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19 de jan. de 2017

Se alguém pensa diferente...

Por Davi Charles Gomes

O adolescente escuta enquanto o professor [re]afirma a posição de Nietzche quanto a convicções religiosas: “toda convicção é uma prisão...” O moço então pergunta se afirmativas como esta e como a morte de Deus não seriam também prisões. “Então, de acordo com o filósofo, você precisa duvidar de toda opinião, até mesmo desta”, foi a resposta rápida do professor. Só que o aprendiz, sem esquecer o ódio que o professor nutre por quem classifica Nietzche como niilista (posição filosófica que nega a realidade substancial, a possibilidade da verdade ou qualquer moral transcendente), perguntou maroto: “mas isso não seria, então, uma forma de niilismo?” Essa troca aconteceu pouco tempo atrás, em uma classe de ensino médio.


A história é antiga. A expressão “não existe absolutamente nenhuma verdade absoluta” é a mãe de todas as filosofias absolutistas! “Todo discurso normativo é uma tentativa de dominação...” ou “toda metanarrativa é uma agressão ideológica...” E por aí vão as declarações aparentemente libertadoras, mas surpreendentemente totalitárias. Fico pensando se Alvin Plantinga não tinha razão quanto afirmou: “Acho difícil ver essa atitude como manifestação de tolerância ou de humildade intelectual: parece-me mais uma condescendência paternalista...” (Alvin Plantinga, Warrented Chistian Belief).


Uma questão tem ocupado minha cabeça: por que é que se fala tanto sobre liberdade de pensamento enquanto radicalizações, coercivas ou não, parecem se multiplicar como coelhos!? E isso, sem gastar tempo mostrando como tal estado de coisas vem acompanhado do ocaso do debate frutífero de idéias bem firmadas, cuidadosamente articuladas e respeitosamente expressadas.


Pensei em chamar este texto pelo título: “Voltaire, socorro!” (Voltaire, ou François Marie Arouet, 1694-1778). Mas, talvez, o título não ficasse bem para um pastor, e, portanto, preciso me explicar (já que acabei deixando escapar!). A antiga tradição da tolerância, a do Iluminismo, dizia algo mais ou menos assim: posso discordar de suas idéias, mas lutarei para que você as possa ter. A suposta “tolerância” de hoje, entretanto, parece gritar: acredite no que quiser menos em que sua crença seja verdadeira!


Fico lembrando que houve tempo em que idéias eram defendidas na ponta da lança ou no tacape. Alguns povos mais espertos, entretanto, resolviam suas diferenças de forma mais “maneira”. Para algumas tribos, as diferença podiam ser resolvidas no grito e no volume do som do bater dos pés. Mas outras tradições milenares apostavam no diálogo, no debate, ou mesmo nas disputas, como melhor maneira para defender idéias e convicções. É assim na tradição bíblica, no pensamento cristão, e especialmente na herança dos reformadores: idéias são importantes, convicções são necessárias e existem acertos e erros, e cada um vai se comprometer com certas crenças e visões das coisas. É claro que, para alguém que crê assim, será inevitável o estabelecimento de um ponto de referência, tal como de uma confiança em que esse ponto de referência seja passível de conhecimento.


Para um cristão, o ponto final de referência é o próprio Criador, que é conhecido de forma pessoal em sua revelação e especialmente em Cristo, o Deus-homem. Mas, exatamente porque reconhece esse ponto de referência externo a ele mesmo, e porque ele aceita que Deus se revela, é que o cristão valoriza o debate de idéias e aceita que o convencimento da verdade envolve fatores racionais, afeitos e, finalmente, de motivos do coração – como eu reajo ao conhecimento de Deus que me confronta nas múltiplas formas como esse Deus se revela. Isso gera uma dupla atitude: firmeza nas convicções já alcançadas e, ao mesmo tempo, tranquilidade quanto ao fato de que essas convicções podem e devem ser objeto de discurso persuasivo, mas nunca poderão ser impostas a outros por força externa – nem mesmo no grito ou no bate-pé!


Aliás, é por aí que vai o apóstolo Paulo quando argumenta em favor da verdade e afirma que, mesmo não pensando ter alcançado a plenitude do conhecimento, prossegue para o alvo de ver as coisas por meio da ótica de Cristo, e, então, completa:


“Todos nós que alcançamos a maturidade, devemos ver as coisas dessa forma, e, se em algum aspecto vocês pensam de modo diferente, isso também Deus lhes esclarecerá. Tão-somente vivamos de acordo com o que já alcançamos” (Filipenses 3,15-16).

***

Via: Coram Deo

13 de jan. de 2017

O Cristão e a fruição do Belo

Por Thiago Oliveira

No finzinho de 2016, a cantora Clarice Falcão lançou o clipe da música “Eu Escolhi Você”. Tratava-se de um vídeo-close nos órgãos genitais de homens e mulheres, portando neles alguns adereços baratos. O clipe foi removido do You Tube por conta da nudez explícita, e causou certo burburinho. Clarice, que até compõe com boa dose de perspicácia, disse (via rede social) que se não fosse para causar, seria melhor não lançar nada. Mas daí surge a indagação: A arte do artista se resume em “causar”? E que tipo de “causar” seria esse? Para lançar algo que “causa” não se leva em conta o belo? Pois, o tipo de arte que se advoga em nosso meio, onde a estética é trocada por panfletagem é, como diria Rookmaaker, a prostituição do conteúdo artístico. Até sei que mesmo a nudez foi retratada por pintores e escultores ao longo dos séculos, todavia, eles tinham preocupação estética e não limitavam a beleza da obra pelo retrato das genitálias. Por influência do pensamento platônico, era a beleza do corpo humano reverenciada pela contemplação e não para o desfrute (O que não significa que eu concorde com a nudez artisticamente retratada).

A forma como a nudez é explorada em nosso meio é apenas a banalização do corpo humano que instiga — previsivelmente — a luxúria das pessoas que consomem determinados produtos, não por apreciação da estética e do conteúdo, mas porque querem ver peitos, bundas e órgãos sexuais. Por que vocês acham que quando há nudez em algum filme, divulga-se que o ator/atriz ficaram nus, esquecendo–se do personagem? Seja a empresa que está por trás de arrecadação de dinheiro, seja o artista que deseja “causar” para ter muitos views e ser assunto do dia: É prostituição da arte. O resultado disso não é a fruição do belo, mas sim carne oferecida perante o altar da lascívia. O clipe da Clarisse Falcão é feio por objetivar o corpo humano, que focado nos órgãos genitais não capta o semblante, coisificando as pessoas, reduzindo-as a sua genitália, como disse o filósofo britânico Roger Scruton: “Luxúria traz a feiura, a feiura da relação humana onde a pessoa trata a outra como um objeto indispensável. Para alcançar a fonte de beleza devemos abandonar a luxúria”[1].

Mas como alcançar a beleza? Como podemos fruir de seus encantos sem profaná-la? Aqui se faz necessário a cosmovisão cristã. A beleza emana do Divino e por isso transcende a subjetividade estética. É um valor tal como a verdade, por isso é importante e não deve ser minimizada. Infelizmente o pós-modernismo faz troça do belo e propaga feiura, fazendo com que qualquer manifestação criativa, propagandista e “autêntica” seja chamada de arte e seja exposta em galerias do mundo todo. Desse jeito, se qualquer porcaria é tida por arte, nada é arte. É assim que matamos os verdadeiros talentos de nossa geração, que vão se misturar a uma classe de artistas que se tornou uma geleia geral, pois, sem distinção, o efêmero engole o que é artístico. Assim sendo, temos um problema que vai além do material, pois “através da beleza somos trazidos a presença do sagrado”[2]. O teólogo Francis Schaeffer já dizia que como cristãos, temos que nos apropriar da arte para glorificarmos a Deus. Ele afirma que “Uma obra de arte pode ser, em si, uma doxologia”[3].

