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27 de jan. de 2017

Os Símbolos Cristãos e sua Finalidade Histórica

Por Thomas Magnum

Acho interessante - e porque não dizer curioso - o evangelicismo brasileiro se afastou da simbólica cristã. De fato como diria o filósofo Mário Ferreira dos Santos, o símbolo faz parte do processo comunicativo normal do homem.

Obviamente temos inúmeras explicações históricas, por exemplo, o motivo dos evangélicos no Brasil não serem próximos a simbologia cristã, como o uso da cruz - por exemplo, o colarinho clerical, a falta de prédios de igrejas que possuam de fato uma arquitetura cristã. Em relação aos prédios é facilmente reconhecido que hoje em dia a praticidade para plantar uma igreja e ali funcionar os cultos não necessita de um prédio bonito, mas, de pessoas regeneradas. Isso é um fato que eu concordo, obviamente. No entanto, a questão é que os símbolos cristãos como cristogramas, a cruz, a pomba, o peixe, a âncora e as vestes pastorais comunicam algo.

Entendo que muitos evangélicos rejeitaram por exemplo a cruz nos templos por julgarem ser isso "católico". E se é católico não nos pertence, é maldito. Não esqueçamos que a igreja é católica. Ela está em todo mundo, ela é universal. Engraçado é que quando ocorre alguma apropriação indevida da simbologia cristã muitos então julgam que o correto é abandonar o símbolo. Por exemplo: palavras como promessa, bênção, maldição e decreto. Estas, são empregadas abusadamente e indevidamente por grupos neopentecostais heréticos. Mas, essas palavras carregam enorme significado teológico.

Os símbolos na história do cristianismo não tem como função a superstição, mas, o testemunho. A cruz vazia testemunha da morte do salvador, mas nos diz que a morte não o deteve. A gola clerical, simboliza que o ministro é um escravo da palavra. Sua garganta é um instrumento divino para pregação, ensino, aconselhamento e cuidado com o rebanho de Deus. A arte sacra em templos cristãos através de uma arquitetura ou outro meio que demonstre aos fiéis e aos infiéis a graça e glória de Deus são poderosos meios de testemunho. Não esqueçamos que a simbólica está presente na revelação de Deus, pois é um meio cognitivo. A sarça ardente, as colunas de fogo e a nuvem. A arca da aliança, o candelabro, o véu, a mesa, etc., claro que o significado completo destes símbolos foram cumpridos em Cristo. Mas veja que eles testemunhavam. A mística cristã histórica não ignorou a simbólica, mas, é verdade que houve abusos.

Não temos mais preocupação com templos arquitetonicamente cristãos, eu lamento por isso. Não digo que é norma, mas, é uma perca de oportunidade para o testemunho. Minha reflexão obviamente não é dogmática e tenho ciência da opinião por exemplo dos puritanos sobre a simbólica precedente no cristianismo. Meu objetivo não é desdizer o que os puritanos disseram. Mas nos lembrar que havia cristianismo antes da reforma. Algumas manifestações, mais puras e outras menos puras. A teologia não começa com Calvino. Foi ele de fato para mim o grande exegeta e teólogo da reforma. Mas, creio na catolicidade da igreja.

Não tenho a intensão - como disse - de normatizar nada, mas, de trazer a consciência de alguns que porventura gastaram tempo lendo esse texto, que nosso uso histórico da simbólica cristã tem valor testemunhal. Obviamente filtrando o que é bom.

26 de jan. de 2017

Teologia do Coaching: A Substituta da Teologia da Prosperidade

Por Pedro Pamplona

A teologia da prosperidade já apanhou demais. Seus grandes ícones já foram expostos e desmascarados. Infelizmente ela ainda faz vítimas pela falta de conhecimento do povo, principalmente nas periferias, público alvo desse tipo de “teólogos”. Felizmente ela está cada vez mais marginalizada e ficando limitada a determinadas igrejas. Um bom números de crentes tem um grande repúdio por esse tipo de abordagem “evangélica”. Pois bem, eis que temos uma substituta para a tal da teologia da prosperidade (TP). Eu a chamo de teologia do coaching (TC). Usareis as siglas a partir de agora.

