os descrentes muitas vezes recebem mais graça comum que os crentes — eles podem ser mais habilidosos, trabalhar com mais esforço, ser mais inteligentes, mais criativos ou ter mais dos benefícios materiais desta vida para desfrutar. Isso não indica de forma alguma que eles são mais favorecidos por Deus no sentido absoluto ou que eles vão ganhar qualquer coisa relativa à salvação eterna, mas significa somente que Deus distribui as bênçãos da graça comum de vários modos, muitas vezes concedendo bênçãos bastante significativas a descrentes. Em tudo isso, obviamente, eles devem tomar consciência da bondade de Deus (Ateus 14:17) e reconhecer que a vontade revelada de Deus é que essa “bondade de Deus” finalmente os conduza “ao arrependimento” (Romanos 2:4).

Razões para a graça comum

Por que Deus concede graça comum a pessoas imerecedoras que nunca virão à salvação? Podemos sugerir ao menos quatro razões.

1. Para redimir os que serão salvos. Pedro diz que o dia do juízo e da execução final de punição está sendo retardado porque há ainda mais pessoas que serão salvas. “O Senhor não demora em cumprir a sua promessa, como julgam alguns. Ao contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento.” (2 Pedro 3:9,10). De fato, essa razão foi verdadeira desde o princípio da história humana, pois, se Deus quisesse salvar qualquer pessoa entre todos que compõem a humanidade pecaminosa, Ele não poderia destruir todos os pecadores imediatamente (nesse caso não sobraria ninguém da raça humana). Ao contrário, Ele resolveu permitir que seres humanos pecaminosos vivessem algum tempo de modo a ter uma oportunidade de arrependimento e também para que pudessem gerar filhos, capacitando gerações subseqüentes a viver, a ouvir o evangelho e se arrepender.

2. Para demonstrar a bondade e a misericórdia de Deus. A bondade e a misericórdia de Deus não são vistas somente na salvação dos crentes, mas também nas bênçãos que Deus dá aos pecadores que não as merecem. Quando Deus “é bondoso para com os ingratos e maus” (Lucas 6:35), essa bondade é revelada no universo, para a Sua glória. Davi diz: “O Senhor é bom para todos; a sua compaixão alcança todas as suas criaturas” (Salmos 145:9). Na história de Jesus conversando com o moço rico, lemos: “Jesus olhou para ele e o amou” (Marcos 10:21), embora o homem fosse um descrente que no mesmo instante afastou-se de Jesus porque possuía muitas riquezas. Berkhof diz que Deus “derrama incontáveis bênçãos sobre todos os homens e também indica claramente que elas são expressões de uma disposição favorável de Deus que, contudo, fica muito aquém da volição positiva exercida para lhes perdoar, suspender a sentença a eles imposta e assegurar-lhes a salvação”.

Não é injusto Deus retratar a execução da punição do pecado e dar temporariamente bênçãos aos seres humanos, porque a punição não é esquecida, mas apenas retardada. Retardando a punição, Deus mostra claramente que não tem prazer em executar o juízo final, mas, ao contrário, Ele se deleita na salvação de homens e mulheres. “Juro pela minha vida, palavra do Soberano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes tenho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam” (Ezequiel 33:11). Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:4). Em tudo isso o tempo de espera da punição dá uma evidência clara da misericórdia, bondade e amor de Deus.

3. Para demonstrar a justiça de Deus. Quando repetidamente Deus convida os pecadores a virem à fé e repetidamente eles recusam os Seus convites, a justiça de Deus em condená-los é vista muito mais claramente. Paulo adverte que quem persiste na incredulidade está simplesmente acumulando a ira para si mesmo: “Contudo, por causa da teimosia e do seu coração obstinado, você está acumulando ira contra si mesmo, para o dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento” (Romanos 2:5). No dia do juízo todas as bocas serão silenciadas (Romanos 3:19), e ninguém será capaz de contrapor que Deus foi injusto.

4. Para demonstrar a glória de Deus. Finalmente, a glória de Deus é mostrada de muitas formas pelas atividades dos seres humanos em todas as áreas nas quais a graça comum está em operação. No desenvolvimento e no exercício do domínio sobre a terra, homens e mulheres demonstram e refletem a sabedoria do seu Criador, comprovam as qualidades dadas por Deus, as virtudes morais e a autoridade sobre o universo, e coisas semelhantes. Embora todas essas atividades sejam contaminadas por motivos pecaminosos, elas apesar disso refletem a excelência de nosso Criador e, portanto, trazem a glória a Ele, não de forma plena e perfeita, mas ainda assim significativa.

Nossa resposta à doutrina da graça comum

Pensando sobre as várias espécies de bondades vistas na vida dos descrentes por causa da graça comum que Deus dá abundantemente, devemos ter em mente três pontos.

1. Graça comum não significa que quem a recebe será salvo. Mesmo uma porção excepcional de graça comum não significa que quem a recebe será salvo. Até as pessoas mais habilidosas, mas inteligentes, mais ricas e poderosas no mundo ainda carecem do evangelho de Jesus Cristo ou serão condenadas eternamente! Os nossos vizinhos mais bondosos e de moral mais elevada ainda carecem do evangelho de Jesus Cristo ou serão condenados eternamente! Exteriormente pode parecer que eles não têm necessidade algumas, mas a Escritura ainda diz que os descrentes são “inimigos de Deus” (Romanos 5:10; cf. Colossenses. 1:21; Tiago 4:4) e são “contra” Cristo (Mateus 12:30). Eles são “inimigos da cruz de Cristo” e “só pensam nas coisas terrenas” (Filipenses 3:18,19), sendo “por natureza merecedores da ira” (Efésios 2:3).

2. Devemos ser cuidados em não rejeitar as coisas boas que os descrentes fazem, considerando-as totalmente más. Pela graça comum os descrentes fazem algumas coisas boas, e devemos ver a mão de Deus nelas, sendo agradecidos por elas, como por exemplo nas amizades, em cada ato de bondade, no que elas trazem de bênçãos para outras pessoas. Tudo isso — embora o descrente não o saiba — procede em última análise de Deus, e Deus merece a glória por tudo.

3. A doutrina da graça comum deveria estimular nosso coração à gratidão muito maior a Deus. Quando descemos uma rua e vemos casas, jardins e famílias vivendo em segurança, ou quando negociamos no mercado e vemos os resultados abundantes do progresso tecnológico, ou quando andamos pelos bosques e vemos a beleza da natureza, ou quando somos protegidos pelas autoridades, ou quando somos educados no vasto conhecimento humano, devemos perceber não somente que Deus, em Sua soberania, é o responsável último por todas essas bênçãos, mas também que Deus as tem concedido aos descrentes, embora eles não tenham absolutamente nenhum mérito com relação a elas! Essas bênçãos no mundo não são apenas evidências do poder e sabedoria de Deus, mas a manifestação contínua da Sua graça abundante. A percepção deste fato deveria fazer nosso coração se encher de gratidão a Deus em cada atividade de nossa vida.

***

Fonte: Teologia Sistemática, Wayne Grudem, Editora Vida, págs. 297-304.