Uma obra de arte glorifica a Deus por se tratar de uma manifestação da imago Dei. A arte manifesta a criatividade do homem, que tem capacidade criativa por ter sido feito a imagem e semelhança de Deus, que assim o criou de maneira secular. A diferença é que o homem cria uma obra mimética através da imaginação e do que visualiza, enquanto que a criação Divina não cria a representatividade do ente, mas o ente em si. Sobre isso, Kuyper discorre que “em todas as artes encontramos uma imitação da habilidade criadora de Deus”. [4]

Sendo o impulso artístico algo intrínseco as criaturas divinas portadoras de sua imagem, a beleza não é mero detalhe. “Não satisfeita com a beleza da natureza, a arte busca por uma beleza mais sublime, mais rica, uma beleza que há de vir somente com o reino da glória, mas que já no presente nos oferece lampejos proféticos”[5]. Para sermos consistentes com a cosmovisão cristã, não podemos subjetivar o belo e deixa-lo apenas no campo do gosto pessoal. Se Deus é o criador da beleza, ela possui princípios objetivos. Esse é um axioma que o mundo despreza, principalmente a nossa classe de artistas que quase sempre vivem numa vida de degradação moral em nome de uma liberdade boêmia. Mas, o mais incrível é que até mesmo estes sujeitos podem reproduzir algo que expresse beleza. Isso se deve ao que Kuyper e os neocalvinistas chamam de graça comum, o que em suma seria um recurso Divino que atenua os efeitos noéticos do pecado. É por isso que mesmo não estando mais no Éden, o homem encontra coisas absurdamente lindas neste mundo caído. E o senso de beleza que os homens carregam é — em certa medida — nostálgico, pois remete a beleza do paraíso quando não havia sido maculada pelo pecado.

À Guisa de conclusão, o cristão deve fruir do belo e se portar criticamente com relação a arte. Schaeffer estabelece um critério de avaliação partindo de um quadrinômio interessante para julgarmos uma obra: 1) Excelência técnica, um padrão de julgamento que independe de concordância com a mensagem do artista. 2) Validade, que seria o julgamento acerca da honestidade do artista com sua cosmovisão. 3) Conteúdo, que seria a manifestação da cosmovisão do artista. 4) Integração entre o conteúdo e veículo, que trata da adequação do meio utilizado pelo artista para comunicar sua mensagem ao mundo.[6] Acredito que estes quatro pilares são suficientemente adequados para que possamos consumir o grande leque de produções artísticas e assim glorificar a Deus mediante a contemplação do que é bonito, pois, tudo que emana formosura, é um vislumbre de Sua excelsa glória.

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[1] Excerto do documentário produzido pela BBC Why Beauty Matters (Por que a beleza importa?), disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bHw4MMEnmpc.
[2] Ibdem.
[3] A Arte e a Bíblia. Voçosa-MG. Ultimato, 2010, p.19.
[4] Sabedoria e Prodígios: Graça Comum na Ciência e na Arte. Brasília-DF, Monergismo 2016, kindleversion posição 2188.
[5] Ibdem, posição 2217.

[6] A Arte e a Bíblia. Voçosa-MG. Ultimato, 2010, p.53.

29 de ago. de 2016

Pastores-políticos: pode isso, Perkins?

Por Vinícius Silva Pimentel

Nos últimos dias, surgiram nas redes sociais várias discussões entre cristãos sobre se seria lícito a um pastor cumular um ofício político, como o de vereador. Esses debates não focavam o aspecto da laicidade do Estadocomo por vezes se discute, sobretudo entre os progressistas, se deveria haver algum tipo de impedimento ao exercício de cargo político por pessoas professadamente religiosas. Em vez disso, a conversa girava em torno da ética vocacional cristã: se há várias situações em que se admitem ministros evangélicos bivocacionados (por exemplo, quando exercem o magistério), por que a vocação política seria uma exceção?

Acredito que podemos encontrar muita sabedoria para lidar com este assunto no livro A Treatise of the Vocations (“Um tratado das vocações”), do puritano William Perkins (1558–1602), que apresenta de forma sistematizada e pretensamente exaustiva uma “teologia prática” das vocações.

A obra se estrutura do seguinte modo: após definir “vocação” ou “chamado” (“é um certo tipo de vida, ordenado e imposto ao homem por Deus, para o bem comum”) e distinguir entre vocação geral e particular, Perkins discorre sobre como fazer uma boa escolha, uma boa entrada, um bom progresso e umbom término do chamado.

No capítulo sobre a “boa entrada no chamado”, Perkins responde se é lícito a alguém entrar em duas vocações ao mesmo tempo. Ele defende que essa dupla vocação é aceitável em alguns casos, mas não em outros.

É lícito exercer duas vocações em três circunstâncias:

1. Quando o próprio Deus determina a combinação de dois chamados. O exemplo mais óbvio é o de Melquisedeque, que foi designado rei e sacerdote.

2. Quando o duplo chamado não contraria as Escrituras e, ao mesmo tempo, serve ao bem comum em determinadas circunstâncias peculiares. Perkins usa os exemplos de Eli (sacerdote e juiz), Samuel (profeta e juiz) e Moisés (profeta e governante civil) e explica que, “naqueles períodos, ambos os ofícios estavam tão corrompidos que não se podiam achar homens comuns suficientes para exercer cada chamado separadamente”.

3. Quando dois chamados podem ser cumulados sem se atrapalharem mutuamente ou impedirem o bem comum. Aqui, Perkins está falando de vocações que são tipicamente cumuladas, como as de pai e de profissional, mas também de situações em que necessidades particulares exigem a dupla vocação, como quando o apóstolo Paulo fazia tendas em Corinto. Perkins diz que, em casos de similar necessidade, um ministro evangélico pode exercer outro chamado, desde que isso não seja um empecilho à sua vocação principal nem se torne numa afronta aos homens.

Em sentido contrário, a dupla vocação se torna ilícita também em três circunstâncias:

1. Quando Deus dissocia dois chamados por sua Palavra e mandamento.

2. Quando a prática de um chamado atrapalha a do outro.

3. Quando a combinação de dois chamados prejudica o bem comum.

Perkins usa então alguns exemplos em que a dupla vocação é inaceitável: o Senhor Jesus, sendo Mestre da igreja, se recusou a ser juiz num conflito entre dois irmãos pela herança; os apóstolos, em virtude dos deveres do seu chamado, se recusaram a exercer o ofício de diáconos. E conclui:

"A partir disso inferimos que nas cidades, corporações e sociedades, deve-se tomar cuidado (tanto quanto possível) para que os diversos ofícios e encargos, sendo em si mesmo pesados e de espécies distintas, não sejam postos sobre os ombros de um só homem. Pois a execução de todos eles causa distraçõese as distrações incapacitam até o mais apto homem de desincumbir-se de um ofício que seja".

O argumento geral de Perkins (com o qual concordamos) nos permite afirmar duas coisas. Por um lado, não é possível afirmar que a cumulação dos ofícios de ministro eclesiástico e magistrado civil seja sempre ilícita, já que eles não foram expressamente dissociados nas Escrituras. Todavia, por outro, é altamente recomendável que essas duas vocações permaneçam separadas; pois cada uma envolve grandes atribuições (são “em si mesmas pesadas”) e há pouca ou nenhuma sobreposição entre si (são “de espécies distintas).

Portanto, a partir da sabedoria bíblica exposta por William Perkins, a dupla vocação de ministro e magistrado somente seria possível em circunstâncias altamente peculiares, nas quais não houvesse número suficiente de homens aptos para que cada um dos ofícios fosse exercido por indivíduos diferentes. Fora dessa hipótese incomum, é mais provável que a cumulação desses chamados seja um obstáculo ao bem comum: sofrerá a igreja, sofrerá a sociedade.

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8 de ago. de 2016

Religião, Cultura e Redenção

Por Herman Bavinck

Entre todos os povos do mundo, encontramos uma noção de pecado e miséria, e todos sentem a necessidade e a esperança de redenção. O otimismo é impotente para rejeitar o primeiro fato e reconciliar completamente os seres humanos consigo mesmos e com o mundo. O pessimismo, porém, nunca foi bem sucedido em desfazer o segundo fato e em erradicar  a esperança para o futuro do coração do humano. Além disso, vimos anteriormente que a expectativa de uma redenção vindoura está ligada, em muitas religiões, a uma pessoa vindoura e especificamente baseada no aparecimento de um rei. 