A Cultura do Coaching

Sou formado em administração. Cursei quatro anos de faculdade e fiz outros cursos na área. Na época o coaching não era tão conhecido como hoje. Sempre valorizei cursos com conteúdos práticos como finanças, marketing e recursos humanos. Nunca fomos ensinados que precisaríamos de pessoas nos acompanhando para ensinar, direcionar, motivar e cobrar. Nós mesmos faríamos isso. Então a cultura do coaching chegou. Vá a uma seção de administração e negócios de uma livraria hoje e você perceberá o que estou dizendo. Nunca me dei bem com ela para ser sincero. E quero explicar a razão usando duas citações do Instituto Brasileiro de Coaching. Primeiro, o que é o coaching?

Um mix de recursos que utiliza técnicas, ferramentas e conhecimentos de diversas ciências como a administração, gestão de pessoas, psicologia, neurociência, linguagem ericksoniana, recursos humanos, planejamento estratégico, entre outras visando à conquista de grandes e efetivos resultados em qualquer contexto, seja pessoal, profissional, social, familiar, espiritual ou financeiro”¹

Agora pergunto: como o coaching acontece?

Conduzido de maneira confidencial, o processo de Coaching é realizado através das chamadas sessões, onde um profissional chamado Coach tem a função de estimular, apoiar e despertar em seu cliente, também conhecido como coachee, o seu potencial infinito para que este conquiste tudo o que deseja”²

Antes de continuar deixe-me dizer algo para que fique claro. Acredito na liberdade de trabalho honesto. Se você gosta ou trabalha honestamente com isso, ok, é a sua escolha. Por mais que eu tenha críticas a essa prática, aqui entrarei na relação do coaching com a igreja. Usarei essas duas respostas dadas para analisar biblicamente o que chamo de TC. Minha argumentação será essa: Igreja e evangelho não combinam com o coaching e não devem se misturar jamais. Quando isso acontece temos uma nova TP com uma roupagem mais humanista e existencialista.

Junto com o coaching cresceu o chamado empreendedorismo de palco (EP). São aqueles profissionais que trabalham com palestras motivacionais e grandes palestras de coaching. Esse mercado tem crescido assustadoramente e também tenho sérias dificuldades com ele. Aqui se aplica a mesma observação que fiz aos profissionais de coaching. Mesmo assim indico um ótimo texto escrito por Ícaro de Carvalho chamado Por que o empreendedorismo de palco irá destruir você. O autor começa com uma afirmação que capta bem o ponto onde quero chegar:

O empreendedorismo é a nova religião do homem moderno. Materialista e secular, ele substituiu os Santos do seu altar por fotografias de homens bem sucedidos; os seus Evangelhos são livros como “O sonho grande” e “A força do Hábito”. Ele acredita, de alguma maneira, que tudo aquilo irá aproximá-lo do seu objetivo principal: sucesso, fama e dinheiro…de preferência agora!”³

Essa cultura construída em torno do coaching e do EP é em sua maioria materialista. O objetivo de muitos é o sucesso financeiro, e isso significa enriquecer. Com um fator especial: o mais rápido possível. É comum ler e ouvir grandes promessas e ensinamentos sobre como trabalhar menos e ganhar mais. O foco está no esforço intelectual e físico daquele que está buscando seu lugar ao sol. É dessa cultura de palco, sonhos, riquezas e promessas que estou falando. Já viu onde isso vai chegar na igreja? Vamos falar disso agora!

O Coaching na Igreja

Eu já vi palestras de coaching acontecendo onde deveria haver uma pregação da Palavra. Isso mesmo, em pleno culto público. Infelizmente essa cultura chegou em muitas igrejas. E se eu já não me dou bem com ela no mercado de trabalho, na igreja não tenho medo de dizer que ela é minha inimiga. Assim como repudio a TP também o faço com essa nova onda da TC. Em alguns sentidos essa segunda chega a ser pior do que a primeira. Vamos analisar três pontos que constroem a TC.

Humanismo: O coaching utiliza de técnicas humanas num indivíduo que é o centro de tudo para que este alcance seus objetivos humanos. Muitos pastores e líderes tem enveredado por esse caminho. Tratam suas pregações como palestras motivacionais da fé que confundem fé com força e vontade, evangelho com motivacionismo e Cristo com um palestrante. O foco está naquilo que o homem pode fazer através da sua fé pessoal. Fé essa que passa por Cristo, mas que tem seu objeto na própria pessoa e nos seus esforços dirigidos. Muitas “pregações” tem o mesmo objetivo do coaching, ou seja, estão “visando à conquista de grandes e efetivos resultados em qualquer contexto, seja pessoal, profissional, social, familiar, espiritual ou financeiro”. O apelo pode ser até espiritual, mas ainda assim Você já deve ter escutado muito coisas do tipo “como ser o melhor marido”, “como atrair e fidelizar pessoas para o reino”, “alcançando sucesso através da fé.”. Tudo isso travestido de espiritualidade…