5 de ago. de 2016

A Trindade em essência (ontológica) e a Trindade no trabalho (econômica)

Por Leandro Lima

Dentro da Trindade existe absoluta igualdade de essência, logo, não existe qualquer grau de subordinação, nem mesmo de honra. O Pai não é maior em essência do que o Filho e nem o Filho maior do que o Espírito Santo. O Pai não deve ser mais adorado do que o Espírito, ou o Espírito mais do que o Filho. Entretanto, há características próprias em cada uma das pessoas da Trindade, as quais não encontramos nas demais. Estamos falando da Paternidade da Filiação e da Processão.

A paternidade é uma característica exclusiva do Pai. Nesse sentido não podemos chamar o Logos de Pai e nem o Espírito de Pai. A paternidade do Pai é diferente da que os homens concebem, por ser eterna. Não houve um tempo em que Deus não fosse Pai. Desde toda a eternidade ele é o Pai do Filho. O Pai se difere do Filho e do Espírito Santo por não ser gerado e nem proceder de ninguém, e por ser o único que gera.

O Filho possui a característica exclusiva de ser gerado. Somente o Filho é filho do Pai. Não houve um tempo em que o Filho não existia (Mq 5.2), ele é eternamente gerado da essência do Pai. A igreja tem historicamente afirmado que a geração do Filho é desde toda a eternidade como um ato atemporal. Se o Pai gerou o Filho em algum momento da história, então, isso significa que ele mudou de essência e que o Filho não é eterno em essência. A geração do Filho não cria uma nova essência na Trindade, pois é a mesma essência que é compartilhada tanto pelo Pai quanto pelo Filho. A Geração é uma comunicação da essência do Pai ao Filho, num ato atemporal, que faz com que tanto o Pai, quanto o Filho tenham vida em si mesmos (Jo 5.26). Em geral, os argumentos mais usados para dizer que Cristo não é eterno são os textos de Colossenses 1.15 e Apocalipse 3.14, que falam respectivamente de Jesus como "primogênito" e o "princípio" da criação de Deus. Dizem os unitários, especialmente as Testemunhas de Jeová, que esses termos colocam Cristo como a primeira criatura de Deus, não sendo portanto, eterna. Em Colossenses 1.15 "primogênito" da criação não pode se referir ao primeiro ser criado, pois subentenderia que Cristo é o primeiro filho da própria Criação e isso não faz sentido. A interpretação mais provável é que Cristo é o herdeiro de toda a Criação de Deus. Do mesmo modo, em Apocalipse 3.14, falar de Cristo como o primeiro por causa da palavra "princípio" não faz justiça ao uso dessa palavra no próprio livro do Apocalipse, pois o próprio Deus é chamado de princípio (Ap 1.8; 21.6; 22.13). Faz muito mais sentido pensar que o texto está falando de Cristo como o mais proeminente de toda a criação, o principal, o mais importante, o chefe (Ver Cl 1.18).

O Pai gera o Filho, o Filho é eternamente "gerado" do Pai, e o Espírito Santo "procede" eternamente do Pai e do Filho. Nas línguas grega e hebraica as palavras "pneuma" e "ruach", que são traduzidas como "espírito", derivam de raízes que significam "soprar, respirar, vento". Daí a ideia do Espírito ser soprado por Deus (Jo 20.22). A doutrina de que o Espírito "procede" do Pai e do Filho levou algum tempo para ser formulada pela igreja, sendo que somente em 589 no Sínodo de Toledo, foi formulada a seguinte declaração de fé: "Cremos no Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho". A base bíblica de que o Espírito procede do Pai e do Filho é João 15.26 e os textos nos quais o Espírito é chamado de Espírito de Cristo ou de Espírito do Filho (Rm 8.9; Gl 4.6; Fp 1.19; 1Pe 1.11).

A Trindade no Trabalho (econômica)

Uma maneira interessante de ver a Trindade é entender a forma como a Trindade age, não em relação a si mesma, mas em relação à criação. Quando falamos em essência, vimos que, embora haja características próprias em cada pessoa da Trindade, não existe qualquer grau de subordinação entre elas. Porém, quando falamos em trabalho (economia) da Trindade, percebemos que há uma ordem como Deus trabalha. Isso nos revela bastante do caráter Trinitário. Jesus fez algumas declarações que, certamente, poderiam nos deixar confusos, se não entendêssemos a diferença de Trindade em essência (ontológica) e Trindade econômica. Já vimos que ele disse ser um com seu Pai, porém, em outros textos, ele afirmou ser submisso ao Pai, como por exemplo, João 6.38: "Porque desci do céu não para fazer a minha própria vontade; e, sim, a vontade daquele que me enviou. E também noutra ocasião ele disse: "O Pai é maior do que eu" (Jo 14.28). Já dissemos que de acordo com a Bíblia, há igualdade absoluta entre as pessoas da Trindade, mas, então, por que Jesus disse que o Pai era maior do que ele? Certamente porque se referia à sua encarnação e à obra que precisava fazer. Ele foi submisso ao Pai nesse sentido e, portanto, inferior em função, mas não em essência. Estamos agora, falando das obras que se realizam, não dentro do ser divino, mas em relação à criação, providência e redenção. Vemos nas Escrituras algumas obras sendo mais atribuídas a uma das pessoas da Trindade do que a outra. Entretanto, devemos tomar o cuidado para não exagerarmos nas distinções, pois de certa forma, a Trindade participa conjuntamente de todas as obras externas.

Não precisamos temer falar de uma subordinação econômica de Filho ao Pai, desde que entendamos que não há nenhuma subordinação de essência. É por isso que Paulo diz: "Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo o homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo" (1Co 11.3). No contexto ele está tratando da diferença que existe entre o homem e a mulher, e da subordinação que a mulher deve ao homem. Ele não está dizendo que a mulher é inferior ao homem, mas que deve ser submissa e guardar as diferenças proporcionais. Da mesma forma, o Pai é o cabeça de Cristo, mas isso não quer dizer que ele é superior, pois a essência é a mesma. A questão está nas funções que são diferentes.

Devemos evitar a formulação simplista de que o Pai é o responsável pela Criação, o Filho pela Redenção, e o Espírito pela Santificação, pois a Trindade participa conjuntamente de tudo isso. A distinção que podemos fazer é a seguinte: Ao Pai pertence mais o ato de planejar, ao Filho o de mediar, e ao Espírito o de agir. Isso pode ser visto no relato da criação. No texto de Gênesis 1.1-3, as três pessoas da Trindade estão agindo. O texto diz: "No princípio criou Deus os céus e a terra" (Gn 1.1). Note que a criação é atribuída a Deus. Entretanto, em seguida veja algumas manifestações diferentes desse Deus: "A terra, porém, era sem forma e vazia, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas" (Gn 1.2). Aí está a Terceira Pessoa, o "Espírito de Deus". A maioria dos comentaristas concorda que o Espírito Santo está numa função de "energizar" a matéria, sendo, portanto, o ponto de contato entre Deus e a matéria. Mas, e onde está o Filho? O Filho é a "palavra" de Deus. Foi João quem chamou Jesus de o "verbo" de Deus (Jo 1.1). Ele é a palavra proferida, o "haja luz", é o instrumento através do qual todas as coisas foram criadas. A Bíblia afirma isso categoricamente: "Pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele" (Cl 1.16). Portanto, podemos dizer que na obra da criação, o Pai fala, o Filho é a Palavra falada - Mediador, e o Espírito Santo é o agente direto sobre a matéria. Em termos semelhantes, a Trindade trabalha na Redenção, cada pessoa executando uma tarefa particular. O Texto de 1Pedro 1.2 é claro nesse sentido, pois diz que os crentes são: "Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo". Aqui também o Pai é o idealizador da salvação, pois a ele pertence o ato de escolher os que devem ser salvos. Nesse sentido, o Pai é o autor da eleição. O Filho está novamente na função de Mediador, ele possibilita a obediência a Deus através da aspersão do seu sangue. Já ao Espírito Santo é indicada a tarefa de santificar, ou seja separar para si os eleitos. Então, o Pai elegeu, o Filho salvou e o Espírito aplicou a salvação. Na verdade essa ordem de funções pode ser vista por toda a Escritura: O Pai planejando a salvação (Jo 6.37-38) e escolhendo os eleitos (Ef 1.3-4), o Filho executando o plano de Deus (Jo 17.4; Ef 1.7), e o Espírito Santo confirmando essa obra sobre os crentes (Ef 1.13-14). De fato, como declara Lloyd-Jones, "essa é uma ideia atordoante, ou seja, que estas três bem-aventuradas Pessoas, na bem-aventurada santíssima Trindade, para minha salvação quiseram dividir assim o trabalho".