Aqui podemos acrescentar que a ideia de redenção está quase sempre associada à de reconciliação. Redenção, devemos dizer, é primariamente um conceito religioso e, portanto, ocorre em todas as religiões. Admito que os seres humanos têm à sua disposição muitos meios para se manterem na luta pela existência e para se protegerem contra a violência. Eles não estão sozinhos, mas vivem em comunidades. Eles têm mentes com as quais pensar, mãos com as quais trabalhar e podem, pelo trabalho e pelo esforço, conquistar, estabelecer e expandir um lugar para si mesmos no mundo. É digno de nota, porém, que todas essas ajudas e suportes não são suficientes para eles. Por mais que as pessoas se desenvolvam culturalmente, elas nunca ficam satisfeitas com isso e não alcançam a redenção pela qual pela qual estão ansiosas, pois ao mesmo tempo em que a cultura satisfaz suas necessidades, incentiva a ter orgulho no grande progresso que fizeram, por outro, elas lhes dá uma noção progressivamente mais clara do longo caminho que ainda precisam percorrer. Na medida em que as pessoas colocam o mundo sob seus pés, elas se sentem mais e mais dependentes daquelas forças celestiais contra as quais, com medida em que resolvem problemas, vêem os mistérios do mundo e da vida se multiplicarem e aumentarem em complexidade. 

Enquanto sonham com o progresso da civilização, ao mesmo tempo vêem abrir diante de si a instabilidade e a futilidade do mundo existente. A cultura tem grandes, até mesmo incalculáveis vantagens, mas também traz consigo seus próprios inconvenientes e perigos peculiares. Quanto mais abundantemente os benefícios da civilização escorrem por nosso caminho, mais vazia a vida se torna. É por isso que em adição à cultura, em toda parte, teve origem e alcançou maturidade sob a influência da religião. Se os males da humanidade foram causados pela cultura, certamente eles poderiam ser curados de nenhuma outra forma a não ser pela cultura. Mas os males que temos em mente são oriundos do coração humano, que sempre  permanece o mesmo, e a cultura somente os realça. Com toda a sua riqueza e poder, ele apenas mostra que o coração humano, no qual Deus colocou a eternidade (Ec 3.11), é tão grande que nem todo mundo pode satisfazê-lo. Os seres humanos estão em busca de uma redenção melhor do que aquela que a cultura pode lhes dar. Eles estão procurando felicidade duradoura, um bem eterno. Eles estão ansiosos por uma redenção que os salve física e também espiritualmente, para  o tempo e também para a eternidade, e isso somente a religião, e nada mais, pode lhes dar. Somente Deus pode lhes dar isso, não a ciência ou a arte, a civilização ou a cultura. Por essa razão, a redenção é um conceito religioso, é encontrada em todas as religiões  e é quase sempre associada à ideia de reconciliação, pois a redenção que os seres humanos procuram e precisam é uma redenção na qual são erguidos acima de todo o mundo e inseridos  em comunhão com Deus. 

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Fonte: Dogmática Reformada. Ed. Cultura Cristã, Volume 3, p.331-32.

29 de jul. de 2016

Stranger Things e o Ministério de Jovens

Por Pedro Pamplona

Usei meu último dia de folga para assistir com minha esposa a série mais comentada nesses últimos dias, Stranger Things. Gostamos muito de séries e do Netflix. Foram 8 episódios muito interessantes que prederam nossa atenção e imaginação. Como a expectativa criada em torno da produção foi grande, ela não foi superada, mas é uma excelente série. Como é de se esperar (pelo nome) coisas estranhas acontecem nessa ficção científica. Na verdade, coisas bem estranhas e inesperadas por todos. A história [LEVE SPOILER] gira em torno da possibilidade da existência e de interação com um mundo ou dimensão paralela. Assistam!

Um mundo paralelo com coisas estranhas e inesperadas... O que isso me lembraria? Se você pensou em ministério de jovens, acertou! Foi isso que veio a minha cabeça no dia seguinte. Acompanhe meu raciocínio inicial. Ao meu ver o direcionamento de muitos ministérios de jovens é criar um mundo paralelo ao mundo do restante da igreja. É como se os jovens necessitassem viver na mesma vida, mas numa dimensão diferente, só para eles. E nessa visão o que difere as dimensões são exatamente as coisas estranhas que permeiam nossa juventude. Espero me tornar mais claro com os pontos a seguir.

Um deus estranho

O primeiro aspecto de um mundo paralelo no ministério de jovens é um deus estranho. Se Ele é o criador e a fonte de toda realidade, um mundo diferente começa com um Deus diferente. No deserto Deus deu ao seu povo hebreu um ambiente (o tabernáculo), uma forma de louvor (o sistema sacrificial) e uma forma de ensino e comportamento (a lei). O Deus único instituiu uma maneira de ser adorado. Seu povo o adorava como Ele queria. Isso quer dizer que a adoração a outro deus seria diferente (ex: bezerro de ouro) ou que outros povos não saberiam adorar a Deus corretamente, isso porque nem o conheciam.

Realmente me parece que o deus de boa parte dos jovens é estranho às Escrituras e ao restante da igreja. Costumam pensar num deus menos irado e mais complacente com o pecado. Num deus mais camarada com irreverente. Ou talvez um deus que não se importe tanto com as normas que Ele mesmo criou. O jovem costuma ver a Deus como o tiozão descolado, não como pai. Os filósofos atenienses convocaram Paulo a falar por acharem que ele ensinava coisas estranhas (At 17.20), mas o apóstolo começa dizendo que a razão pela qual acham seu ensino estranho está no fato de que adoram a um deus desconhecido (At 17.23), não o Deus único e verdadeiro de Paulo.

Não é novidade vermos jovens achando ensinos bíblico estranhos. Temo que isso se deve ao desconhecimento de Deus por conta do deus estranho que constroem em suas mentes. E isso afeta todo o resto.

Um ambiente estranho

Se temos um Deus estranho, provavelmente teremos um ambiente estranho de vida e adoração. Isso é perceptível em muitos ministérios de jovens. Existe uma grande tentativa de criar um ambiente "diferentão", uma outra dimensão da igreja. Por exemplo, sabemos que o Deus da Bíblia é um Deus de decência e ordem (1 Co 14.40), não sabemos? Por que então tanta desordem e indecência no meio dos jovens? A resposta: a visão de Deus estranha às Escrituras. Pense num culto normal de domingo de uma igreja e pense naquele culto de jovens badalado da sua cidade. Por que eles são tão diferentes. Por que as coisas valorizadas no culto dominical normal não são valorizadas no sábado a noite.

Um ambiente de jovens paralelo não se justifica. Nenhum ministério tem a prerrogativa bíblica de criar um ambiente estranho. O que estou querendo dizer com isso? Não me oponho a contextualização de linguagem e roupagem, mas tudo deve ser feito dentro do limite bíblico. Esse mundo totalmente diferente e paralelo acaba viciando os jovens e o mantendo preso a um formato. Muitos não crescem, não gostam de ir a igreja aos domingos e querem continuar mimados pelo deus estranhos dos jovens. E o grande problema é esse: a criação de uma realidade jovem paralela ao restante da igreja é a busca por tornar o ministério mais parecido com o presente século.

Um louvor estranho

No culto de domingo as luzes estão acessas, no de sábado apagadas. No de domingo a música está num volume agradável onde podemos ouvir os demais irmãos cantando, no sábado o volume é máximo. No domingo a liturgia segue normal, no sábado ela é substituída pelo entretenimento. No domingo temos um pregador bem vestido, normalmente, no sábado temos alguém fantasiado ou com roupas que não usaríamos no domingo. No domingo fazemos uma adoração voltada para os crentes, no sábado um show voltado para os incrédulos. Por que duas realidades diferentes? Só podemos encontrar resposta numa visão de Deus diferente.