Materialismo: há um desejo enorme em conquistar coisas. Sejam elas produtos do mercado como carros, casas, roupas, viagens ou algo mais “espiritual” como paz, pessoas, bom casamento, filhos educados, castidade, etc. As pessoas querem conquistar, possuir e avançar, sendo tudo isso fruto não da humilhante auto confrontação e negação de si mesmo, mas da auto-afirmação. O papel do pastor se tornou muito parecido com o do coach: “estimular, apoiar e despertar em seu cliente (ovelha)… o seu potencial infinito para que este conquiste tudo o que deseja”. É exatamente isso que essa mistura humanista-materialista busca: o potencial infinito de cada ser humano para conquistar aquilo que ele deseja. Há uma conexão com o existencialismo, onde o indivíduo e sua busca pessoal por significado em si mesmo passa a ser o centro do pensamento filosófico.

Ceticismo: Humanismo e materialismo são marcas de seres céticos. A crença no Deus da Bíblia é cada vez mais fraca onde esse tipo de cultura se manifesta. Como eu já disse, a TC busca descobrir o potencial de cada pessoas para que ela alcance seus próprios objetivos. Dependência de Deus é algo apenas fantasiado. Orações são feitas apenas para que Deus abençoe nossos planos e para que Ele nos dê apoio em nossa própria empreitada. O sobrenatural é esquecido e Deus vai ficando cada vez mais distante. Na TC o soberano é o indivíduo com suas decisões de fé e sucesso. Em muitas igrejas tudo que você vai encontrar nos púlpitos são mensagens sobre o que os homens podem fazer para serem alguma coisa melhor do que já são. Até a mistura com conteúdos de coaching, marketing pessoal e psicologia você encontrará. Aliás, tem sido comum pastores e líderes entrarem nesses cursos e palestras para serem mais persuasivos, contagiantes e teatrais (pra não usar manipuladores). O Espírito Santo não tem muito espaço na TC, mesmo que usem seu nome.

São por esses motivos principais que digo que a TC está substituindo a TP. Esse discurso tem atraído jovens, empresários, profissionais liberais, e todo o tipo de gente, principalmente na classe média. E aqui está a transição entre as duas abordagens. A TP faz uma barganha com Deus crendo que Ele efetuará milagres para benefício material e espiritual do homem. A TC eliminou a barganha ao deixar Deus de longe, mas passou a ter no próprio homem a força “milagrosa” para seu benefício material e espiritual. Na TP ainda há uma certa dependência de Deus e seu agir sobrenatural, enquanto na TC o homem declarou sua independência. O relacionamento de barganha foi substituído para o relacionamento de platéia. O Deus da TC está assistindo e torcendo pelos grandes empreendedores no palco da fé. Talvez você ache ruim o uso do palavra coaching, mas pelo que você entenda a expressão completa “teologia do coaching” que estou usando para definir esse tipo de abordagem.

Essa é uma teologia mais sutil, que parece mais humilde, mas na verdade transborda soberba ainda mais do que a tenebrosa TP. Seu ambiente menos escandaloso e mais conformado a cultura secular permite que esse tipo de abordagem lote igrejas e obtenha grande aceitação. Geralmente se fala o que as pessoas querem ouvir e pecados são tratados como pedra e obstáculos no caminho que devem ser superados. A pregação fica até mais dinâmica, com uso de mídias, frases de efeito e motivação mútua. Tudo isso associado com o desejo material dos nossos dias só contribuem para que a TC ganhe terreno. Logo logo nós teremos grandes problemas com ela e talvez ela chegue ao mesmo patamar da TP. Que Deus nos livre e proteja disso!

O que Jeremias e Tiago Diriam?

