1509725595914942
Mostrando postagens com marcador Mandato Cultural.. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mandato Cultural.. Mostrar todas as postagens

25 de jan. de 2016

Graça Numa Sociedade Corrompida

Por Thomas Magnum*

Ao declinarmo-nos sobre a literatura do Antigo Testamento veremos que suas lições são preciosas para a vida comum e que não somente a lei foi importante para a religião judaica, mas, para o desenvolvimento da cultura ocidental que foi muito influenciada pela cosmovisão judaico-cristã. Ao partirmos do primeiro livro de Moisés – o Gênesis – notamos a magnífica construção teológica, literária e histórica desse livro que encabeça o grande tomo da revelação de Deus para os homens.

O valor dos ensinos bíblicos para o desenvolvimento da humanidade tanto nos âmbitos sociais, culturais; no que concerne ao estabelecimento de leis cívicas, sociais e políticas, também em outras esferas como a adoração do povo de Deus e a instituição da família como célula mater da sociedade nos fornecem um espectro que serve como compêndio instrutivo para entendermos o que Deus disse em sua revelação e qual é a sua vontade para a sociedade. Ao lermos Gênesis 1.26-31 temos então o que chamamos em teologia de mandatos da criação, são eles – cultural, social e espiritual.  Com base nesses mandatos dados ao primeiro casal no paraíso e compreendendo a grande linha interpretativa da Bíblia que podemos dizer que transcorre partindo da criação, depois a queda, redenção e consumação de todas as coisas.

Ao lermos que o pecado entrou no mundo e com isso a degeneração moral e espiritual do primeiro casal como representantes da raça servem como o ponto inicial para compreendermos o que o livro procura mostrar: que Deus criou o homem, que o homem pecou e foi destituído da glória de Deus, que Deus providenciou a redenção do homem e que Deus é quem guia a história com seu plano da promessa até culminar em Cristo no Novo Testamento, é importante saber que, em Gênesis 3.15 temos o proto-evangelho, a promessa da semente da mulher que seria a salvação prometida por Deus – Cristo Jesus.

Então ao lermos a narrativa bíblica nos capítulos seguintes, temos a descendência de Adão e Eva em seus filhos Caim e Sete (Pois Abel foi morto por seu irmão), vemos que o pecado continuou a multiplicar-se na semente de Caim. Ao chegarmos ao sexto capítulo do Gênesis lemos que [...] viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente[i]. E aqui propriamente chegaremos ao ponto de nossa reflexão, lemos neste capítulo a história de Noé e sua família obedecendo à ordem de Deus em construírem uma arca porque viria um grande dilúvio. Evidentemente meu ponto aqui caro leitor não é discutir sobre as possibilidades cientificas do dilúvio ou se ele foi territorial ou mundial, tomo por linha interpretativa que o dilúvio de fato aconteceu, é um fato. Com isso partimos para as manifestações da graça divina nesse capítulo da história humana. Comumente somos levados a acreditar que a graça de Deus só foi demonstrada no Novo Testamento, isso não procede, a graça é demonstrada ativamente desde a queda do primeiro casal. Ao chegarmos à história de Noé lemos que Noé, porém, achou graça aos olhos do Senhor [ii]Noé achou graça não só a despeito do pecado, mas também por causa de sua integridade (v.9) [iii]. Bruce K. Waltke nos diz que

Esta afirmação aparece em forma de clímax no final do relato dos descendentes de Adão. Noé representa um novo começo, uma inversão que foi antecipada em 5.29. Noé acha graça diante de Deus, não a despeito do seu pecado, mas em virtude da sua retidão (ver 6.9). O narrador deixa o seu auditório compreender que a retidão de Noé não é propriamente sua, mas um dom da graça de Deus, justamente como foi o dom da soberana graça que no coração de Eva foi posta a inimizade contra a serpente. Deus opera em Noé, como faz em todos os santos, tanto o querer quanto o realizar, segundo o seu beneplácito (Fp 2.13) [iv]

Notemos que a causa do juízo de Deus enviando o dilúvio era o pecado dos homem como vimos descrito no capítulo 6 e versículo 5 de Gênesis, no entanto encontramos em meio a essa manifestação da ira santa de Deus para com o pecado e consequentemente com pecadores a graça sendo manifestada através de Noé. Por Noé ter achado graça diante de Deus, agora foi alcançado por esse favor divino sua família seria preservada do juízo de Deus sobre a terra. Deus agraciou a família de Noé, não porque eram dignos, mas, porque a misericórdia divina assim o quis.