Deus deixou claro um padrão de louvor ao seu nome. Seria enorme a defesa bíblica de cada passagem, mas podemos resumir e ficar com o princípio de que Ele está procurando adoradores em "Espírito e em Verdade" (Jo 4.24), ou seja, cristãos verdadeiros adorando através da verdade aplicada pelo Espírito. No mundo paralelo dos ministérios de jovens a verdade nas letras musicais pouco parecem importar diante da forma de apresentação. Aliás, as letras estranhas que cantam por ai é a maior expressão do deus estranho que pregam por ai.

Uma pregação estranha

Falando em pregação... quanta coisa estranha é feita com ela no meio dos jovens. Não vou nem falar de reduzir o tempo, eu bem queria que fosse apenas isso. Deus nos deixou um modelo de pregação (ver Atos), nos deixou um conteúdo de evangelização e exortação (Ler Jesus e Paulo) e nos disse como Ele chama pessoas a fé (Rm 10.13-17). Por que o restante da igreja tenta seguir essas verdades e o ministério de jovens parece ter descoberto uma forma mais legal de fazer?

A pregação estranha é a propagação e perpetuação do mundo estranho paralelo. A realidade bíblica da pregação expositiva (por passagem ou temas) é substituída por coisas estranhas do tipo motivacional, humorística, entretenimento, graça barata, loucuras, e secularismo. Como disse Hernandes Dias Lopes, quando a teologia é ruim (estranha), quanto mais se prega pior fica. O monstro da realidade paralela se alimenta de pregações estranhas às Escrituras.

Um comportamento estranho

Tudo isso que acabei de citar gera um relacionamento estranho. Nesse mundo paralelo a lei de Deus se faz também estranha. Jovens homens estão cada vez mais ameninados e jovens mulheres cada vez mais sensualizadas. É comum ver um palavreado estranho (entenda palavrões), vestes estranhas e brincadeiras estranhas. E o que é pior, esses jovens pensam que podem transitar o tempo todo entre as duas realidades sem nenhum desgaste ou prejuízo. Nesse caso esses ministérios de jovens são piores do que o misterioso centro de pesquisas de Hawkins.

Aqui fica a lição que até a série pode nos ensinar. O contado entre essas duas realidade e o trânsito entre elas é perigo e pode se tornar devastador. Ao passar dos episódios encontramos um professor de ciências afirmando que é necessário uma grande quantidade de energia para abrir portais entre as duas dimensões. E é triste ver tantos líderes e jovens gastando inutilmente uma grande quantidade de energia justamente para viverem num mundo paralelo cheio de coisas estranhas por conta de uma visão estranha de Deus (Os 4.6)

Como fechamos esse portal?

A resposta é: não dividamos a realidade da igreja em duas. Só existe uma realidade e uma das piores coisas que podem acontecer numa igreja é ver esse mundo paralelo jovem se tornar tão forte ao ponto de engolir toda a verdadeira dimensão eclesiástica. Jovens não precisam de um mundo paralelo, ninguém precisa. Aqui estão alguns pontos para lutarmos contra essa dupla dimensão:

- Elime o foco no entretenimento
- Centralize o culto em Deus, não nos visitantes
- Envolva os jovens com os mais velhos da igreja (incentive esses momentos)
- Utilize o mesmo padrão de liturgia (bíblico) em todos os cultos
- Pregue com a mesma seriedade em todos os cultos
- Não vista o ambiente jovem com a roupagem do mundo
- Cante músicas com letras bíblicas em todos os cultos
- Não se importe tanto com a quantidade de pessoas

Voltemos ao ambiente bíblico de culto, ao louvor bíblico, a pregação bíblia e ao comportamento bíblico. Voltemos a realidade que tem sua expressão máxima na verdade encarnada (Cristo) e escrita (Bíblia). Deixemos as “stranger things” apenas no Netflix.

20 de jul. de 2016

Por que a ideologia é idolátrica?

Por Thomas Magnum

Introdução

Ao tratarmos de ideologia, tratamos - sem sombra de dúvida - do estabelecimento de uma cosmovisão que pretende exercer domínio sobre um grupo, religião, sociedade, país ou meramente sobre o indivíduo no claustro de si e dominado pela ideia de domínio do que o cerca por meio da construção e do empreendimento engenhoso de um conjunto de ideias e discursos autorrealizáveis beirando a profecia “auto-cumprível”.

Notemos que a ideologia como dizia Marx é um vestido de ideias que procura estabelecer um contorno determinante e religiosamente seguido para o sucesso do que foi planejado. Vemos com isso que a ideologia exerce então certa dosagem de engenharia da ideia.

Idea + Logos = Telos

Tratando de ideologia, discorremos sobre o vislumbre[1] e cumprimento de ideias estabelecidas, pois, ideologia nos fala de discurso das ideias. O logos, nos fala de articulação lógica das ideias. No sentido político, a ideologia é uma articulação lógica do que se pretende alcançar e fazer. Toda ideologia visa um telos, e para que esse telos tenha sucesso no cumprimento, ele precisa de meios e anteriormente precisa-se de ter um a priori, um pressuposto. O telos é o propósito último de uma ideia, discurso, doutrina, religião, ou qualquer que seja o ponto onde está centrado o discurso, todo discurso tem um objetivo, ainda que o objetivo seja não ter objetivo.

A Lógica na Ideologia

Temos aqui claramente a lei da contradição, um discurso não visa não pretender nada, isso é lógica (logos), a lógica pretende organizar, dinamizar e apontar para um tipo de bem a ser alcançado com o discurso, ainda que esse bem não seja para ambos – emissor e receptor. O projeto do discurso lógico na ideologia visa o cumprimento da lógica, lógica estabelecida pela ideia, que pretende chegar ao telos. Diz Olavo de Carvalho: Uma ideologia é, por definição, um simulacro de teoria científica. É, segundo a correta expressão do próprio Marx, um "vestido de ideias" que encobre interesses ou desejos[2]. 

Ainda dentro do universo ideológico concebe-se que

A estrutura interna do pensamento ideológico caracteriza-se pela compressão forçada da realidade para dentro de uma única dimensão, portanto pela recusa ou proibição de examinar os fatos e aspectos que não caibam no padrão escolhido[3].

A Estrutura Fundacional de uma Ideologia

É verdade que a ideologia monta-se em bases pseudoverdadeiras. Há falsificação de no discurso com o fim de manobrar as circunstâncias para uma montagem circunstancial que promova o cumprimento do ideal proposto no logos teleológico[4].

Em geral os fundadores de uma ideologia sabem que ela é objetivamente falsa. Não a defendem porque creem que ela descreve acuradamente a realidade, mas porque esperam que, se um número suficiente de pessoas acreditar no que dizem, a conduta delas se tornará mais previsível e manipulável na direção desejada. Toda ideologia é nesse sentido uma profecia autorrealizável: ela visa a criar as próprias condições sociais e psicológicas que lhe darão retroativamente uma aparência de veracidade. Mas no fundo a ambição dos ideólogos fundadores é transcender a distinção de aparência e realidade, fazendo com que esta copie tão bem aquela que se torne indiscernível dela e acabe por se transformar nela efetivamente. Essa ambiguidade inata do pensamento ideológico escapa geralmente à quase totalidade dos seus aderentes e seguidores, sendo uma espécie de segredo originário bem guardado pelos fundadores e só acessível, em cada geração, a uma reduzida elite de seus discípulos mais talentosos e clarividentes[5].