Não quero tornar esse texto num texto longo demais. Portanto, encerrarei apenas com três passagens bíblicas (quem sabe um artigo completo poderá sair em breve sobre o tema). Compare com as ideias da TC e veja como a Bíblia é contrária a isso. Jeremias profetizou para um povo orgulho e que confiava em suas próprias forças e em sua “tradição espiritual”. Contra isso Deus falou por meio do profeta:

Assim diz o Senhor: “Não se glorie o sábio em sua sabedoria nem o forte em sua força nem o rico em sua riqueza, mas quem se gloriar, glorie-se nisto: em compreender-me e conhecer-me, pois eu sou o Senhor, e ajo com lealdade, com justiça e com retidão sobre a terra, pois é dessas coisas que me agrado”, declara o Senhor” (Jeremias 9:23,24)

Num momento mais a frente ele resume bem sua mensagem ao povo:

Assim diz o Senhor: Maldito é o homem que confia nos homens, que faz da humanidade mortal a sua força, mas cujo coração se afasta do Senhor… Mas bendito é o homem cuja confiança está no Senhor, cuja confiança nele está” (Jeremias 17:5-7)

Encerro com a passagem de Tiago, um verdadeiro balde de água fria na teologia do coaching:

Ouçam agora, vocês que dizem: “Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro”. Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa. Ao invés disso, deveriam dizer: “Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo”. Agora, porém, vocês se vangloriam das suas pretensões. Toda vanglória como essa é maligna.” (Tiago 4:13-16)

TP e TC, ambas são maléficas e distantes do cristianismo bíblico que leva o homem a negar a si mesmo, humilhar-se diante de Deus e depender dele em tudo. Ter sucesso profissional e conquistar riquezas não é pecado em si, mas isso não pode ser um dos pontos centrais de nossa espiritualidade cristã. Cuidado para não substituir a teologia da prosperidade pela teologia do coaching, em ambas o deus que adoram é o mesmo: o homem.

***

¹ Retirado de http://www.ibccoaching.com.br/portal/coaching/o-que-e-coaching/ Acesso em 28/12/2016

²Ibid


³ Ícaro de Carvalho. Por que o empreendedorismo de palco irá destruir você. Acesso em 28/12/2016

28 de dez. de 2016

Teologia e Piedade

Lyle D. Bierma*

Voltemos agora às duas maneiras sugeridas anteriormente nas quais a teologia de Calvino é relevante para a igreja mundial no século 21. Essas duas maneiras tem a ver não tanto com o conteúdo da teologia de Calvino, mas com toda a sua maneira de fazer teologia.

Em primeiro lugar, vejamos como Calvino relaciona teologia e piedade. A primeira edição das Institutas de Calvino, em 1536, tinha o seguinte título longo e interessante – “Institutas da Religião Cristã, contendo virtualmente toda a soma da piedade e tudo o que necessita ser conhecido sobre a doutrina da salvação: Uma obra que vale a pena ser lida por todos os cristãos que têm zelo pela piedade”. Para começar, trata-se de “institutas”. Institutio em latim significa algo como “instrução básica”, “compêndio” ou “manual de instruções”. Mas um manual de que – de teologia? Não, um manual “que contém virtualmente toda a soma da piedade”, um manual “que vale a pena ser lido por todos os cristãos que têm zelo pela piedade”. Não se trata de um livro primariamente sobre teologia, mas sobre piedade. Obviamente existe muita teologia no livro. Mas para Calvino a reflexão teológica nunca é um fim em si mesma. A teologia é sempre utilizada a serviço da piedade; ela deve conduzir à piedade. Assim, a teologia de Calvino algumas vezes tem sido chamada de theologia pietatis, uma “teologia da piedade”.

Mas o que Calvino quer dizer com piedade? Na mesma sentença de abertura das Institutas, nós lemos: “Quase toda a sabedoria que possuímos... consiste em duas partes: o conhecimento de Deus e de nós mesmos” (1.1.1). Na seção seguinte, Calvino passa a dizer que, quando se trata do conhecimento de Deus, “nós não diremos que... Deus seja conhecido onde não existe religião ou piedade. . . Eu denomino ‘piedade’ aquela reverência unida ao amor a Deus que o conhecimento dos seus benefícios induz” (1.2.1). Ou então: “Aqui certamente está a religião pura e verdadeira: a fé tão unida a um sincero temor a Deus que esse temor também inclui uma reverência voluntária e leva consigo o culto legítimo que está prescrito na lei” (1.2.2).  Portanto, para Calvino o verdadeiro conhecimento de Deus é um conhecimento sobre Deus que é aplicado na piedade ou devoção, isto é, em reverência, fé, amor, adoração, obediência e serviço a Deus. A teologia – o estudo de Deus, a busca de conhecimento acerca de Deus – deve evocar uma resposta de piedade em nós se queremos verdadeiramente conhecer a Deus. Pois, como diz Calvino:

"Como pode o pensamento de Deus penetrar em sua mente sem que você perceba imediatamente que, visto ser obra de suas mãos, você foi... vinculado a ele por direito de criação, você deve a sua vida a ele? – que qualquer coisa que você empreende, qualquer coisa que faz, deve ser atribuída a ele? (1.2.2)".