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15 de jul. de 2016

Deus Transmite Conhecimento de Si Próprio ao Homem

Por Louis Berkhof

Kuyper chama a atenção para o fato de que a teologia, como conhecimento de Deus, difere num importante ponto de todos os demais tipos de conhecimento. No estudo de todas as outras ciências, o homem se coloca acima do objeto de sua investigação e ativamente extrai dele o seu conhecimento pelo método que lhe pareça mais apropriado, mas, na teologia, ele não pode colocar-se acima, e, sim, sob o objeto do seu conhecimento. Noutras palavras, o homem só pode conhecer a Deus na medida em que Este ativamente se faz conhecido. 

Deus é, antes de tudo, o sujeito que transmite conhecimento ao homem, e só pode tornar-se objeto de estudo do homem na medida em que este assimila e reflete o conhecimento a ele transmitido pela revelação. Sem a revelação, o homem nunca seria capaz de adquirir qualquer conhecimento de Deus. E, mesmo depois de Deus ter-se revelado objetivamente, não é a razão humana que descobre Deus, mas é Deus que se descerra aos olhos da fé. Contudo, pela aplicação da razão humana santificada ao estudo da palavra de Deus, o homem pode, sob a direção do Espírito Santo, obter um sempre crescente conhecimento de Deus. Barth também salienta o fato de que o homem só pode conhecer a Deus quando Deus vem a ele num ato de revelação. Ele afirma que não existe nenhum caminho do homem para Deus, mas somente de Deus para o homem, e diz repetidamente que Deus é sempre o sujeito, e nunca um objeto de conhecimento. A revelação é sempre algo puramente subjetivo e jamais poderá transformar-se em algo objetivo como apalavra escrita da Bíblia e, como tal, vir a ser um objeto de estudo. A revelação foi dada, de uma vez por todas, em Jesus Cristo, e em Cristo chega aos homens no momento existencial das suas vidas. Apesar de haver elementos de verdade no que Barth diz, a sua construção da doutrina da revelação é alheia à teologia reformada. 

Todavia, deve-se manter a posição que afirma que a teologia seria totalmente impossível, sem uma auto-revelação de Deus. E quando falamos de revelação, empregamos o termo no sentido estrito da palavra. Não se trata de uma coisa na qual Deus é passivo, um mero “tornar-se manifesto”, mas uma coisa na qual Ele ativamente se faz conhecido. Não é, como muitos pensadores modernos o vêem, um aprofundamento discernimento espiritual que leva a um sempre crescente descobrimento de Deus por parte do homem; mas sim, um ato sobrenatural de auto-comunicação, um ato prenhe de propósito, da parte o Deus Vivente. Não há nada surpreendente no fato de que Deus só pode ser conhecido se Ele se revela, e na medida em que o faz. Até certo ponto isso é verdade também quanto ao homem. Mesmo depois que a psicologia fez um estudo particularmente exaustivo do homem, Alexis Carrel pôde escrever um livro muito persuasivo sobre, O Homem, Esse Desconhecido, “Porque”, diz Paulo, “qual dos homens sabe cousas do homem, senão o seu próprio espírito que está nele? Assim também as cousas de Deus ninguém conhece, senão o Espírito de Deus”. (1 Co 2.11). 

O Espírito Santo perscruta todas as cousas. Até mesmo as profundezas de Deus, e as revela ao homem. Deus tem-se dado a conhecer. Ao lado do conhecimento arquetípico de Deus, que se acha no próprio Deus, há também um conhecimento ectípico dele, dado ao homem por meio da revelação. Este último relaciona-se com o primeiro como uma cópia com o seu original e, portanto, não tem as mesmas proporções de clareza e perfeição. Todo o nosso conhecimento de Deus é derivado da Sua autorevelação na natureza e na Escritura. 

Consequentemente, o nosso conhecimento é, de um lado, ectípico e analógico, mas, de outro, é também verdadeiro e preciso, visto que é uma cópia do conhecimento arquetípico que Deus tem em Si mesmo. 
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Fonte: Teologia Sistemática, p. 33-34. 

17 de jun. de 2016

A perigosa interpretação de Mateus 24.36 feita pelo Pr. Marcos Granconato

Por Thiago Oliveira

Recentemente deu-se uma polêmica envolvendo o pastor batista Marcos Granconato, devido a um vídeo em que o mesmo fala que Jesus não é onisciente quando se considerado as relações intratrinitárias, limitando sua onisciência às relações extratrinitárias. Em outras palavras, Granconato disse que Jesus só seria onisciente na relação da Trindade com as coisas criadas, pois, segundo o mesmo diz em sua mensagem, Deus-Pai guardou certas coisas apenas para si. Alguns o acusaram de heresia, já outros foram mais brandos, discordando de sua posição, todavia não o chamando de herege. O fato é que o Granconato foi infeliz em afirmações, ditas ao expor o difícil texto de Mateus 24.36, que diz o seguinte: “Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão o Pai”. Mais à frente voltarei a esse texto, mas antes gostaria de dizer o porquê considero o ensino do Marcos Granconato perigoso.

Dizer que Deus-Pai guarda coisas para si que não são reveladas ao Deus-Filho, inferioriza Jesus.  Ele não poderia ser uma divindade da mesma “estatura” do Pai, já que não seria onisciente por completo, sendo que a onisciência é um atributo divino. Mas, a máxima cunhada por Tertuliano, que foi reafirmada pela ortodoxia cristã diz “uma substância, três pessoas”. Por substância, devemos entender que é o elo incomum entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, no qual se baseia a unidade da Trindade. É devido à substância ser a mesma que não ocorre uma divisão entre as três pessoas da Deidade, gerando uma unidade na diversidade. Assim, Pai, Filho e Espírito Santo desempenham papéis diferentes no plano de salvação (Trindade econômica), sem que haja a perda dessa unidade.