Ao lermos com atenção toda a narrativa de Gênesis veremos que há um contraste entre a queda do homem, sua degradação moral que desemboca nas instituições que ele está envolvido, na sociedade, na família, em seus negócios, e a graça de Deus que o beneficia, que o restaura, que o levanta para cumprir a promessa descrita no início do livro como vimos acima. Noé era um tipo de Cristo, a tipologia aqui é clara, como sua família foi salva por meio dele, os homens são salvos por meio de Cristo. Cristo é o cabeça da família, do seu povo que salvou dos seus pecados (Mt 1.21; Ef 5.25).

Ao lermos Gênesis, o texto nos diz com clareza a situação do mundo – A terra, porém, estava corrompida diante da face de Deus; e encheu-se a terra de violência.

E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra [v]. Temos um caos moral devastador instalado, será que nos lembra algo? Será que nosso tempo é totalmente distante dessa realidade de pecado? Será que somos diferentes daqueles que viviam no tempo de Noé? Nos diz o apóstolo Pedro

Os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água; Que também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundícia da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo[vi].

O anúncio da graça ainda é ouvido, através de Cristo e somente dele o homem pode sair do caos espiritual, a ressurreição de Jesus nos proporciona esse batismo com água, nos dá graça, vida, paz e misericórdia. Em Noé temos a figura, em Cristo temos a manifestação perfeita e cabal da graça, Cristo é a pura manifestação da graça, o verbo feito carne, a porta. Cristo é a arca de Deus. Sua vida nos é comunicada na cruz e na ressurreição. Por isso a igreja é a comunidade da cruz, porque na cruz e no túmulo vazio recebemos redenção e justificação. Graça para uma sociedade corrompida somente em Cristo, a proclamação continua vindo agora da igreja semelhante a Noé que pregou a justiça de Deus, proclamamos a salvação e o juízo vindouro sobre toda carne que se volta contra o altíssimo:

E não perdoou ao mundo antigo, mas guardou a Noé, a oitava pessoa, o pregoeiro da justiça, ao trazer o dilúvio sobre o mundo dos ímpios[vii].
            
Diante da emergente situação de nosso país, diante da imensa problemática em vários setores da sociedade, diante da crise econômica, educacional, na saúde e até na religião a mensagem ainda é proclamada aos ouvidos do mundo caído, nos disse o Senhor no Santo Evangelho de Mateus:

O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar. Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas unicamente meu Pai. E, como foi nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do homem.

Porquanto, assim como, nos dias anteriores ao dilúvio, comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, E não o perceberam, até que veio o dilúvio, e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do homem [viii].

Nos vale a advertência das Escrituras Sagradas, Cristo é nossa arca, há graça, há vida, há ressurreição.
______
[i] Bíblia Sagrada Corrigida Fiel, Gênesis 6.5.
[ii] Ibd. 6.8.
[iii] Bíblia de Genebra, cit. Comentário. Ed. Cultura Cristã, p.21.
[iv] Waltke, Bruce K. Gênesis. Ed. Cultura Cristã, 2010, p.143.
[v] Gênesis 6.11,12.
[vi] 1 Pedro 3.20,21.
[vii] 2 Pedro 2.5
[viii]  Mateus 24.35-39



* Publicado Originalmente na Revista Olhar Cristão.

22 de jan. de 2016

Calvino e as Relações de Trabalho

Por André Biéler

A ética calvinista do trabalho.

Como toda ética do reformador, a ética do trabalho baseira-se, portanto, na visão bíblica das realidades sociais. É uma ética teológica, que pode confirmar, mas não necessariamente, a ética natural, de uma humanidade atualmente desnaturada. A ética evangélica destina-se a servir de referência aos seres humanos para ajudá-los a discernir o bem do mal, porque bem e mal lhes são igualmente naturais, um como o outro.

A dignidade do trabalho humano, quando em conformidade com o desígnio de Deus, atém-se ao fato de que é, de certa forma, o prolongamento do trabalho que o próprio Deus empreende para a manutenção de suas criaturas. É a resposta à vocação que este Deus lhes dirige para que elas se utilizem das riquezas da criação, postas por ele, gratuitamente, à disposição delas. A despeito dessa eminente dignidade, a obra humana permanece, porém, obra profana. Não poderia aspirar à sua sagração. Quem a executa assume toda a responsabilidade perante Deus e perante os homens.