A teologia deve levar à piedade.

É exatamente assim que Calvino realiza a sua própria reflexão teológica ao longo das Institutas; as Institutas são na realidade um manual de instruções sobre a piedade. Por exemplo, ao tratar acerca de Deus, o Criador, Calvino não somente explica os detalhes da doutrina da criação, mas também exorta o leitor a “comprazer-se piedosamente nas obras de Deus” (1.14.20). O que significa confessar que Deus é o Criador dos céus e da terra? Primeiramente, diz ele, significa refletir sobre a grandeza do divino Artista mediante a contemplação de suas maravilhosas obras de arte. A criação reflete “essas imensas riquezas de sua sabedoria, justiça, bondade e poder... [e] nós devemos meditar sobre elas longamente, considerá-las em nossas mentes com seriedade e fidelidade, e evocá-las repetidamente” (1.14.21). Mas a nossa resposta deve ir além disso. Nós também devemos compreender, diz Calvino, que Deus criou todas as coisas para o bem da humanidade; devemos “sentir o seu poder e graça em nós mesmos e nos grandes benefícios que ele nos concedeu, e assim sermos levados a confiar, invocar, louvar e amá-lo” (1.14.22). Isso é piedade. Essa é uma teologia que conduz à piedade. Para Calvino, estudar a doutrina da criação não é mero exercício intelectual; envolve a pessoa inteira – coração, alma, mente e força. Como ele disse no final dessa seção acerca da criação: “Convidados pela grande doçura da beneficência e bondade [de Deus], dediquemo-nos a amá-lo e servi-lo de todo o nosso coração” (ibid.).

O mesmo se aplica à maneira como Calvino trata da predestinação, uma questão doutrinária sobre a qual ele tem sido freqüentemente mal-compreendido e violentamente atacado. O historiador americano Will Durant certa vez escreveu: “Nós sempre acharemos difícil amar o homem [Calvino] que obscureceu a alma humana com a mais absurda e blasfema concepção acerca de Deus de toda a longa e honrada história das tolices”. E o tele-evangelista americano Jimmy Swaggart certa vez afirmou: “Creio que Calvino fez com que incontáveis milhões de almas fossem para a perdição”. Todavia, a predestinação é um conceito bíblico, um conceito com o qual os teólogos ocidentais tinham se debatido por mil anos antes de Calvino. O que Calvino faz com essa doutrina é o que ele faz com toda a sua teologia – ele a relaciona com a piedade do crente. A doutrina da eleição, diz ele, em primeiro lugar acentua para nós que a salvação é sola gratia: é totalmente e inteiramente pela graça de Deus. Portanto, a doutrina da eleição deve nos humilhar, porque ela nos defronta com o fato de que não temos nenhuma contribuição a dar para a nossa salvação; ela é unicamente uma obra de Deus. Deus nos escolheu antes que nós o escolhêssemos. Em segundo lugar, essa doutrina devia levar-nos a glorificar a Deus por essa grande dádiva que ele graciosamente nos concedeu (3.21.1). Por fim, ela pode assegurar-nos do caráter definitivo da nossa salvação, pois Deus prometeu em Romanos 8 que aqueles a quem ele predestinou para a salvação nunca irão separar-se do seu amor. Como Calvino disse: “Cristo nos libertou da ansiedade nessa questão... Quando somos dele, somos salvos para sempre” (3.24.6). Calvino não pretendeu que a predestinação fosse uma doutrina aterrorizante para o crente, mas uma doutrina consoladora.

Essa teologia da piedade foi assimilada por muitas confissões reformadas na própria época de Calvino e nos anos posteriores à sua morte. A denominação à qual eu e o professor Bosma pertencemos, a Igreja Cristã Reformada da América do Norte, subscreve três dessas antigas confissões reformadas – a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort – e em todas as três está presente essa aplicação pessoal, prática e experimental das doutrinas. Por exemplo, a Confissão Belga de 1561 explica com alguns detalhes a doutrina da providência de Deus, mas também dá atenção a qual deve ser a nossa resposta a esse ensino (Art. 13). Nós não devemos ser excessivamente curiosos quanto às obras de Deus que ultrapassam a compreensão humana. Devemos adorar as decisões de Deus com humildade e reverência. Devemos reconhecer “o conforto indizível” que essa doutrina nos dá em seu ensino de que nada nos pode acontecer por acaso. E podemos repousar no pensamento de que “Deus controla os demônios e todos os nossos inimigos, os quais não podem nos ferir sem a sua permissão e vontade”. Essas são respostas de piedade!