Ideologia, Soteriologia e Escatologia

Dadas as condições acima mencionadas para formulação da ideologia temos então um quadro interessante a ser analisado e ponderado com profunda observação não apenas por um prisma da filosofia política como por um prisma da teologia política que vai estabelecer uma base divergente no processo de exposição do bem-estar humano em contraparte com as tentativas da ideologia. A ideologia vai propor uma esperada redenção que somente se dará através da adesão ao discurso e a luta para tal instauração ideológica. A ideologia irá exigir um posicionamento no que se refere ao espectro do discurso lógico que se deflagra um “evangelho” boas novas para oprimidos e grupos minoritários, que em muitos casos se transforma de oprimido para opressor, logo a lógica da ideologia é de domínio soberano e aniquilação do inimigo que se opõe ao discurso escatológico da pauta em questão. Ainda nos diz Koyzis:

[...] vejo as ideologias como tipos modernos do fenômeno perene da idolatria, trazendo em seu bojo suas próprias teorias sobre o pecado e a redenção. Desde o início de sua narrativa, a Escritura denuncia o culto aos ídolos, falsos deuses que os seres humanos criaram. Como as idolatrias bíblicas, cada ideologia se fundamenta no ato de isolar um elemento da totalidade criada, elevando-o acima do resto da criação e fazendo com que esta orbite em torno desse elemento e o sirva. A ideologia também se fundamenta no pressuposto de que esse ídolo tem a capacidade de nos salvar de um mal real ou imaginário que há no mundo[6]

Ideologia Política e Imaginação Totalitária

A política é alvo da construção ideológica e assim compreendida de forma errada, o que era para ser voltado para o bem comum começa a girar em torno de uma facção, um grupo que articula ideologicamente para estabelecer centros de poder dominante na sociedade assim foi com os regimes socialistas na China, Alemanha e Rússia, para citar alguns países. Razzo nos diz que:

A relação entre os conceitos de política e de imaginação pode gerar uma variedade de modos de compreensão e abrir uma série interessante de perspectivas a respeito do seu significado. Quando vinculada à política, toda compreensão corre o risco de se tornar ideológica na medida que se reduz a variedade da compreensão a uma unidade inequívoca, a partir da qual se presume  ser a única forma – correta e inegociável – de atividade política[7].

Toda construção ideológica é uma caricatura e uma distorção do cristianismo. A ideologia perpetra uma redução da realidade, a ideologia se fundamenta cumprível”. Portanto há na ideologia uma soteriologia que emana do discurso axiomático que ela se vale por seu pressuposto salvífico imaginário. Com isso também se vale a ideologia de uma escatologia autocriada e buscada pela guerra cultural e ideológica. Como então pode um cristão aderir ideologias?

Percebamos que a construção de uma ideologia transita por fatores religiosos, temos estabelecida uma guerra de questões não apenas políticas, mas metafisicas e teológicas. A realidade e o futuro são objetos do empenho ideológico. O Cristianismo não convive com isso. O Cristianismo é exclusivista e possui uma cosmovisão particular e reinante. Toda ideologia é quebra do primeiro e segundo mandamentos do decálogo. É a divinização de um ídolo e a reconfiguração de uma adoração a ele. É um rompimento com o mandamento de adoração e submissão àquele que governa soberanamente. 

Ideologia e Domínio

Pelo que já vimos até aqui fica evidente que a intensão última da ideologia é o domínio de ideias contrárias a ela, estabelecendo métodos de centralização e atração de poder para si. A ideologia acaba agindo de forma totalitária tomando e estabelecendo princípios para toda a vida humana individual e em sociedade. Podemos fazer uma ligação teológica interessante no que se refere aos axiomas.

Axiomas – Ontológico e Epistemológico

A ideologia vai lidar com axiomas, quando esta estabelece um axioma ontológico que se refere ao ser, ela obstrui e substitui a divindade, ou seja, temos no cristianismo dois axiomas básicos para a compreensão filosófica da fé cristã e como isso se desenvolve no âmbito da teologia e da filosofia política por um prisma cristão. O axioma ontológico do cristianismo é Deus. O axioma epistemológico do cristianismo é a Escritura. A ideologia vai substituir esses axiomas, estabelecendo uma nova fundamentação filosófica que perpasse a vida humana e redima os flagelos e moléstias sociais. Temos então uma clara estabilização de falsos deuses para uma cosmovisão. Por isso toda ideologia é idolatria.

Conclusão

Os fundamentos da ideologia não são apenas filosóficos, são religiosos. A busca por soluções redentoras e escatológicas ultrapassam os limites da função da política no mundo. A ideologia é uma violação explicita dos dois primeiros mandamentos do decálogo o que é idolatria.





[1] No conceito de ideia temos uma busca e uma mentalização do algo que ainda não é. A idealização gera o vislumbre, o vislumbre e a idealização são inevitavelmente fundamentados por axiomas ontológicos e epistemológicos. O que vai intermediar a ideia entre os axiomas são as pressuposições.

[2] http://www.olavodecarvalho.org/semana/confronto.htm

[3] http://www.olavodecarvalho.org/semana/070910dc.html

[4] O termo que uso por logos teleológico refere-se a um discurso que se esmera a uma finalidade de cabal cumprimento, via de regra a luta para que esse cumprimento ocorra procede de regimes totalitários.

[5] http://www.olavodecarvalho.org/semana/070910dc.html

[6] Koyzis, David. Visões e Ilusões Políticas. 2014. São Paulo, ed. Vida Nova, p.18.

[7] Razzo. Francisco. A Imaginação Totalitária. Ed. Record, Rio de Janeiro. 2016, p.9.

5 de jul. de 2016

Aos Adeptos da TMI: Um Alerta do Passado

Por Thiago Oliveira

Considero o Pacto de Lausanne um documento ortodoxo e de grande valia para o segmento evangelical. Todavia, lamento que o conceito de missão integral tenha sido capturado por cristãos ditos progressistas que têm um alinhamento político-ideológico com os setores da esquerda. Isto fere a própria tradição de Lausanne, pois em Junho de 1980 a Consulta de Pattaya se posicionou contrária ao marxismo, vendo-o como um sistema concorrente do cristianismo e, em seu bojo, anticristão. Na ocasião, pastores do leste europeu - bloco socialista liderado pela extinta URSS - escreveram aos irmãos ocidentais:

"Nosso temor é que a igreja de outros países fiquem alheias aos problemas do marxismo e insensíveis ao fato de que, ao nosso ver, elas estão colaborando com pessoas desta filosofia que nos oprime. Assim como procuramos ser sensíveis à preocupação de tais cristãos com a verdadeira justiça social em favor dos pobres, também pedimos que as igrejas de outros países compreendam como nós nos sentimos quando elas mantém conversações com os marxistas. (...) Poderiam as prioridades marxistas virem a ser reordenadas de tal maneira que o interesse pela justiça social no setor baixo-econômico tivesse preeminência sobre a eliminação da religião?"

O relatório extraído desta consulta foi publicado com o título “Evangelho e o Marxista”, e o trecho supracitado se encontra na página 35. Nessa consulta, também estavam pastores e líderes latino-americanos que falavam acerca da pobreza e de uma possível práxis conjunta entre evangélicos e marxistas para diminuir as injustiças sociais. Tais líderes são os pioneiros da conhecida Teologia da Missão Integral (TMI). Nota-se que aqueles cristãos que viviam oprimidos pela imposição do marxismo, no leste europeu, ficaram preocupados com o resultado desta proximidade, mesmo sabendo que a pauta para tal aproximação era nobre (o cuidado com os pobres). Hoje, diante de alguns fatores, podemos dizer que eles estavam certos ao fazer determinada ressalva, pois, vemos muitos proponentes da TMI convivendo com ideias e com pessoas oriundas do pensamento marxista sem fazer as devidas críticas ou, ao menos, estabelecer as diferenciações de suas pautas.

Recentemente, a revista Cristianismo Hoje, em sua edição de número 52 trouxe como matéria de capa o seguinte assunto: "Missão Integral, Missão de Deus". A matéria é propagandista e diz que a TMI já contribuiu e tende a contribuir muito para a igreja brasileira. O texto evoca os princípios do Pacto de Lausanne e salienta que evangelização e ação social devem andar de maneira conjunta. Ela ainda dá a entender que as críticas feitas a TMI que a associam as ideias marxistas são infundadas. O pastor americano Timothy Carriker, disse que fazer tal associação é algo "tão absurdo que eu tenho muita dificuldade de levar a sério". Mas como não entender se um dos seus principais expoentes diz que para interpretar a Bíblia usa os óculos que possuem os postulados marxistas da mais-valia e da luta de classes? Essa é uma fala do Ariovaldo Ramos registrada em vídeo[1]. O mesmo Ariovaldo que escreveu e leu o manifesto pró-governo com a cobertura da mídia oficial do Partido dos Trabalhadores. [2] Obviamente que ele não representa todos os proponentes da TMI, mas, no mínimo, dada a importância do Ariovaldo, isso evidencia que muitos vão seguindo pelo mesmo caminho. Sendo assim, qual a dificuldade de entender quem tece uma crítica sobre o abraço da TMI aos pressupostos de Marx?