Após Tertuliano, talvez Agostinho de Hipona tenha sido o teólogo que mais contribuiu com a doutrina trinitária, principalmente na tradição ocidental. Ele então afirma que não se pode subordinar (ontologicamente) as pessoas da Trindade. Na eternidade eles são iguais em atributos, poder e glória. Portanto, se afirmarmos, como fez o Granconato, que Deus-Pai retém algum conhecimento para si, logo, caímos no equívoco da subordinação eterna. Contudo, como defende Berkhof[1], a natureza divina é indivisível, isto é, seus atributos estão presentes de maneira igual entre todas as pessoas da Trindade. Franklin Ferreira até recomenda rejeitarmos a prática de enumerar os membros da Deidade (e.g. Jesus é a segunda pessoa da Trindade) e diz que a razão para não fazermos isso está na indivisibilidade da natureza divina, inexistindo subordinação entre elas. Logo, embora sendo três personas distintas, elas não se somam[2].

Granconato, frente ao que já foi exposto, ainda pode argumentar que isso não resolve a dificuldade presente no texto de Mateus 24.36. O que é verdade. Mas o ponto aqui deveria ser o seguinte: no afã de responder esse mistério, é válido prejudicar a doutrina trinitariana? Pois, se a Trindade é o cerne da adoração cristã, não podemos ter uma compreensão equivocada da mesma. Embora reconhecendo que o assunto é complexo, podemos subir “nos ombros de gigantes” e falar sobre a Trindade sem que a plena igualdade de seus membros seja distorcida. [3]

Para interpretarmos Mateus 24.36, a teoria da kenosis não seria a melhor resposta, como alguns deram ao Granconato em debates nas redes sociais. Pois, dizer que Cristo se esvazia, no sentido de deixar de ter seus atributos, seria o mesmo que afirmar que ele não mais teria a substância que concede unicidade à Trindade. O esvaziamento a que a Escritura se refere (vide Fp 2.6-8) não é referente a atributos, mas sim a posição de Cristo, que sendo igual a Deus-Pai em soberania e glória, encarna, e num estado de humilhação se coloca em condição de subserviência.

Então, para sermos coerentes com a doutrina reformada da unipersonalidade de Cristo, presente nas confissões e catecismos, que dizem existir no Salvador duas naturezas, divina e humana, na mesma pessoa, isto é, não são duas pessoas, mas apenas uma que comporta concomitantemente o status divino-humano, devemos observar a contribuição do extra-calvinisticum[4]. A contribuição em questão, que foi o ponto de discordância entre calvinistas e luteranos, diz, em suma, que os atributos divinos não devem ser limitados pela encarnação. Embora haja completa divindade no Verbo encarnado, pois a natureza divina se uniu a natureza humana numa mesma pessoa, seus atributos não estão confinados na carne, eles estão presentes dentro e fora do corpo de Cristo. Por isso que quando Cristo morre na cruz, a divindade não morreu, pois, a natureza divina não participa da fraqueza humana. Assim como também, as limitações da natureza humana não alcançam os atributos divinos. Por isso que Cristo foi limitado circunstancialmente, mesmo que na sua eterna essência ele nunca tenha deixado de lado a sua onisciência. Esta é uma posição que se enquadra com os postulados de Calcedônia e que faz jus ao fato de Cristo responder que não sabia o futuro, todavia sem deixar de ser onisciente.

Para ficar mais claro, tomemos outro atributo como exemplo: a onipresença. Quando Jesus, em sua forma corpórea deslocava-se de um lugar para o outro, não seria ele, como membro da Trindade, um ser onipresente?  O conceito extra-calvinisticum vai dizer que mesmo ele ascendendo aos céus corporalmente, e estando à destra do Pai, se faz presente na ceia. Logo, a encarnação não pode delimitar a divindade de Cristo. Vejamos o que nos diz o Catecismo de Heidelberg:

Pergunta 47- “Mas não está Cristo conosco até o fim do mundo, como nos prometeu?”

Resposta - “Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem; quanto à sua natureza humana, agora já não está na terra; mas, quanto à sua divindade, majestade, graça e espírito, em nenhum momento está ausente de nós.”

Pergunta 48 – “Se a sua humanidade não está onde quer que esteja a sua divindade, então não estão as duas naturezas de Cristo separadas uma da outra?”

Resposta - “Certamente não. Visto que a divindade não está limitada e está presente em toda parte, fica evidente que a divindade de Cristo está certamente além dos limites da humanidade que ele tomou, mas ao mesmo tempo sua divindade está em e pessoalmente permanece unida à sua humanidade.”

Como bem observa o Dr. Heber Campos[5]Segundo o pensamento reformado, o Logos está no Cristo total, mas a natureza divina do Logos extrapola os limites físicos da natureza humana”. Pois, o infinito não cabe no finito. Se esta não é uma resposta totalmente  satisfatória, é de longe a melhor resposta para lhe dar com a dificuldade em questão, pelo simples fato de não trazer prejuízo a cristologia, e nem desembocar numa concepção equivocada da Trindade.

Concluo dizendo que entendo a complexidade do assunto e que todo teólogo está sujeito a dar suas “escorregadas”. O pastor Marcos Granconato é alguém teologicamente gabaritado e que possui anos e anos de labor ministerial, contudo, não está imune aos erros. No entanto, acredito que ele tenha escolhido muito mal a sua resposta frente a uma questão difícil. Talvez, diante da dificuldade de expor o texto, seria melhor apenas dizer que a questão da união hipostática é um mistério inefável, para usar palavras do próprio Calvino. E não negar a ontológica onisciência do divino Logos, como preferiu. Não apenas por sua imagem, mas por zelo pela sã doutrina, cairia bem uma revisão de sua concepção, reconhecendo que seu ensino abre um precedente muito perigoso que pode resultar em noções heréticas da doutrina trinitária. 

***
P.S. Gostaria de esclarecer três coisas: A primeira delas é que optei por fazer um texto breve, por achar mais propício devido à densidade do assunto. A segunda é que o Granconato é um irmão em Cristo, não o trato como um adversário. E por fim, não tenho a mínima intenção de gerar um debate cheio de desdobramentos, portanto, esse texto será o único em que exponho o que outros autores já expuseram com maestria. Destaco aqui o Dr. Heber Campos e suas obras sobre a união hipostática das naturezas de Cristo. 


[1] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Ed. Cultura Cristã, p.84.

[2] Franklin Ferreira usa como referência a obra de Basílio de Cesaréia para defender a plena igualdade entre a trindade. Veja em: https://www.youtube.com/watch?v=bfmLE6SjpLI.

[3] Mesmo havendo alguns teólogos renomados que defendem uma subordinação ontológica, como o Wayne Grudem e Bruce Ware, isso não pode ser tomado como argumento favorável. John Stott, um dos mais eminentes e profícuos teólogos do século XX, defendeu o aniquilacionismo, e nem por isso a ideia ortodoxa do castigo eterno foi flexibilizada apenas porque o Stott ensinou o oposto.

[4] Um ótimo texto sobre o Extra-Calvinisticum escrito pelo Rev. Alan Rennê Alexandrino está disponível em http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=370.

[5] CAMPOS, Heber Carlos de. A União das Naturezas do Redentor. Ed. Cultura Cristã, p.284. 