Uma teologia de piedade é ainda mais pronunciada no Catecismo de Heidelberg, de 1563. Como um catecismo, obviamente ele foi concebido como um guia para ensinar, pregar e aprender doutrinas. Mas ele sempre apresenta as doutrinas com um propósito em mente: aplicar essas doutrinas à vida e experiência cristãs; instilar no crente um senso de consolo ou certeza da salvação; evocar no crente uma resposta de gratidão por sua libertação do pecado e da miséria espiritual. Ouça algumas das perguntas: “Como a ressurreição de Cristo nos beneficia?” (P. 45); “Como a volta de Cristo para julgar os vivos e os mortos consola você?” (P. 52); “Que bem lhe faz, todavia, crer em tudo isto?” (P. 59); “Por que ainda precisamos praticar boas obras?” (P. 86); “Por que os cristãos precisam orar?” (P. 116). A reflexão teológica no Catecismo de Heidelberg não é um exercício abstrato. Ela é relevante para a vida e a experiência do crente.

O que Calvino e as confissões fazem aqui não é de fato uma coisa nova. Essa teologia da piedade já estava evidente na tradição humanista cristã na qual Calvino foi formado. Porém, o que é mais importante, ela tem o seu fundamento nas Escrituras, o recurso básico de Calvino na elaboração da sua teologia. Quando Calvino descreve o conhecimento de Deus como um conhecimento sobre Deus que evoca uma resposta de confiança, obediência e amor por Deus, ele está simplesmente ecoando o ensino da própria Escritura. Encontramos já no Antigo Testamento que o conhecimento de Deus não é mera posse de informações sobre Deus. É o reconhecimento dos direitos de Deus sobre nós. É o reconhecimento respeitoso e obediente do poder de Deus, da graça de Deus, das exigências de Deus. Conhecer a Deus é honrá-lo e fazer o que é justo e íntegro. Como Deus diz através do profeta Jeremias:

"Não se glorie o sábio na sua sabedoria... mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor, e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor". (9.23-24)

A implicação é que o Senhor se compraz no amor e na justiça não somente quando ele os pratica, mas também quando nós os praticamos. Então poderemos afirmar que realmente compreendemos e conhecemos a Deus.

O livro de 1 João no Novo Testamento dá ênfase ao mesmo ponto: “Ora, sabemos que o temos conhecido por isto: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade” (2.3-4). Portanto, a teologia da piedade de Calvino ressoa com a mensagem da própria Escritura. Pode-se realmente dizer que essa maneira pela qual ele procurou mostrar o valor das Escrituras na sua época não tem relevância em nossos próprios dias?
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* É professor de Teologia Sistemática no Calvin Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan. Esse texto é um excerto de uma palestra proferida no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper no dia 28 de agosto de 2003, traduzida pelo Rev. Alderi S. Matos, disponível na íntegra aqui

1 de dez. de 2016

Entrevista com Igor Miguel - Igreja, Missão e Missionalidade



É com prazer que publicamos mais uma entrevista. Agora com o pastor Igor Miguel, que é casado com a Juliana, pai do João, cristão reformado, teólogo, pedagogo e mestre em letras (língua hebraica) pela FFLCH/USP. Trabalhou por 6 anos com crianças e adolescentes vulneráveis como educador e consultor educacional em projetos sociais. Especialista em educação cognitiva na SERVED, uma organização internacional que trabalha com educação em contexto de crise, principalmente no Oriente Médio. Vice-presidente da AKET (Associação Kuyper de Estudos Transdisciplinares) e pastor na Igreja Esperança em Belo Horizonte - MG. Igor também escreve no seu blog Pensar...  

Quem realizou a entrevista foi o pastor e nosso articulista Thomas Magnum. A entrevista trata sobre o papel da Igreja na Missão. Desejamos que este conteúdo seja enriquecedor e promova edificação e instrução para toda a Igreja brasileira.

Igor, o assunto missionalidade ou igreja missional tem tomado boas proporções no Brasil, principalmente por pensadores calvinistas. O que se quer dizer com igreja missional? E qual é a diferença de uma abordagem missional para uma missionária?