Todavia, por causa de sua natureza desnaturada, o homem despreocupa-se da glória de Deus e, por conseguinte, do bem de seu próximo. Crê poder dispor de seu trabalho como bem lhe parece, de forma autônoma e egoísta. Pode mesmo fazer dele seu Deus. E pensa, naturalmente, que pode dispor igualmente, como bem lhe apraz, do trabalho alheio e, particularmente, dos frutos do trabalho daqueles que por ele são remunerados. Assim, desligado da ordem de Deus que lhe confere seu sentido e sua dignidade, esse trabalho pode transformar-se em servidão, maldição, e tornar-se, para si mesmo e para os outros, fonte de sofrimentos e lágrimas. Degrada-se o ponto de não ser considerado mais que simples mercadoria, como o destacarão os economistas do século XIX.

O que se faz mister, portanto, para que o trabalho recupere seu sentido original? Urge que seja novamente considerado como serviço e reconhecido como tal, com sua dignidade. E para tanto, faz-se preciso que o homem restaure sua situação perante Deus. Faz-se necessário que se associe de novo, pessoalmente, à obra espiritual que Deus persegue incansavelmente no mundo, para o bem de todas as suas criaturas. E é preciso que associe igualmente a essa obra divina seu próprio trabalho e o dos outros.

Paradoxalmente, para isso acontecer, o homem deve parar momentaneamente de trabalhar, a fim de readquirir nova comunhão com Deus. É necessário que silencie diante dele, para escutá-lo. Esse é o significado do Deus (Gênesis, c. 20). É o dia da santificação, a saber, da marcha espiritual, pela qual cada indivíduo é convidado a reencontrar sua verdadeira identidade de criatura de Deus, motivada e estimulada por seu amor.

Assim, o repouso humano não possui valor em si mesmo. Se proporciona ao trabalhador um descanso físico e psicológico desejado, necessário, isso é uma feliz consequência, mas um efeito secundário. Não é o reencontrar-se com Deus, com a comunidade dos crentes, retornar às fontes e reencontrar, assim, o sentido da sua vida inteira, e particularmente de seu trabalho. “Os fiéis”, escreve Calvino, “devem repousar de seus próprios trabalhos, a fim de permitir que Deus opere neles.” E “agir é, pois, aderir em todas as coisas à ação de Deus”.

Ora, essa tomada de posição do homem diante de Deus só é possível pela mediação de Cristo. Para que reconquiste o justo sentido de sua existência e de seu trabalho, o homem deve entrar na comunhão com Deus pelo caminho que lhe abre Cristo. É necessário, pois, passar pelo arrependimento e deixar-se santificar, restaurar, pelo espírito de Deus. E essa santificação opera-se na comunidade dos fiéis, na comunhão com aqueles que buscam em conjunto a renovação da sua existência. Assim, somente dessa forma o trabalho cotidiano pode readquirir seu significado e reencontrar sua qualificação. Só desse modo pode tornar a ser uma obra em conformidade com o desígnio de Deus e restabelecer entre os homens relações sociais justas. Eis porque o mandamento bíblico da santificação do dia do repouso faz menção às relações do trabalho, ao relacionamento entre senhores e súditos, isto é, em termos modernos, entre patrões e operários, entre empregadores e empregados, entre os que fornecem o capital da empresa e os que executam o trabalho. A espiritualidade cristã, quando autêntica, não é, pois, fuga da interioridade. É contemplação do agir de Deus, que quer ser, claramente, o árbitro das relações humanas no trabalho, na cidade e, também, nas trocas comerciais e financeiras. Aliás, como também em todos os demais domínios da vida. (Mas estes não constituem objetos das reflexões desta obra.)

Pode-se, por isso, dizer, com toda justiça, que Calvino conferiu ao trabalho sua dignidade. Mas, é um equívoco censurá-lo por haver instituído a religião do trabalho. Se protestantes, ou mesmo sociedades de origem calvinista, vieram a ceder a essa extravagância, como se pode constatar por vezes (examinar-se-á esse assunto), é porque adotaram ideologias profanas que, como o liberalismo integral ou o marxismo, consideram o trabalho sem levar em conta o sentido que Deus lhe empresta. Fazem dele um valor em si, autônomo, apartado de suas raízes espirituais e da ética que delas deriva, detentoras de seu verdadeiro significado. Acrescentamos que esse sentido do trabalho não é estático, mas dinâmico. A vocação de Deus não enclausura o cristão em atividade imutável. Ao contrário, é apelo para enfrentar, de maneira flexível, as situações novas. Porque Deus, que convoca o homem ao trabalho, age sempre no contexto de uma história concreta e evolutiva, que obriga cada indivíduo a adaptar-se às circunstâncias.

A ociosidade, o desemprego e os lucros abusivos.