Como se não bastasse, vemos por aqui cantor esquerdista que vai palestrar numa ONG que é influenciada pela TMI[3], além de outras pautas progressistas que ferem a Escritura e que são defendidas por quem hoje se diz adepto da missão integral. A coisa é tão séria que decidiram não relançar o documento de Pattaya, alegando que a conjuntura sócio-política mudou. Mas algo que esqueceram de refletir é que ainda existem cristãos em países socialistas que são perseguidos e mortos. A Coréia do Norte há anos encabeça a lista dos países perseguidores do evangelho. Como diz o documento: "Os marxistas estão plenamente convencidos de seu ateísmo e, consequentemente, uma boa parte de seu pensamento está destinada a erigir-se em antítese do cristianismo" (p.11, grifo meu).

Que as dezenas de milhares de cristãos mortos e torturados[4] por governos pautados em princípios marxistas possam gritar para que alguns dos proponentes da TMI acordem para o fato de que não podem conciliar o ethos evangélico com os escritos de Marx, Engels e os que lhes sucederam. Que eles sejam sensíveis ao que seus “irmãos do passado” levantaram e, atentem para não colaborar com uma ideia que oprime seus “irmãos de agora” em outras partes do mundo. Cito novamente o documento de Pattaya: "O marxismo é uma filosofia e um programa. Como um todo, é fundamental e incontornavelmente ateu. Por esta razão, notamos no conceito 'marxista cristão' uma contradição de termos" (p.22, grifo meu).

Por fim, acredito que a missão cristã deve ser holística (ou integral, como queiram), e deve alcançar o homem todo. Mas, infelizmente, o termo foi maculado com uma aproximação irresponsável entre o evangelho e uma corrente ideológica. Eu, por hora o tenho abandonado. Faço minhas as palavras do Kevin Vanhoozer: "Os pastores precisam vacinar o corpo de Cristo contra toxinas idólatras, infecções ideológicas e outras formas de ensinamento falso"[5]. Quando fazem o oposto disso, o prejuízo doutrinário não pode ser maquiado pelas boas ações e intenções.

10 de jun. de 2016

Evangelismo e Apologética

Por Greg L. Bahnsen

O motivo pelo qual os cristãos são colocados na posição de apresentar a razão da esperança que neles há é que nem todos os homens têm fé. Porque há um mundo a ser evangelizado (homens que não são convertidos), há a necessidade de que o crente defenda sua fé: evangelismo conduz naturalmente à apologética. Isso indica que apologética não é mera questão de “duelo intelectual”; é uma séria questão de vida e morte — vida e morte eterna. O apologeta que falha em perceber a natureza evangelística de sua argumentação é cruel e arrogante. Cruel porque ignora a principal carência de seu oponente, e arrogante porque está mais preocupado em demonstrar que ele não é um tolo acadêmico do que em mostrar que toda glória pertence ao gracioso Deus de toda a verdade. Evangelismo nos faz lembrar quem somos (pecadores salvos pela graça) e do que carecem nossos oponentes (conversão de coração, não apenas modificação proposições modificadas). Acredito, portanto, que a natureza evangelística da apologética nos indica a necessidade de adotar uma defesa pressuposicional da fé. Em contraste a essa abordagem se colocam os vários sistemas de argumentação autônoma neutra.

Algumas vezes ouve-se, na área da erudição cristã (seja no campo da história, da ciência, da literatura, da filosofia ou em qualquer outro), a demanda por uma postura neutra, uma atitude não comprometida com a veracidade das Escrituras. Com freqüência, professores, pesquisadores e escritores são levados a pensar que, para serem honestos, devem pôr de lado todo comprometimento distintamente cristão quando estudam uma área que não esteja relacionada diretamente aos assuntos da adoração dominical. Eles raciocinam que, visto que a verdade é verdade onde quer que possa ser encontrada, as pessoas devem ser capazes de buscar a verdade pela orientação dos grandes pensadores de cada área, ainda que esses tenham uma perspectiva secular. “É realmente necessário considerar os ensinamentos bíblicos se você quer entender corretamente a guerra de 1812, a composição química da água, as peças de Shakespeare ou as regras da lógica?” Esse é o questionamento retórico deles. Daí surge a demanda por neutralidade no reino da apologética. Alguns apologetas dizem que deixariam de ser escutados pelo mundo descrente se abordassem a questão da veracidade das Escrituras com uma resposta preconcebida. De acordo com essa perspectiva, devemos estar dispostos a abordar o debate com descrentes com uma atitude comum de neutralidade — uma atitude “ninguém sabe até agora”. Inicialmente, devemos assumir o mínimo possível, é o que nos dizem; e isso significa que não podemos assumir premissas cristãs ou ensinamentos bíblicos. Assim, o cristão é chamado a abrir mão de suas crenças religiosas distintivas, a “deixá-las na estante” temporariamente, a assumir uma atitude neutra em seu pensamento. Satanás adoraria que isso acontecesse. Mais do que qualquer outra coisa, isso evitaria a conquista do mundo para crer em Jesus Cristo como Senhor. Mais do que qualquer outra coisa, isso faria dos cristãos professos impotentes em seu testemunho, ineficazes em seu evangelismo e incapazes em sua apologética.

O apologeta neutralista deveria refletir sobre a natureza do evangelismo; tal reflexão demonstra que (pelo menos) nas seis seguintes formas, o evangelismo requer uma apologética pressuposicional.

Na tentativa de levar boas novas ao mundo descrente, o neutralista é privado de seu tesouro.  Contrária à demanda por neutralidade, a palavra de Deus demanda lealdade sem reservas a Deus e sua verdade em todo o nosso pensamento e busca por instrução. E o faz por uma boa razão.

Paulo declara infalivelmente em Colossenses 2.3-8 que “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” em Cristo. Note que ele diz estarem depositados na pessoa de Cristo toda sabedoria e conhecimento — seja sobre a guerra de 1812, a composição química da água, a literatura de Shakespeare ou as leis da lógica! Toda atividade acadêmica e todo pensamento devem ser relacionados a Jesus Cristo, porque Jesus é o caminho, a verdade e a vida (Jo. 14.6). Assim, evitar Cristo em seu pensamento, em qualquer ponto, é estar enganado, entregue à falsidade e morto espiritualmente.

Pôr de lado seus comprometimentos cristãos ao defender a fé é desviar-se voluntariamente do único caminho para a sabedoria e a verdade encontradas em Cristo. Temer o Senhor não é o fim ou o resultado do conhecimento; é o princípio do conhecimento reverenciá-lo (Pv. 1.7, 9.10). Paulo chama nossa atenção para a impossibilidade da neutralidade, a fim de que ninguém nos “engane com raciocínios falazes”. Ao contrário, devemos, como exorta Paulo, ser firmes, confirmados, radicados e edificados na fé, como fomos instruídos (v. 7). Uma pessoa deve estar pressuposicionalmente comprometida com Cristo na esfera do pensamento (e não neutra) e firmemente ligada à fé que recebeu por instrução, ou a argumentação persuasiva do pensamento secular irá enganá-la. Por isso o cristão é obrigado a pressupor a palavra de Cristo em toda área do conhecimento; a alternativa é o engano. No versículo 8 de Colossenses 2, Paulo diz: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas”. Ao tentar ser neutro em seu pensamento, você se torna um alvo fácil para ser enredado — privado por vãs filosofias de “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” que estão depositados somente em Cristo (v. 3). A mente obscurecida do descrente é uma expressão de sua carência de ser evangelizado.