Missionalidade é um modo de se fazer missão. A elaboração de um termo novo é adequado quando serve para identificar uma ênfase necessária ou a especificidade de um modo particular de se fazer missão. Sabemos que o Evangelho não muda, mas as exigências contextuais mudam drasticamente. Particularmente, o que se evidencia, é que em contextos urbanos pós-cristãos e secularizados, ambientes culturais em que evangélicos são rotulados por causa de maus exemplos (como no caso da imagem produzida pelo neopentecostalismo) ou ambientes em que a pregação pública do Evangelho é restrita por forças legais, o modo missional de testemunhar o Evangelho de Cristo pode ser muito eficaz.

Há muitos livros sobre o conceito de missionalidade. Mas, uma síntese conceitual que me ajuda a me localizar é que missionalidade é uma missão encarnacional. Ou seja, ela se inspira no movimento que o Verbo de Deus fez: o Logos tornou-se gente para se fazer conhecido aos que salvava (Jo 1:14). A missionalidade é um modo de dar testemunho, o que exige a presença da igreja de maneira intencional na vida ordinária e nas relações humanas corriqueiras. Diferente de modelos de evangelização em que não-cristãos são atraídos à igreja, nesse caso, a igreja torna-se uma plataforma missional quando equipa e educa cristãos a darem testemunho de Cristo nas relações concretas com a sociedade, no ambiente das relações familiares, comunitárias, no trabalho ou na vida cultural. Muito poderiam objetar a esta altura: “mas a evangelização sempre foi assim, não?” De certa maneira, mas há uma diferença, quando intencionalmente nos engajamos em relações humanas para que de maneira orgânica e relacional nossas vidas legitimam o poder transformador do Evangelho.

Missionalidade exige um profundo conhecimento da vida humana, exige penetração cultural sem mundanismo. Como Keller afirma com frequência em seu livro “Igreja Centrada”: um cristão missional é alguém que é igual e diferente ao mesmo tempo. Isto significa que um cristão não pode ser um “alien” em termos culturais amplos. Ou seja, não deve criar barreiras culturais desnecessárias. Por outro lado, seu modo de ver a vida, de lidar com o sofrimento, com as relações humanas, de encarar o trabalho e a cultura, dão testemunho de que ele é de outra “cidade”. E, é precisamente aí, que o testemunho cristão emerge, pois desta maneira ele quebra caricaturas sobre o que significa ser cristão e abre portas para o testemunho verbal da boa-nova de Cristo. Por superação de barreiras culturais desnecessárias entende-se que o cristão deve frequentar espaços comuns, ter conversas em linguagem comum (evitar o “evangeliquês”), praticar esportes, ter hobbys, ir aos teatros, ouvir boa música (não somente música gospel) e ter repertório cultural para criar pontos de contato com a cultura onde está inserido. Claro que esta relação com a cultura não é acrítica, ao contrário, cristãos tem um modo particular de lidar com a cultura e tais contextos. E, é esta particularidade que alavanca e oportuniza o testemunho do Evangelho.

Ao tratar sobre missionalidade, qual é a ligação que tal assunto tem com cosmovisão cristã?

A cosmovisão cristã implica um “imaginário social”, pra usar um termo do filósofo Charles Taylor. O cristão imagina a existência a partir da narrativa bíblica criação-queda-redenção. Uma cosmovisão cristã madura e bem-educada fornece critérios, competências culturais e sabedoria para interagir com um ambiente sem ser absorvido por ele. Ao mesmo tempo que consegue discernir os ídolos culturais e denunciá-los com a mensagem do Evangelho. Por outro lado, se entendemos cosmovisão como uma “mentalidade”, sabemos que nossa sociedade pós-moderna não quer apenas “coerência lógica”, ela aspira por narrativas plausíveis, visões de boa vida e sentido. Concordo com James K.A. Smith, filósofo cristão do Calvin College, de que cristãos precisam viver e oferecer, mais do que uma mentalidade, mas uma narrativa alternativa e melhor em lugar das inúmeras narrativas reducionistas das sociedades secularizadas. Temos que ter a capacidade de oferecer uma história definitiva que conduz os homens a seu florescimento, libertação e pautada em virtudes como: fé, esperança e amor.

Autores como Tim Keller - que escreveu Igreja Centrada - e Michael Goheen - que escreveu Igreja Missional - tem contribuído muito para formação de pensadores para missões urbanas. Como devemos encarar esse desafio urbano em nosso atual contexto de igreja no Brasil. Essa urbanidade da missão, de fato a um tipo de contextualização?