Já que o trabalho, sob a ótica calvinista, é obra pela qual o homem se realiza correspondendo à vocação que Deus lhe dirige, a ociosidade é vício que corrompe a humanidade. O repúdio ao trabalho, assim como a preguiça, significa para o homem a negativa de corresponder à expectativa de Deus, uma forma de ruptura com ele. “A bênção do Senhor”, escreve Calvino, “está nas mãos daquele que trabalha. É certo que a preguiça e a ociosidade são malditas por Deus.”

É por isso que Calvino denuncia a culpa dos que obtêm suas posses do trabalho alheio, sem proporcionar à comunidade trabalho pessoal, serviço real (remunerado ou não). Descreve esses “ociosos e inúteis que vivem do suor alheio e, portanto, não prestam contribuição alguma para ajudar o gênero humano”.

Eis nos novamente bem distantes tanto dos usos da sociedade feudal anterior à Reforma quanto dos que prevaleceram em seguida nas sociedades onde floresceu o capitalismo primitivo ou selvagem. Que nessas sociedades alguns trabalham demasiadamente, enquanto outros são conduzidos ao repouso forçado, eis um indício grave do esquecimento da ética cristã ou do desprezo por ela. É por isso que, pelas mesmas razões teológicas relacionadas com o valor do trabalho, o desemprego não pode ser tolerado, nem admitido, como uma fatalidade do ponto de vista desta ética. Já que o trabalho é essa obra indispensável, pela qual o homem se realiza na obediência a Deus, o desemprego é uma calamidade social que deve ser combatida com o máximo vigor. Privar o homem do seu trabalho é verdadeiro crime. É, de certa forma, subtrair-lhe um pouco a vida. “Se bem que recebamos nosso alimento da mão de Deus”, escreve Calvino, “ele nos ordenou trabalhar, O trabalho é eliminado? Então a vida humana é aviltada.” “Sabemos que toda a renda de todos os artesãos e operários decorre de poder ganhar a vida…”. “Então, já que Deus lhes depositou assim a vida em suas mãos, isto é, no seu trabalho, privá-los dos bens necessários é como degolá-los.”

A ética reformada do trabalho ordena, portanto, ação social eficaz para prevenir o desemprego e intervir em benefícios de suas vítimas.

Tal ética estava na origem das múltiplas intervenções de Calvino e de seus colegas na luta contra esse flagelo. Para eles não estava em discussão abandonar-se à filosofia do “laisser-faire”, que prevaleceu mais tarde na ideologia profana do liberalismo integral e dos economistas sem imaginação. Preconizavam a intervenção moderadora do legislador para melhor distribuição de bens em função da conjuntura. Não imaginavam, tampouco, que o Estado devesse assumir a função econômica: isso equivaleria a subtrair aos indivíduos suas responsabilidades e iniciativas, inerentes à sua vocação, preocupada com o próprio trabalho e com o alheio. E a ociosidade, que a ética cristã combate, não pode ser encorajada, também, por uma lassidão social tolerante demais para com os preguiçosos.

Sempre em função de seu significado espiritual e ético, o trabalho de cada indivíduo deve ser respeitado e não é lícito dele retirar lucro abusivo. “Deus nos ensina”, escreve ainda Calvino, “que nos cabe tratar com tal humanidade os que cultivam a terra para nós, que eles não sejam onerados imoderadamente, mas possam prosseguir no seu trabalho e nele tenham oportunidade de dar graças a Deus.” Deus quer “corrigir a crueldade que existe nos ricos, os quais empregam pessoas pobres, mas não as recompensam pelo seu trabalho”.

Então, se a liberdade é indispensável ao exercício da vocação para o trabalho, que Deus dirige a toda pessoa humana, essa liberdade não pode ser considerada isoladamente, independente da busca de justa solidariedade entre os parceiros sociais, todos os atores da economia.

Sabe-se com que vigor Calvino se esforçou para pôr em prática o ensino espiritual e ético que ele ministrava cotidianamente. Interveio constantemente junto às autoridades, tanto para eliminar a ociosidade quanto para combater o desemprego, que se tornava ameaçador quando os refugiados estrangeiros afluíram para a cidade de Genebra. Foi em razão de suas insistências que o Pequeno Conselho, um dos conselhos da cidade, estimulou a criação de novas indústrias, como a tecelagem, depois as manufaturas de tecidos de seda para criar assim novos postos de trabalho e absorver o desemprego.

O conceito reformado do salário.

É sempre a partir de considerações teológicas particulares que Calvino define uma ética concreta. E assim é, mais notadamente ainda, a propósito do salário.
    