18 de mai. de 2016

A Bíblia Não é a Enciclopédia Britânica - Uma Breve Reflexão a Respeito do Método Teológico e o Estabelecimento de Doutrinas

Por Alan Rennê Alexandrino Lima

Introdução

Originalmente publicada entre os anos de 1768 e 1771, a Encyclopaedia Britannica é considerada a mais acadêmica de todas as enciclopédias já publicadas. Uma estudiosa chamada Gillian Thomas chegou a afirmar, numa obra sobre a décima primeira edição da enciclopédia, que a Britannica deve ser considerada como o ápice de todo o conhecimento humano[1], dado o seu caráter amplamente generalista, que procura discursar a respeito da maior gama de assuntos possível. É possível encontrar praticamente qualquer coisa que se procure, desde verbetes relacionados à geografia, biografia, biologia, medicina, literatura mundial, física, química, astronomia, filosofia, teologia etc.

Uma enciclopédia possui a função de ser uma obra de referência que possibilite a consulta a qualquer assunto de interesse humano. Como o sentido etimológico do termo indica, uma enciclopédia intenta disponibilizar conhecimento geral. Está curioso a respeito de algum assunto? É só consultar o verbete e, imediatamente, a curiosidade será sanada. Deseja adquirir uma visão geral a respeito da função das vacinas? Tem o interesse em aprender o básico sobre a história do judô? É só consultar a enciclopédia mais próxima.

Algo muito comum no meio da cristandade é o tratamento dispensado à Bíblia como se esta se tratasse de uma enciclopédia com verbetes disponíveis a respeito de todos os assuntos da fé cristã. Todo pastor ou professor de escola dominical já deparou com uma situação na qual alguém o aborda com perguntas do tipo: “Onde é que eu acho, na Bíblia, um versículo sobre a Trindade?”, “Por favor, você poderia me dar um texto que diga que Jesus é Deus-homem?”, “Em qual lugar do Novo Testamento afirma que não se pode dançar no culto?”, “Onde é que é possível encontrar um texto que afirme que o dia de descanso passou do sábado para o domingo?”, ou ainda a afirmação: “Mas não existe nenhum texto na Bíblia que diga que crianças devem ser batizadas!” Todas estas perguntas denotam que o interlocutor deseja um versículo/verbete que diga de forma sistemática tudo aquilo que ele necessita saber sobre determinado assunto. São questionamentos que evidenciam o desejo por algo já pronto, que não demande reflexão, raciocínio lógico, deduções, inferências e a construção de um entendimento baseado no todo da revelação bíblica.

Não obstante, é importante compreender que não é dessa maneira que as Sagradas Escrituras devem ser tratadas. A Bíblia não foi dada por Deus à Igreja para servir como uma espécie de obra de referência com verbetes disponíveis concernentes a todas as questões de fé e vida. A Bíblia não é uma obra semelhante a uma teologia dogmática. O teólogo reformado holandês Herman Bavinck (1854-1921) faz uma observação extremamente pertinente a este respeito. Ele faz uso de uma metáfora elucidativa:

A Sagrada Escritura não é dogmática. Ela contém todo o conhecimento de Deus de que precisamos, mas não na forma de formulações dogmáticas. A verdade foi depositada na Escritura como fruto da revelação e da inspiração, em uma linguagem que é a expressão imediata da vida e, portanto, sempre se mantém viçosa e original. Mas ela ainda não tinha se tornado objeto de reflexão e ainda não tinha atingido a consciência pensante do crente. Aqui e ali, por exemplo, na carta aos Romanos, pode haver um começo de desenvolvimento dogmático, mas não mais que um começo. O período da revelação tinha de ser encerrado antes que a reprodução dogmática pudesse começar. A Escritura é uma mina de ouro: é a igreja que extrai o ouro, põe sua estampa sobre ele e o converte em dinheiro circulante.[2]

É inegável, pela afirmação de Bavinck, que a Escritura fornece conhecimento. O que necessita ser compreendido é que tal conteúdo não se apresenta sistematizado, organizado em sistemas como ocorre em obras de teologia dogmática. Numa obra desta natureza, quando se deseja pesquisar a respeito da queda da humanidade no pecado, basta buscar no índice o lugar exato pela categoria hamartiologia e, pronto, tudo o que se necessita saber está disposição. A Bíblia não foi escrita dessa maneira. O conteúdo disponibilizado na Escritura necessita ser alvo de reflexão, inquirição, associação e processamento dogmático. O conhecido teólogo princetoniano, Charles Hodge, afirma que a teologia consiste de algo mais que o mero conhecimento de fatos registrados nas Escrituras. De acordo com ele, “a Bíblia contém as verdades que o teólogo precisa coligir, autenticar, organizar e demonstrar em sua relação natural umas com as outras”.[3]

O trabalho do teólogo é semelhante ao de um mineiro. Para extrair o ouro ele precisa adentrar aos recessos mais profundos da mina e manusear diversas ferramentas a fim de extrair o metal precioso. Há partes da mina que a composição das paredes é mais rochosa, o que demanda o uso de mais força e de ferramentas mais especializadas. De modo semelhante, o teólogo mergulha nas páginas da Bíblia e labuta de maneira séria e árdua, inclusive em oração, a fim de extrair das páginas do livro sagrado a preciosa doutrina evangélica. Há partes da Escritura que são mais complexas ou, como coloca a Confissão de Fé de Westminster: “Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos”.[4] Assim, em determinados trechos das Escrituras o teólogo encontrará mais dificuldade para extrair o sumo da revelação divina. Bavinck observa ainda que, “processar dogmaticamente o conteúdo das Escrituras, porém, não é apenas o trabalho de um teólogo individual, ou de uma igreja ou escola em particular, mas de toda a igreja através dos séculos, de toda a nova humanidade regenerada por Cristo”.[5]

Precisamos compreender, portanto, o que torna necessário este modo de fazer teologia. Após discutir brevemente tal necessidade, é preciso abordar um dos modos legítimos pelo qual o ouro da Escritura é extraído, estampado e colocado em moeda circulante.

A Distinção Criador/Criatura

Visando a instrução e a edificação da Igreja, o conteúdo registrado nas Sagradas Escrituras necessita ser devidamente organizado e sistematizado. Um dos benefícios existentes na sistematização do conteúdo escriturístico é a possibilidade de se relacionar num todo coerente as verdades que nos são dadas por Deus, o autor das Escrituras. O Dr. Heber Campos assim se expressa em relação à necessidade da extração e organização dos dados bíblicos:

Pela sistematização aprendemos a associar ideias importantes em grupos, para que o material fique bem organizado e facilite para a nossa mente finita o que é simples para a mente infinita. Se não houver a sistematização da verdade, as estruturas do nosso pensamento rapidamente ficam complicadas. Por isso, precisamos que as ideias sejam concatenadas de maneira a facilitar a nossa apreensão da verdade.[6]