Paulo nos diz em Efésios 4 que seguir os métodos ditados pela perspectiva intelectual daqueles que estão fora de uma relação salvadora com Deus é ter pensamentos vãos e entendimento obscurecido (vv. 17-18). O pensamento neutralista, então, é caracterizado por futilidade e ignorância intelectual. Na luz de Deus, vemos a luz (cf. Sl 36.9). Afastar-se da dependência intelectual da luz de Deus, da verdade de Deus e sobre Deus, é afastar-se do conhecimento para a escuridão da ignorância. Dessa forma, se um cristão deseja iniciar sua busca por instrução a partir de uma posição de neutralidade, ele estará, na verdade, disposto a iniciar seu pensar nas trevas. Ele não permitirá que a palavra de Deus seja luz para o seu caminho (cf. Sl 119.105). Ao caminhar pela neutralidade, tropeçaria pela escuridão. Tal pensamento certamente não honra a Deus como deve, e, conseqüentemente, Ele o torna nulo (Rm 1.21b). Neutralidade equivale à nulidade na visão de Deus.

Essa “filosofia” que não tem seu ponto de início e nem sua direção em Cristo é mais detalhadamente descrita por Paulo em Colossenses 2.8. Paulo não é contrário ao “amor pelo conhecimento” (isto é, “filosofia”, do grego) per se. Filosofia é admirável se a pessoa encontra sabedoria genuína — o que significa, para Paulo, encontrá-la em Cristo (Cl 2.3). No entanto, há um tipo de “filosofia” que não começa com a verdade de Deus, com o ensinamento de Cristo. Essa filosofia tem sua direção e origem nos princípios dos intelectuais do mundo — na tradição dos homens. Tal filosofia é alvo da reprovação de Paulo em Colossenses 2.8. É, para nós, esclarecedor, especialmente se somos propensos a aceitar a demanda por neutralidade em nosso pensamento, investigar sua caracterização desse tipo de filosofia.

Paulo diz que é “vã sutileza”. Que tipo de pensamento é esse que pode ser caracterizado como “vão”? Encontramos uma resposta ao comparar e contrastar passagens das Escrituras que falam de vaidade (por exemplo, Dt 32.47, Fp 2.16, At 4.25, 1Co 3.20, 1Tm 1.6 [loquacidade frívola], 6.20 [falatórios inúteis], 2Tm 2.15-18, Tt 1.9-10). Pensamento vão é aquele que não está de acordo com a palavra de Deus. Um estudo similar demonstrará que “sutileza” [engano, cf. Gn 27.35 ARC] é aquilo que está em oposição à palavra de Deus (cf. Hb 3.12-15; Ef 4.22; 2Ts 2.10-12; 2Pe 2.13 [mistificações]). A “vã sutileza” sobre a qual Paulo previne, então, é a filosofia que opera contra a verdade de Cristo e longe dela. Note a ordenança de Efésios 5.6, “Ninguém vos engane com palavras vãs”. Colossenses 2.8 nos diz que tomemos cuidado para não sermos enredados com “vãs sutilezas”. Paulo caracteriza ainda esse tipo de filosofia como “de acordo com a tradição dos homens, segundo os princípios fundamentais do mundo”. Essa filosofia põe de lado a palavra de Deus e a torna inválida (cf. Mc 7.8-13), e o faz ao basear-se nos elementos de aprendizagem ditados pelo mundo (isto é, os preceitos dos homens; cf. Cl 2.20,22). A filosofia que Paulo rejeita é aquele pensamento que segue as pressuposições (as hipóteses elementares) do mundo e, por essa razão, não está de acordo com Cristo.

O neutralista negligencia a antítese entre o cristão e o não-cristão que explica por que o crente está em posição de auxiliar o descrente Em Efésios 4.17-18, Paulo ordena que os seguidores de Cristo não mais andem “como também andam os gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu coração”. Cristãos não devem andar, agir ou viver de uma maneira que imite o comportamento daqueles que não são redimidos; especificamente, Paulo proíbe que o cristão imite a vaidade dos pensamentos do descrente. Cristãos devem se recusar a pensar ou raciocinar de acordo com uma perspectiva ou mentalidade mundana. O agnosticismo condenável dos intelectuais do mundo não deve ser reproduzido nos cristãos como suposta neutralidade; essa perspectiva, essa abordagem à verdade, esse método intelectual evidencia um entendimento obscurecido e um coração endurecido. Ele se recusa a curvar-se perante o senhorio de Jesus Cristo sobre todas as áreas da vida, incluindo a erudição e o mundo. Todo homem, seja antagonista ou apologeta do Evangelho, distinguirá seu pensamento e a si mesmo pelo contraste com o mundo ou pelo contraste com a palavra de Deus. O contraste, a antítese, a escolha é clara: ser distinguido pela palavra de Deus (que é verdade) ou estar alheio à vida de Deus. Ou ter “a mente de Cristo” (1Co 2.16) ou a mente vã dos gentios (Ef 4.17). Levar cativo todo pensamento à obediência de Cristo (2Co 10.5) ou continuar como “inimigos em suas mentes” (Cl 1.21). Aquele que segue o princípio intelectual de neutralidade e o método epistemológico da erudição descrente não honra o soberano senhorio de Deus como deve; como resultado, seu pensamento se torna nulo (Rm 1.21b). Em Efésios 4, como vimos, Paulo proíbe que o cristão siga essa mentalidade vã. Paulo prossegue ensinando que o pensamento do crente é diametralmente contrário ao pensamento ignorante e obscurecido dos gentios. “Mas não foi assim que aprendestes a Cristo” (v. 20). Enquanto os gentios são ignorantes, a verdade está em Jesus (v. 21). Ao contrário dos gentios, que estão alheios à vida de Deus, o cristão se despojou do velho homem e tem se renovado no espírito do seu entendimento (vv. 22-23). Esse “novo homem” é diferente em virtude da “justiça e retidão procedentes da verdade” (v. 24). O cristão é completamente diferente do mundo quanto ao intelecto e à erudição; ele não segue os métodos neutros de descrença, mas, pela graça de Deus, tem novos compromissos, novas pressuposições em seu pensamento.

Tentar ser neutro nos esforços intelectuais (seja pesquisa, argumentação, raciocínio ou ensino) equivale a se esforçar para apagar a antítese entre o cristão e o descrente. Cristo declarou que um foi separado do outro [santificado] pela verdade, que é a palavra (Jo 17.17). Quem tenta obter dignidade aos olhos dos intelectuais do mundo usando a insígnia da “neutralidade” somente o faz à custa de recusar ser santificado pela verdade de Deus. No reino intelectual, eles são absorvidos pelo mundo, de forma que ninguém pode dizer a diferença entre seus pensamentos e concepções e os pensamentos e concepções apóstatas. A linha entre o crente e o descrente é desvanecida.

Esse tipo de concessão nem é possível. “Nenhum homem pode servir a dois senhores” (Mt 6.24). “Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tg 4.4).

A natureza da conversão não é de neutralidade e autonomia contínua, mas de fé e submissão ao senhorio de Cristo. A fé da pessoa que se torna cristã não foi gerada pelos padrões de pensamento da sabedoria mundana. O mundo, por sua própria sabedoria, não conhece a Deus (1Co 1.21), mas considera loucura a palavra da cruz (1Co 1.18, 21b). Se alguém adota a perspectiva do mundo, então ele nunca verá a sabedoria de Deus verdadeiramente; assim, nunca estará “em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria” (1Co 1.30). Logo, fé (e não observação auto-suficiente) faz de você um cristão, e essa confiança é posta em Cristo, não em seu próprio intelecto. Isso é o mesmo que dizer que o modo pelo qual se recebe Cristo é se desviar da sabedoria dos homens (a perspectiva do pensamento secular com suas pressuposições) e obter, pela iluminação do Espírito Santo, a mente de Cristo (1Co 2.12-16). Quando uma pessoa se torna cristã, sua fé não se baseia na sabedoria dos homens, mas na poderosa demonstração do Espírito (1Co 2.4-5).