O salário humano retira seu significado de uma analogia com a recompensa que Deus concede ao homem por suas obras. De fato, ela depende unicamente de seu amor. Tudo o que recebe um ser humano é devido à graça de Deus. É ele que provê gratuitamente a sustentação da vida, por pura misericórdia. “Falando com propriedade”, escreve Calvino, “Deus nada deve a ninguém.” “Qualquer obrigação de que nos desincubamos, Deus não está absolutamente obrigado a pagar-nos salário algum.”

Na sua bondade, porém, Deus não abandona suas criaturas sem lhes dar o que lhes é necessário para viver. Remunera suas obras, não por obrigação, mas por amor. “Por sua bondade gratuita, oferece-nos salário”, escreve ainda o reformador, “aluga nosso trabalho, o qual lhe é devido mesmo sem a remuneração.”
    
O salário humano concedido a todo o trabalhador é, portanto, a expressão tangível do salário gratuito e imerecido com que Deus privilegia a obra de cada indivíduo. Assim, por mais profano que seja, o salário se reporta à obra de Deus. Expressa de forma visível a intervenção de Deus em favor da frágil existência humana. Além disso, porque esse salário é o sinal da graça de Deus, não pode ser considerado como favor, que o dono do trabalho possa dispor como bem lhe aprouver. Dando ao trabalhador a remuneração de seu trabalho, o dono nada mais faz que transferir ao próximo aquilo a que este tem direito da parte de Deus.

Por causa desse significado espiritual e ético conferido ao salário, o produto do trabalho não pertence, portanto, mais ao patrão que ao operário, ambos sócios na atividade comum. Em conjunto, recebem o produto como a recompensa providencial de seu esforço. Patrões e empregados são, em conjunto e igualmente, devedores de Deus segundo os dons que receberam e puseram em atividade, sem mérito maior para uns ou outros. Devem, portanto, repartir esses frutos de comum acordo, livremente, mas levando em conta a contribuição inicial a responsabilidade de cada um. Disso decorre que não se trata simplesmente de regular-se pela lei da oferta e da procura, sem qualquer outra consideração ética. E mesmo que tal ética jamais haja sido aplicada à letra, é sua orientação espiritual que importa observar. A negociação, aqui como em qualquer lugar, deve ocorrer. A negociação é um princípio social superior, que deriva diretamente do fato de que nenhum ator econômico é, sozinho, dono do que produz em conjunto com os outros. O produto permanece sinal concreto da graça de Deus, um dom a partilhar.

Contra a exploração dos trabalhadores.

Por certo Calvino não ignora as regras do mercado. Mas, precisamente estas, não podem ser as únicas que devem ser levadas em conta. Devem ser complementadas e corrigidas de acordo com essas referências espirituais e éticas. Impõe-se especialmente levar em consideração as necessidades e a dignidade de todos os parceiros. É que a avidez ameaça sempre perverter as relações sociais, particularmente quando a conjuntura é adversa para os trabalhadores mais fracos.
    
“Eis como muitas vezes procedem os ricos”, escreve Calvino. “Espreitam as ocasiões favoráveis para reduzir à metade os salários dos pobres, quando estes não têm onde empregar-se. Estes estão desprovidos de tudo, dirá o rico, tê-los-ei por um pedaço de pão, porque precisam, embora contra a vontade, se renderem a mim. Dar-lhes-ei meio salário e têm de contentar-se. Quando, pois, usamos de tal maldade, conquanto não tenhamos negado salário, há sempre crueldade, e lesamos um pobre.”
   
Destarte, em matéria de remuneração, o que é justo sob o aspecto da ética está, muitas vezes distante do que é a norma no mundo econômico.
   
Sem que, nem por isso, recomende a revolução dos assalariados explorados, o reformador constata que Deus está atento às reclamações dos trabalhadores espoliados: ele não se esquece dos empregadores que abusam deles. De fato, “com que maior violência se pode deparar”, escreve, “do que fazer morrer de fome e de miséria os que nos fornecem o pão com o seu trabalho? E, apesar disso, essa maldade tão absurda é muito comum. É que existem muitas pessoas que possuem temperamento tirânico e pensam que a humanidade foi feita somente para eles. São Tiago afirma que o salário grita, porque tudo o que os homens retêm em seu poder, ou por fraude, ou por violência ou força, clama vingança aos gritos. Faz-se imperioso observar o que acrescenta: o grito dos pobres chega até os ouvidos de Deus, a fim de que saibamos que as maldades, que lhes são feitas, não ficarão impunes”.