Nós, seres humanos, em razão da nossa finitude, temos uma dupla necessidade que não existe em Deus. Primeiro, por ser infinito em seu ser e perfeições, Deus não necessita de uma organização sistêmica. Sua mente em si mesma tem o conhecimento de todas as coisas sem que estas precisem ser necessariamente organizadas como nós precisamos, devido à nossa finitude de mente. Em segundo lugar, em razão da infinitude do seu conhecimento, Deus tem à sua disposição todo o conhecimento necessário de forma simultânea e instantânea. O teólogo dogmático Louis Berkhof afirma que Deus “vê as coisas de uma vez em sua totalidade, e não fragmentadas uma após à outra”.[7] Esta é outra forma de afirmar que o conhecimento de Deus é perfeito. Por ser perfeito em conhecimento, Deus não está sujeito ao aprendizado e sucessivo acúmulo de informações. Já o ser humano é sempre fragmentado e parcial em seu conhecimento. A relação entre o conhecimento que Deus tem em si mesmo e o conhecimento disponibilizado ao ser humano é sumariado por Bavinck: “Pois o conhecimento que Deus tem de si mesmo é absoluto, simples, infinito e, em sua plenitude, é incomunicável à consciência finita”.[8] Dessa forma, é imprescindível ao ser humano o emprego de ferramentas que lhe proporcionem o crescimento em termos de conhecimento teológico. A sistematização do conteúdo revelado nas Escrituras atende a esta necessidade. Como expressou Robert Burridge, a extração, organização e sistematização de ideias é algo próprio da humanidade finita:

O Criador tem uma mente unificada absoluta que nós tentamos entender através de sua revelação. Como Criador, ele nos designou para sermos capazes de conhecer exatamente o que ele quer que conheçamos [...] Ao grau em que usamos consistentemente os métodos de Deus, nosso estudo produzirá ideias consistentes com a verdade como ela existe absolutamente na mente de Deus.[9]

É óbvio, então, que embora podendo conhecer aquilo que Deus resolve revelar em sua Palavra, nosso conhecimento tanto do Ser divino quanto das suas obras é analógico, ou seja, o conhecimento de que dispomos “concorda com, corresponde a, mas não é completamente idêntico com o que está na mente perfeita de Deus. Existe uma ‘analogia’ entre o que Deus fala às suas criaturas e o que Deus conhece infinita e perfeitamente”.[10] Isso pode ser visto, por exemplo, em Deuteronômio 18.21-22: “Se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o SENHOR não falou? Sabe que, quando esse profeta falar em nome do SENHOR, e a palavra dele se não cumprir, nem suceder, como profetizou, esta é a palavra que o SENHOR não disse; com soberba, a falou o tal profeta; não tenhas temor dele”. O princípio que pode ser observado nesta passagem é que “é exigido dos profetas que a sua mensagem seja consistente com tudo aquilo que Deus revela e concorde com tudo o que Deus faz ou permite”.[11] R. Scott Clark observa que a conhecida passagem de Deuteronômio 29.29 também fundamenta o entendimento do conhecimento analógico que o ser humano tem de Deus: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”. Clark afirma que esta passagem, bem como outras, fundamenta a distinção entre o conhecimento de Deus em si mesmo (en si) e o conhecimento revelado a nós (erga nos).[12] Assim, dada a nossa finitude e uma vez que não dispomos de conhecimento perfeito, completo, instantâneo e simultâneo, como ocorre com Deus, é essencial a existência do labor teológico para a formação de dogmas e doutrinas.[13]

Compreender esta verdade nos conduz ao próximo tópico.

A Progressividade da Revelação

Deus revela a si mesmo, seu ser e obras, ao ser humano. O que deve ser entendido a este respeito é que a revelação não foi dada pelo Senhor de uma só vez. A plenitude da verdade divina não foi entregue à humanidade logo no começo da história. Deus gradualmente revelou as verdades em espaços de longo intervalo, de acordo com as necessidades dos homens, numa medida que era suficiente para a compreensão e absorção por parte dos recipientes da revelação.

Portanto, a revelação divina é um processo que começou no Jardim do Éden e culminou na revelação que Jesus Cristo deu enquanto esteve entre nós e na revelação que ele deu posteriormente aos apóstolos, como Paulo, por exemplo. Nesse processo histórico houve um progresso no conteúdo e na quantidade de revelação. Gradualmente Deus foi mostrando aos homens a natureza do seu caráter através de preceitos no decorrer da história. Cada aspecto novo da revelação era baseado numa revelação anterior de forma que a Escritura é um conjunto harmônico de verdades reveladas. Por exemplo, quando João introduziu o “Cordeiro de Deus” aos seus discípulos, ele o fez baseado numa revelação anterior do cordeiro que era sacrificado na páscoa, de forma que a mensagem posterior se tornou inteligível por causa da anterior. Quando Jesus apresentou a si mesmo como o Eu Sou já havia uma noção anterior da divindade no AT como sendo o “Eu Sou”. Uma revelação está fundamentada numa anterior, mas com seu caráter progressivo, acrescentando novos vislumbres, detalhes e especificidades da verdade em relação à anterior.

Geerhardus Vos explica a ideia de progressividade da revelação da seguinte forma: “Ela não foi completada num único ato exaustivo, mas se desdobrou numa longa série de atos sucessivos”.[14] É interessante que Clark H. Pinnock, um dos principais adeptos do Teísmo Aberto, numa obra publicada em 1971, fez a seguinte afirmação sobre a natureza da revelação de Deus registrada na Bíblia:

Nós não encontramos revelação especial na forma de teologia proposicional, mas de um modo histórico, pois a revelação se desdobra em sucessivos fascículos, numa série de situações revelacionais na história. Toda revelação é “encarnacional”, imersa na história e na linguagem humanas. É um crescimento orgânico da muda à planta plenamente madura, a partir dos primórdios do livro de Gênesis à glória da Nova Aliança de nosso Senhor. A revelação se interpõe através de numerosas modalidades e avança continuamente até que a edição culminante e a coroação final sejam publicadas em Jesus Cristo.[15]

Vos destaca que a revelação não poderia ser dada de outra forma que não a progressiva, uma vez que ela está ligada aos atos redentivos de Deus: “De forma abstrata, ela poderia ter sido concebida de outra maneira. Mas como matéria de fato, não poderia ser, porque a revelação não se firma por si só, mas está (quanto à Revelação Especial) inseparavelmente ligada a outra atividade de Deus, que chamamos de Redenção”.[16] E a própria redenção não poderia acontecer de outra forma senão através de sucessão história, em diversos desdobramentos históricos. Dessa forma, a própria “revelação é a interpretação da redenção; ela deve, portanto, se desdobrar em etapas como ocorre com a redenção”.[17] Benjamin Warfield faz a mesma observação a respeito da progressividade da revelação, mas assinala que a revelação não pode ser confundida com a redenção em si. Antes, ela deve ser vista como parte dos atos redentores de Deus:

A revelação é, naturalmente, geralmente feita pela instrumentalidade dos atos e a série dos grandes atos redentores de Deus pelos quais ele salva o mundo constitui a revelação por excelência da graça de Deus – na medida em que estes atos de redenção são abertos à observação e são percebidos em sua importância. Mas a revelação, afinal, é o correlato do entendimento e tem como finalidade imediata apenas a produção de conhecimento, embora não o conhecimento voltado para si mesmo, mas para a salvação [...] A revelação, assim, aparece, no entanto, não como mero reflexo dos atos redentores de Deus na mente dos homens, mas como um fator na obra redentora de Deus, um componente da série de seus atos redentores, sem o qual esta série seria incompleta e inoperante quanto ao seu fim principal [...] A revelação é, em poucas palavras, por si só um ato redentor de Deus e de modo nenhum o menos importante na série de atos de redenção de Deus.[18]