E mais, o que o Espírito Santo causa é que todos os crentes digam “Senhor Jesus” (1Co 12.3). Jesus foi crucificado, ressurreto e assunto para que pudesse ser confessado como Senhor (cf. Rm 14.9, Fp 2.11). Dessa forma, Paulo pode resumir essa mensagem, que deve ser confessada se formos salvos, em “Jesus é o Senhor” (Rm 10.9). Para se tornar cristã, uma pessoa deve se submeter ao senhorio de Cristo, deve renunciar autonomia e pôr-se sob a autoridade do Filho de Deus. Aquele que Paulo diz que recebemos, de acordo com Colossenses 2.6, é Cristo Jesus, o Senhor. Como Senhor sobre o crente, Cristo requer que o cristão o ame com cada faculdade que tem (incluindo o entendimento, Mt 22.37); todo pensamento deve ser levado cativo à obediência de Cristo (2Co 10.5).

Logo, o apologeta evangelístico deve vir e arrazoar como um novo homem se quiser atingir o descrente; sua argumentação deve ser consistente com o objetivo para o qual mira. Vimos que a precondição absoluta da genuína erudição cristã é que o crente (e seu pensamento) deve estar radicado em Cristo (Cl 2.7). Paulo ordena que estejamos radicados em Cristo e que evitemos as pressuposições do secularismo. No versículo 6 de Colossenses 2, ele explica de forma simples como devemos ter nossas vidas (incluindo nossa busca por erudição) fundamentadas em Cristo e, daí, garantir que nosso raciocínio seja guiado pelas pressuposições cristãs. Ele diz “Ora, como recebestes Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele”; isto é, ande nele da mesma forma em que o recebeu. Se fizer isso, você será confirmado na fé, tal como foi instruído. Como, então, você se tornou cristão? Desse mesmo modo você deve crescer e amadurecer em sua caminhada cristã. Vimos acima que nossa caminhada não honra o padrão de pensamento da sabedoria mundana, mas se submete ao senhorio epistêmico de Cristo (isto é, sua autoridade na área do pensamento e do conhecimento). Dessa maneira uma pessoa alcança fé, e nessa maneira o crente deve continuar a viver e a aplicar seu chamado — mesmo quando se trata de erudição, apologética ou ensino.

Logo, o novo homem, o crente com uma mente renovada que foi ensinada por Cristo não anda mais na vaidade e escuridão intelectual que caracteriza o mundo descrente (cf. Ef 4.17-21). O cristão tem novos compromissos, novas pressuposições, um novo Senhor, uma nova direção e meta — ele é um novo homem; e essa novidade é expressa em seu pensamento e erudição, pois (como em todas as outras áreas) Cristo deve ter primazia no reino da apologética e do evangelismo (Cl 1.18b).

Se o evangelista quer que seu testemunho seja convincente, ele deve colocar-se em um firme fundamento de conhecimento. Deus nos diz que apliquemos nosso coração ao seu conhecimento para conhecermos a certeza das palavras da verdade (Pv 22.17-21). É característico dos filósofos atuais negarem a existência da verdade absoluta ou negar que alguém possa ter certeza sobre conhecer a verdade: ou ela não existe ou é inalcançável. No entanto, o que Deus escreveu para nós (ou seja, as Escrituras) pode mostrar-nos “a certeza das palavras da verdade” (vv. 20-21). A verdade é acessível! Contudo, para a compreendermos firmemente, devemos estar atentos à ordenança do versículo 17b: “aplica o coração ao meu conhecimento”. Conhecimento de Deus é primário, e o que quer que o homem deseje conhecer só pode ser baseado na recepção do que Deus tem conhecido desde a origem até ao fim. O homem deve pensar os pensamentos de Deus segundo Ele, pois “na tua luz, vemos a luz” (Sl 36.9).

O testemunho de Davi foi que “o Senhor meu Deus ilumina minha escuridão” (Sl 18.28). Na escuridão da ignorância humana, a ignorância que resulta da suposta auto-suficiência, surgem às palavras de Deus, trazendo luz e entendimento (Sl 119.130). Assim, Agostinho diz corretamente, “Creio para que possa entender”. Entendimento e conhecimento da verdade são os frutos prometidos quando o homem faz da palavra de Deus seu ponto de partida pressuposicional para todo pensamento. “Atende a minha sabedoria; à minha inteligência inclina os ouvidos para que conserves a discrição, e os teus lábios guardem o conhecimento” (Pv 5.1-2).

O neutralista se esquece da natureza graciosa de sua salvação Fazer da palavra de Deus sua pressuposição, sua norma, seu guia e instrutor, contudo, requer renunciar a auto-suficiência intelectual — a posição na qual você é autônomo, capaz de atingir conhecimento independentemente da direção e dos padrões de Deus. O homem que afirma ter (ou buscar) neutralidade em seu pensamento não reconhece sua completa dependência do Deus de todo o conhecimento para qualquer coisa que queira entender sobre o mundo. Tais homens (geralmente) dão a impressão de que são cristãos somente porque, como intelectos superiores, entenderam ou confirmaram (em quantidade grande ou significativa) os ensinos das Escrituras. Em vez de começar com a palavra certa de Deus por fundamento em seus estudos, querem que pensemos que começam com auto-suficiência intelectual e (usando isso como ponto de partida) chegam a uma aceitação “racional” das Escrituras. Embora cristãos possam cair em um espírito de autonomia ao seguir na busca por erudição, ainda assim, essa atitude não é consistente com a profissão e o caráter cristãos. “O temor do SENHOR é o princípio do saber” (Pv 1.7). Todo conhecimento começa em Deus e, assim, os que buscam conhecimento devem pressupor a palavra de Deus e renunciar a autonomia intelectual. “Não multipliqueis palavras de orgulho, nem saiam coisas arrogantes da vossa boca; porque o SENHOR é o Deus da sabedoria” (1Sm 2.3).

O SENHOR é aquele que aos homens dá conhecimento (Sl 94.10). Então, o quer que tenhamos, mesmo o conhecimento que temos sobre o mundo, isso nos foi dado por Deus. “E que tens tu que não tenhas recebido?” (1Co 4.7). Por que, então, se orgulhariam os homens em auto-suficiência intelectual? “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1Co 1.31). Humilde submissão à palavra de Deus deve preceder toda busca intelectual do homem.

Apologética é evangelística por natureza. O apologeta lida com pessoas que têm mentes obscurecidas, fugindo da luz de Deus, se recusando a se submeter ao Senhor. O apologeta não deve demonstrar essa mesma mentalidade ao se esforçar por uma neutralidade que, no fim, o coloca no mesmo lamaçal. Ele deve ter como objetivo a conversão do descrente antagonista e, assim, deve desencorajar autonomia e encorajar fé submissa. O apologeta deve evidenciar, mesmo em seu método de argumentação, que ele é um novo homem em Cristo; ele usa pressuposições que estão em oposição às do mundo. Ele faz da palavra de Deus seu ponto de partida, sabendo que somente ela dá o conhecimento seguro que o descrente não pode ter enquanto rebelde a Cristo. O pensamento do não-cristão não tem fundamento firme, mas o cristão declara a confiável palavra de Deus. Se não o fizesse, não poderia de modo algum evangelizar: só compartilharia sua ignorância e especulação com o descrente. O cristão seria privado de todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento que estão depositados em Cristo somente. Além disso, o apologeta que tenta mostrar sua auto-suficiência intelectual movendo-se para uma posição de neutralidade para que possa “provar” certas verdades isoladas no sistema cristão se esquece de que somente a graça o fez o cristão que é; ele deveria, ao invés, continuar a pensar e se comportar da mesma maneira que recebeu Cristo (pela fé, submetendo-se ao Senhorio de Cristo).

Portanto, à luz do caráter do evangelismo, da natureza do descrente, da natureza do apologeta regenerado, da natureza da conversão, da natureza do pensamento e da salvação genuínos, convém que o apologeta cristão use uma abordagem pressuposicional em sua defesa da fé. O caráter evangelístico da apologética requer nada menos que santificarmos a Cristo, como Senhor, em nosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que nos pedir razão da esperança que há em nós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor (1Pe 3.15-16); “as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2Co 10.4-5).

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Tradução: Sávio Ornelas Almeida
Fonte: Monergismo