Ainda nessa matéria, Calvino interveio junto aos seus colegas para que a ética da justa remuneração fosse aplicada na sua cidade. Àquela época, como na maioria dos países vizinhos, a população atravessava período difícil, caracterizado por alta generalizada do custo de vida. Os salários não acompanhavam essa elevação. Os assalariados menos aquinhoados, o proletariado, entraram em agitação. Em 1559, o Conselho, para prevenir qualquer rebelião, proibiu a reunião de trabalhadores, suprimindo seu direito a associação. Advieram perturbações sociais, entre os gráficos principalmente. Sob a iniciativa dos pastores, o Conselho, de comum acordo com os representantes da profissão, tomou medidas para regulamentar a atividade gráfica. Graças a essa intervenção e à ponderação dos interessados, Genebra evitou as greves que perturbaram Lion e Paris naqueles tempos. Essa paz social, obtida mediante a negociação entre todas as partes, contribuiu para a recuperação da economia de Genebra e para seu desenvolvimento rápido em comparação com as economias vizinhas.

Legitimidade do comércio, das trocas e da divisão do trabalho.

Enquanto a sociedade medieval menosprezava o comércio, o Cristianismo reformado o reabilitou inspirando-se, uma vez mais, no ensinamento bíblico. Já que Deus convocava cada indivíduo para uma missão particular, explica Calvino, torna-o dessa forma dependente do trabalho e dos serviços alheios. Assim, pois, cada indivíduo tem necessidade de usufruir das outras atividades humanas. Certa divisão do trabalho está, portanto, em conformidade com o desígnio de Deus. Ela manifesta a interdependência de suas criaturas e acentua a utilidade dos vínculos que a atividade econômica tece na sociedade. Cada indivíduo é dependente dos outros. Desse modo expressa-se a solidariedade que liga os homens entre si. E tal solidariedade implica troca permanente entre os indivíduos, reciprocidade de serviços. O comércio, por consequência, é o corolário da vocação individual para um trabalho particular. As trocas são por conseguinte indispensáveis para que se realize a ordem social harmoniosa que Deus quer ver reinar entre os homens. Nenhum deles pode bastar-se.

É pouco provável, porém, que Calvino tenha aplicado essas observações, tais quais foram feitas, à divisão industrial do trabalho que não conheceu, levada ao exagero, como o foi, a partir do século XIX. É que tal divisão, que reduziu o homem a simples máquina, destruiu a própria natureza do trabalho criador, individual, resposta a uma vocação personalizada.

Como todas as outras atividades humanas, as trocas somente são úteis se estão em conformidade com a vontade de Deus, à ética cristã. Mas o homem desnaturado inclina-se a falsear esse tipo de relações econômicas. A fraude e a desonestidade insinuam-se nas trocas e desnaturam-nas. “Quando não mais se pode comprar nem vender”, diz Calvino, “a companhia dos homens é como que destruída.”

Ora, os autores de tal subversão são acima de tudo os especuladores e os açambarcadores, já numerosos no século XVI, que, por todos meios artificiais, entravam a circulação dos bens e dos produtos, causando-lhes a raridade e aumentando destarte os lucros.
___________

Fonte: A Força Oculta dos Protestantes. Ed. Cultura Cristã. P. 124-131. 

2 de out. de 2015

É importante observar os Mandatos da Criação

Por Luciana Barbosa

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.

E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.” 

Gênesis. 1.26-28

Por que é importante observar os mandatos? Você sabe quantos e quais são os mandatos? Pois bem, não surgiu hoje mas, na criação do mundo. Leia esse texto e logo após volte a essas perguntas e responda para si mesmo.

20 de jan. de 2015

Sobre Linguagem e Comunicação: Transmitindo o Evangelho da Graça

Por Thomas Magnum

O Evangelho é boa nova, boa notícia e isso nos leva a uma reflexão sobre a atual comunicação do Evangelho que tem sido extremamente prejudicada não somente pelas distorções doutrinais como pela mundanização do discurso, no sentido de obscurecimento da integralidade da mensagem. Dentro do campo de estudos da comunicação identificamos três pontos fundamentais: o emissor, o receptor e o diálogo. Evidentemente que o diálogo só poderá ser estabelecido quando a mensagem do emissor for inteligível ao receptor, dentro da inteligibilidade do receptor consequentemente ocorrerá à resposta a mensagem recebida tornando assim eficaz a comunicação dos indivíduos. Quando a mensagem contem entraves em sua transmissão ocorre o que chamamos de ruído, ela não chega com inteireza, clareza e eficazmente ao receptor.