Isto pode ser claramente percebido em todos os estágios da revelação, por exemplo, no Antigo Testamento. A revelação entregue, primeiramente, a indivíduos e, posteriormente, a famílias e à nação de Israel sempre foi um meio utilizado por Deus para se fazer conhecido e dar a conhecer como os recipientes dessa revelação poderiam desfrutar de um relacionamento pactual amoroso com ele. Pensemos na revelação de Deus pela qual ele sacrifica animais e com a pele destes cobre a vergonhosa nudez de nossos primeiros pais, Adão e Eva (Gênesis 3.21), passando pela revelação de que, para que Isaque pudesse viver um cordeiro teria de ser oferecido em seu lugar (Gênesis 22.1-13), pela declaração de Levítico 16 de que os dois bodes levariam sobre si a iniquidade de todo o povo, até o dia em que o profeta João Batista declarou: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1.29). Em todas essas ocasiões a revelação em si mesma serviu como um ato redentor de Deus, na medida em que ela produziu conhecimento para a salvação, para que o povo pudesse desfrutar de um relacionamento salvífico com Deus.

Uma passagem clássica que mostra a progressividade da revelação é Hebreus 1.1-2: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo”. A expressão “muitas vezes e de muitas maneiras” aponta para a ideia de uma sucessão ou cumulação de informação redentiva ou, em outras palavras, para a ideia de progressividade. Em sua exposição de Hebreus, o puritano John Owen também entendeu que a expressão “muitas vezes e de muitas maneiras” encerrava em si a ideia de progressividade da revelação:

O que é pretendido por essa expressão é a descoberta gradual da mente e da vontade de Deus pela adição de uma coisa após outra, diversos períodos, à medida que a igreja podia comportar a luz deles, e à medida que ela estava servindo ao seu principal desígnio de reservar toda a preeminência ao Messias. A maneira como tudo isso serve de argumento ao propósito do apóstolo aparecerá em breve. Deve-se tomar essa expressão de forma absoluta, para denotar o progresso inteiro da revelação divina desde o início do mundo.[19]

A ideia por trás de toda esta formulação é a de que, à medida que a história humana avançava, Deus adicionava mais detalhes, maiores informações e maior luz a uma verdade já revelada anteriormente.

A relevância da progressividade da revelação para o método teológico está em que, para que um determinado dogma seja formado ou uma determinada doutrina seja estabelecida como matéria de fé na igreja cristã, não basta a apresentação de um versículo. A título de exemplificação, o estabelecimento da doutrina da Trindade jamais poderá repousar na apresentação de um texto ou um simples versículo que diga, de maneira expressa, que existe uma subsistência de três pessoas no Ser divino, como é frequentemente exigido por aqueles que defendem algum tipo de teologia unicista. O ponto a ser estabelecido é que a doutrina da Trindade pode ser claramente observada à medida que a revelação bíblica avança, indo de um estágio com menos luz para outro com mais luz. Em Gênesis 1 tanto o nome  אֱלֹהִ֑ים (Elohim) – um substantivo masculino com terminação plural – como o uso de verbo e pronome no plural (“façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”) nos permitem concluir tão somente pela existência de uma pluralidade na divindade. Não é possível chegar ao entendimento de que Gênesis 1 ensina a doutrina da Trindade porque não há luz suficiente para tal. Somente à medida que a revelação bíblica progride e culmina com a revelação do Novo Testamento, é que podemos chegar a esta compreensão. Vê-se, pois, que a Bíblia não é enciclopédia na qual consta um verbete intitulado “Trindade”, que reúne todas as informações necessárias para o entendimento desse dogma.

A Crescente Necessidade no Cristianismo Primitivo

Outro fator que deve ser observado quanto à necessidade do labor teológico é a progressiva complexidade que caracterizou a maneira como a igreja cristã passou a fazer teologia ao longo da sua caminhada. Quando comparados o período dos Pais Apostólicos e o dos Pais Apologetas já é possível perceber uma nítida diferença na maneira como os dogmas e doutrinas da igreja eram formados. No primeiro período a dogmática ainda se encontrava em sua forma embrionária ou mais primitiva. Estritamente falando, de acordo com Bavinck, no período dos pais apostólicos ainda não havia algo como um dogma ou uma dogmática. Não havia a preocupação com desenvolvimentos dogmáticos a respeito, por exemplo, das duas naturezas de Cristo ou da união hipostática. A grande preocupação característica desse período era de cunho moral. Tanto é assim que os primeiros documentos cristãos concentram grande parte da sua atenção em questões éticas e morais. Um exemplo claro é o Didaquê, escrito entre 70 e 150 d.C. Esta obra é dividida em duas partes, sendo que a primeira (capítulos 1-6) apresenta um conjunto de instruções morais intitulado “Os Dois Caminhos”. No capítulo 1 encontramos o seguinte, a título de amostragem:

Existem dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte. Há uma grande diferença entre os dois. Este é o caminho da vida: primeiro, ame a Deus que o criou; segundo, ame a seu próximo como a si mesmo. Não faça ao outro aquilo que você não quer que façam a você. Este é o ensinamento derivado dessas palavras: bendiga aqueles que o amaldiçoam, reze por seus inimigos e jejue por aqueles que o perseguem. Ora, se você ama aqueles que o amam, que graça você merece? Os pagãos não fazem o mesmo? Quanto a você, ame aqueles que o odeiam e assim você não terá nenhum inimigo (vv. 1-3).[20]

Já a segunda parte do Didaquê consiste de orientações de natureza litúrgica (capítulos 7-10), sobre a vida em comunidade e orientações quanto ao tratamento daqueles que se apresentavam como profetas (capítulos 11-15) e um capítulo de natureza escatológica (16). O que fica claro a partir da citação acima é que, de fato, no período dos chamados Pais Apostólicos não havia preocupação com a reflexão teológica de natureza mais complexa.[21] Bavinck faz um excelente resumo dos escritos conhecidos como Pais Apostólicos:

Eles ainda agem completamente sobre a base de uma fé ingênua, simples. O Cristianismo não foi o produto de pesquisa e reflexão humana, mas de revelação e, em primeiro lugar, portanto, exigia fé. Eles tentaram, até onde puderam, absorver e reproduzir o ensino oral e escrito dos apóstolos. Eles assumiram os conceitos bíblicos de Deus, de Cristo como Senhor, de sua morte e ressurreição, do Espírito Santo, de fé, arrependimento, igreja, batismo, comunhão, ofícios, oração, vigília, jejum, almas, vida ressurreta, imortalidade, etc. Contudo, eles não articulavam, analisavam ou relacionavam uma com a outra.[22]

A ênfase desse período não estava no conhecimento teológico em si, mas na vida piedosa, no cultivo das virtudes cristãs, na pureza etc. Somente a partir do 2º século a teologia cristã buscou ampliar sua atuação, em virtude dos novos desafios enfrentados pelos cristãos. O historiador Alderi Souza de Matos chama a atenção para o fato de que, “à medida que se expandia e se tornava mais conhecido, o cristianismo atraiu crescentemente a atenção das autoridades e da sociedade pagã”.[23] O resultado foi uma crescente hostilidade à fé cristã, que tomava formas variadas, incluindo “contestações sofisticadas vindas de intelectuais pagãos como Luciano de Samosata, Galeno, Celso e Porfírio”.[24] Este fator aliado às perseguições movidas pelos imperadores romanos serviu como catalisador de um novo tipo de reflexão cristã. Bavinck faz uma observação extremamente interessante a respeito dos ataques movidos por autores pagãos contra o cristianismo:

Todos os argumentos posteriormente lançados contra o Cristianismo podiam ser encontrados nesses escritores – argumentos, por exemplo, contra a autenticidade e verdade de muitos livros da Bíblia (o Pentateuco, Daniel e os Evangelhos) e contra a revelação e os milagres em geral; argumentos contra um grupo de dogmas, como a encarnação, a satisfação, o perdão, a ressurreição e a punição eterna; argumentos também contra normas de moralidade, tais como o ascetismo, o desprezo pelo mundo e a falta de cultura; e, finalmente, acusações escandalosas de adorar uma cabeça de bode e de cometer assassinato de crianças, adultério e todos os tipos de imoralidade.[25]

Foi a partir daí que as Sagradas Escrituras foram, de fato, enxergadas como uma mina, e o ouro dos dogmas e doutrinas passaram a ser extraídos através do emprego da reflexão metódica e analítica. A fim de combater as alegações dos escritores pagãos a respeito da doutrina da ressurreição, não bastava que os Pais Apologistas citassem e repetissem textos das Sagradas Escrituras. Tertuliano foi o primeiro teólogo a fazer uso do termo Trindade, mas ele não fez isso apenas por meio da citação de textos das Escrituras. Ele teve de empregar raciocínio, fazer deduções e associações para poder chegar à compreensão da Triunidade do Ser divino. A teologia cristã teria sido abortada cedo se tivesse se limitado a procurar apenas textos-prova para se defender dos ataques desferidos contra o cristianismo.

Conclusão

Acredito estar evidente que dogmas e doutrinas não se estabelecem com a simples citação de alguns versículos. Se fosse este o caso doutrinas centrais da fé cristã nunca teriam vindo à existência como, por exemplo, a doutrina da Trindade. Nenhuma passagem das Sagradas Escrituras afirma de maneira categórica que, “cada uma das três pessoas é Deus, ainda que haja somente um Deus. Cada uma das três pessoas tem personalidade distinta e cumpre um propósito específico na consumação e aplicação da redenção”.[26] Associação entre diversas passagens tanto do Antigo quanto do Novo Testamento teve de ser feita, princípios hermenêuticos tiveram de ser aplicados e raciocínio lógico foi empregado – para citar apenas alguns passos –, para que este precioso dogma cristão fosse estabelecido de forma oficial na cristandade.

Millard J. Erickson, teólogo sistemático de tradição batista delineia alguns passos constituintes do processo de produção teológica, quais sejam[27]:

1-A compilação dos dados bíblicos;
2-A unificação dos dados bíblicos;
3-A análise do sentido dos ensinamentos bíblicos;
4-O exame dos tratamentos históricos;
5-A consulta a outras perspectivas culturais;
6-A identificação da essência da doutrina;
7-A iluminação de fontes extrabíblicas;
8-Expressões contemporâneas da doutrina;
9-A formação de um tema hermenêutico central; e
10-A estratificação dos tópicos.

Todos os cristãos ortodoxos concordam com os passos apontados acima, devendo existir alguma variação de natureza apenas semântica. Todos concordam que dogmas e doutrinas não são feitos com apenas um versículo. Não obstante, a experiência demonstra que quando se trata de uma doutrina com a qual não simpatizamos, logo abandonamos os princípios acima e nos agarramos à exigência de algum texto-prova. Reduzimos a Escritura de uma mina de ouro teológica a uma mera enciclopédia.


[1] Gillian Thomas. A Position to Command Respect: Women and the Eleventh Britannica. Lanham, MD: Scarecrow Press, 1992. p. 1.
[2] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 116. Ênfase acrescentada.
[3] Charles Hodge. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 1.
[4] A Confissão de Fé de Westminster. 1.7. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. p. 22.
[5] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 117.
[6] Heber Carlos de Campos. Teologia da Revelação. São Paulo: Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, 2010. p. 29. (Apostila de curso).
[7] Louis Berkhof. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 65.
[8] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 214.
[9] Bob Burridge. Knowing the Truth. <http://www.genevaninstitute.org/syllabus/unit-one-prolegomena/prolegomina-knowing-the-truth/>.
[10] Ibid.
[11] Ibid.
[12] R. Scott Clark. Recovering the Reformed Confession: Our Theology, Piety, and Practice. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing, 2012. p. 124.
[13] É importante atentar para a distinção existente entre “dogmas” e “doutrinas”. Louis Berkhof, por exemplo, faz a seguinte afirmação: “Embora a palavra ‘dogma’ algumas vezes seja usada na religião e na teologia com sentido amplo, sendo praticamente sinônimo de ‘doutrina’, geralmente tem um sentido mais restrito. Doutrina é a expressão direta, às vezes ingênua, de uma verdade religiosa. Não é necessariamente formulada com precisão científica, e mesmo quando o é, pode ser meramente a formulação de uma só pessoa. Um dogma religioso, por sua vez, é uma verdade religiosa baseada sobre autoridade, oficialmente formulada por qualquer assembleia eclesiástica”. Cf. Louis Berkhof. A História das Doutrinas Cristãs. São Paulo: PES, 1992. pp. 17-18.

[14] Geerhardus Vos. Biblical Theology: Old and New Testaments. Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing, 1948. p. 5.
[15] Clark H. Pinnock. Biblical Revelation: The Foundation of Christian Theology. Chicago, IL: Moody Press, 1971. pp. 29-30.
[16] Geerhardus Vos. Biblical Theology: Old and New Testaments. p. 5.
[17] Ibid. p. 6. É preciso destacar uma espécie de disclaimer feito por Vos sobre a maneira como revelação e redenção se relacionam: “Ainda assim, é óbvio também que os dois processos não são inteiramente coextensivos, pois a revelação chega a um fim num ponto em que a redenção ainda continua”. Cf. Ibid.
[18] Benjamin Warfield. A Inspiração e a Autoridade da Bíblia: A Clássica Doutrina da Palavra de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p.65.

[19] John Owen. The Works of John Owen: Exposition of Hebrews Chapters 1:1-3:6. Vol. 19. Edinburgh, UK: The Banner of Truth Trust, 1991. pp. 17-18.

[20] Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin (Orgs.). Didaquê: O Catecismo dos Primeiros Cristãos para as Comunidades de Hoje. São Paulo: Paulus, 1997. pp. 4-5.

[21] O mesmo padrão pode ser observado em outros Pais Apostólicos, como 1 e 2 Clemente, as Cartas de Inácio de Antioquia, o Martírio de Policarpo e as Explanações dos Ditos do Senhor.

[22] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 121. Ênfase acrescentada.

[23] Alderi Souza de Matos. Fundamentos da Teologia Histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. p. 32.

[24] Ibid.

[25] Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 122.

[26] Ryan McGraw. By Good and Necessary Consequence. Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books, 2012. p. 46.

[27] Millard J. Erickson. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015. pp. 70-82.