Vivemos na era da explosão comunicacional e os meios de difusão da mensagem são multiformes. Essa convergência e pluriformidade de conteúdo e mensagem sofrem com isso interferências que são dissociadas do real significado da palavra, do discurso. Ao examinarmos casos breves nas Escrituras Sagradas podemos trabalhar em cima de exemplos práticos muito uteis a nossa reflexão aqui sobre a linguagem e a comunicação do Evangelho numa perspectiva missional para a igreja.

Podemos traçar uma linha do Gênesis ao Apocalipse quando falamos da comunicação da mensagem de Deus, afinal, foi o próprio Deus que iniciou o processo de comunicação com o homem na criação de Adão, Deus se relacionava com ele e lhe deu instruções e mandamentos como lemos no início do Gênesis. Mas, devemos notar que a comunicação era algo consideravelmente relevante para o Senhor na criação do homem que ele lhe deu uma mulher, o desenvolvimento dos nossos relacionamentos estão estreitamente ligados a um processo comunicacional, não apenas de palavras, mas, de sentimentos e fisicamente também. A comunicação não se restringe a um tipo de linguagem apenas, ela pode ser verbal e não verbal. Tomemos alguns exemplos: ao lermos a saga o Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien ou mesmo as Crônicas de Nárnia de C.S. Lewis temos ali um tipo de linguagem verbal e não verbal também. Quando o escritor relata uma cachoeira, ou um rio que passa pelo cenário descrito por ele, ou mesmo um vento, o autor nos leva nesse momento a uma linguagem auditiva, imaginamos o barulho das águas ou do vento. Ao descrever Nárnia tomada de neve por causa da feiticeira branca, ou a mesa sendo quebrada na ressurreição de Aslam, Lewis nos leva a uma linguagem visual e auditiva, ao tratar de tempo frio ou quente um autor nos leva a uma linguagem sensitiva. Então a comunicação é pluriforme. Quando assistimos um filme em 3D somos levados a uma variável de comunicação visual, auditiva, sensitiva e até tátil, isso é muito interessante porque relacionasse a integralidade de nossos instrumentos de conhecimento, pelos nossos sentidos.

Então quando um pai proíbe seu filho de colocar o dedo numa tomada, expressando isso abaixando-se diante dele e dizendo: “não coloque o dedo ali, você pode morrer” esse tipo de linguagem inicial poderá ser intensificado de outras formas, quando o garotinho olha para o pai e vê que ele não está vendo e pensa em colocar o dedo na tomada, e então como por um susto quando levanta a cabeça pega seu pai olhando para ele, ele entende que há uma desaprovação do pai ao que ele pretende fazer, porque já ouve uma ordem para que ele não fizesse isso. A comunicação no segundo caso foi não verbal, mas, ouve comunicação e foi eficaz.

Quando lidamos com nosso ponto focal que aqui é nossa comunicação do Evangelho, de fato, a pregação ocupa um lugar ímpar, segundo a tradição reformada é um sacramento e ocupa lugar central no culto a Deus. Posto isso, é importante tratarmos aqui também em um ponto interessante numa perspectiva missional, isso desenvolvido a partir de concepção Kayperiana da soberania das esferas. Em seu excelente livro Igreja Centrada de Timothy Keller ele nos diz:

A igreja missional confirmará que todos os cristãos são missionários em todas as áreas da vida.

Portanto ao olharmos nosso legado na história da reforma, Deus era glorificado e isso era ensinado como desdobramento do mandato cultural, social e espiritual em todas as esferas – Política, artes, música, educação – não há uma ruptura entre o secular e o sagrado, tudo pertence a Deus, ele é Senhor do mundo e tudo que nele há. Fator interessante relacionado a isso é o ensino dos reformadores sobre a graça comum, evidente que ao falarmos de revelação geral, não atribuímos totalidade salvífica a ela, mas totalidade condenatória, a revelação especial veio revelar a completude da revelação para a salvação através dos méritos de Cristo na cruz. Mas o interessante é que os cristãos abandonaram outras esferas, um exemplo disso é que muitas pessoas acham que estar engajado na obra de Deus é somente ser pastor, missionário, dirigente de louvor, diácono qualquer outra atribuição ligada diretamente à igreja e ao trabalho eclesial.

Ouvimos aqui ou ali alguém dizer que seu curso na faculdade é secular, e tratamos disso com uma dicotomia que as escrituras não apresentam. Quando os reformadores tratavam da questão vocacional e isso é bem interessante, eles não atribuíam o termo vocação somente como o catolicismo fazia aos padres, monges e freiras. Diziam que ser médico é uma vocação, ser sapateiro é uma vocação, ser pastor é uma vocação. Isso está ligado a doutrina pregada por Lutero e Calvino sobre o sacerdócio de todos os crentes. E essas vocações exercidas para glória de Deus comunicam o Evangelho da Graça. Como diz Nancy Pearcey em seu livro Verdade Absoluta: existe uma forma cristã de sociologia, de filosofia, de artes, de medicina, de agronomia, de história. Isso está ligado a nossa cosmovisão, nossa perspectiva cristã e essas coisas consequentemente desembocarão num processo comunicacional do evangelho.  Com essa perspectiva proclamamos o reino de Deus, que não é Senhor somente da igreja, mas, de toda a criação.

Ao fazermos uma leitura correta do Reino de Deus nas Escrituras notaremos a importância do entendimento da soberania das esferas. Existe uma autoridade sobre a família, que é uma esfera. Uma autoridade sobre o estado que é uma esfera. Uma autoridade sobre a igreja que é uma esfera, mas, todas as esferas são regidas por Deus. Uma esfera é independente da outra em um sentido governamental, mas, em outro sentido todas elas estão sob o mesmo Rei e mesma lei, a lei de Deus e no governo de Deus. E essa pluriformidade nos leva a entender que nisso há graça, há favor de Deus, há reino de Deus, há vidas transformadas pelo poder do Evangelho da Graça, graça invencível. Precisamos no Brasil amadurecer nosso entendimento de comunicação da graça, porque não é graça barata, é graça por Cristo. Então nossa linguagem deve alcançar não apenas nosso gueto, mas deve ser universal. A língua utilizada no Novo Testamento foi o Grego Koyné, a língua do mercado, a língua do povo, a língua de compra e venda do império na época. Nossa comunicação do evangelho não deve estar carregada de termos teológicos incompreensíveis, porque isso não transmite graça, sejamos compreensíveis, essa é a tarefa de uma igreja missional, ela comunica o evangelho a sua cultura, sem perder a ortodoxia e a firmeza teológica, mas, de forma eficaz, quem nos mostra isso é a Palavra de Deus, os profetas do Antigo Testamento falavam a língua do povo, temos que falar a língua do povo. Uma arte cristã comunica devoção a Deus, podemos destacar aqui os quadros de Rembrandt. Música cristã comunica fé, podemos mencionar Sebastian Bach. Ciência cristã comunica cristianismo, podemos citar Blaise Pascal. Filosofia cristã comunica as verdades de Deus podemos citar Agostinho. Política cristã comunica a glória de Deus, podemos citar Jhohannes Althusius.  

Mas não paramos aqui, algo que é preciso que atentemos é que muitas vezes no afã da comunicação imediata e eufórica, estamos respondendo questões que não foram perguntadas, aí a comunicação fica truncada. Em um processo proclamação de uma verdade é necessário sermos entendidos. E muitas vezes caímos num abismo semântico, na América Latina temos um fator muito interessante com música, e como disse Ziel Machado em uma palestra, “é possível sabermos como está o coração de um jovem, pela música que ele escuta”, note que esse processo deve-se a uma comunicação de via dupla, a mensagem comunica, ele recebe e emprega o que foi assimilado. Outro grande problema nosso é que não ouvimos, apenas despejamos nossa mensagem, mas, não atentamos para a necessidade expressiva do outro, aí muitas vezes a comunicação fica truncada também. Quando Paulo foi ao Areópago sua mensagem é proferida segundo a realidade daqueles homens, quando Jesus falou a parábola do semeador os ouvintes sabiam do que ele estava falando, quando o Senhor chamou os discípulos para serem pescadores de homens, eles identificaram, eles decodificaram a mensagem de Cristo. Isso é importante, a igreja deve responder a essas questões (1 Pe 3.15). Então tanto na comunicação verbal, como na não verbal devemos buscar a excelência, pois fomos dotados dos mais variados tipos de linguagens, e elas devem ser empregadas para a mensagem gloriosa do Evangelho. 

Em todas as esferas, em suas linguagens peculiares, deve-se comunicar o Evangelho da Graça, o Evangelho de Deus. Como dissemos no início o Evangelho é boas novas, devemos mostrar quais são as notícias ruins, para que falemos das boas. As boas notícias devem ser apregoadas em todas as esferas da vida. Boas notícias nos falam de comunicação, de linguagem. E nossa linguagem pode variar, mas, a fonte é a mesma – Jesus Cristo – O VERBO DE DEUS.