A missão urbana não é um luxo ou uma “modinha” misssiológica. É um desafio real e crescente na missão contemporânea. Keller traz dados importantes da ONU sobre a crescente urbanização do mundo. Nas próximas décadas a tendência é que tenhamos mais da metade da população mundial morando em algum grande centro urbano. Ou seja, o cenário futuro da missão é que ela será predominantemente urbana.  Entretanto, a missão urbana exige preparação, há um fluxo muito intenso de diversidade cultural, forças migratórias, trocas simbólicas, efervescência política e social. A cidade é complexa, o que exige uma abordagem missionária igualmente complexa. É fundamental ao missionário e ao cristão urbano um entendimento mais preciso das mazelas da cidade: solidão, individualismo, narcisismo, hedonismo, pobreza e violência. Em contrapartida, o cristão urbano tem que reconhecer as riquezas da cidade: produção cultural, engajamento científico, produção de bens intelectuais, poder de sinergismo humano por causas sociais e políticas legítimas, e influência.

A igreja precisa promover treinamento missional para que cristãos criem relacionamentos significativos, se interessem autenticamente pelas pessoas a seu redor, e que superem as forças de isolamento social que impedem os vínculos necessários para o testemunho evangélico.  Cristãos precisam ser treinados a acolher perguntas honestas para darem respostas honestas aos problemas levantados a respeito da vida, cultura, Deus e espiritualidade.

Claro, este é o lado da penetração cultural da igreja, em contrapartida, a igreja local tem um papel fundamental quando se envolve em alto compromisso em manter seu púlpito cristocêntrico e sermões contextualizados.  Ou seja, o membro da igreja deve se sentir seguro em levar um amigo cético ou de uma outra religião para um culto.  Deve ter certeza que uma linguagem “inclusiva” será utilizada, que a mensagem será transmitida de tal modo que o cristão seja edificado e o não-cristão evangelizado simultaneamente. Claro, isto exige a noção, que Kevin Vanhoozer propõe do “pastor como teólogo público”. Um pastor que fala em resposta às demandas de sua cultura sem alterar a verdade evangélica.

Existem limites para contextualização da missão?

Sem dúvida! A contextualização não pode ser fundada em uma “ortodoxia generosa” como propõem protagonistas do movimento chamado “igreja emergente” ou similares. No afã de nos tornarmos relevantes corremos o risco de nos secularizarmos ou de sermos assimilados por aspectos culturais estranhos ao Evangelho. Este, na verdade, é o grande desafio da contextualização. Algumas igrejas, por receio de serem “mundanizadas”, escolheram o caminho do isolamento cultural (como se isso fosse possível), o que ironicamente conduzirá essa igreja à irrelevância por sua incapacidade de comunicar antigas e importantes verdades em uma linguagem compreensível e que alcance as questões mais profundas da vida humana. Por outro lado, não podemos permitir que sejamos acometidos por uma ansiedade que nos leve a abrirmos precedentes que acabam comprometendo, em não raros casos, o núcleo da verdade evangélica.

Temos visto no Brasil um reflorescer do pensamento voltado para a integralidade da missão, vemos também que o que tem estado presente nesse reflorescimento é um relacionamento ideológico que não era presente em 1974 por exemplo quando muito se discutia sobre missão integral. Como você vê essa questão da ideologia sendo mesclada com a teologia cristã da missão e quais são os perigos e talvez pontos positivos dessa abordagem?

Indico os diversos textos escritos pelo teólogo Guilherme de Carvalho sobre o tema, suas críticas são importantes e não podem ser desprezadas no atual debate sobre a relação entre ideologia e a teologia da missão integral. O livro Ortodoxia Integral, do filósofo Pedro Dulci, também traz uma importante e atual contribuição para a reflexão.

Sendo muito direto: a missão cristã é “proto-ideológica”, ou seja, antes do conceito moderno da possibilidade de controle histórico da realidade, seja por livre iniciativa racional ou monopólio estatal-coletivista, o cristianismo já estava em missão pelo mundo. O que não significa que a missão cristã seja apolítica. Obviamente que não! Afirmamos um Senhor que é soberano sobre toda realidade, e que Cristo, crucificado e ressuscitado, subverteu todos os poderes deste século assumindo “todo poder nos céus e na terra”. Por esta razão, cristãos impulsionados pela Grande Comissão anunciam que não há área neutra e que todos os homens são convidados, uma vez regenerados e justificados, a se tornarem membros do Reino de Deus. A missão cristã deve ser integral no sentido de que a totalidade de Cristo atinge a totalidade da vida humana, bem nos termos do Pacto de Lausanne. Porém, o velho debate tem sido em termos metodológicos, ou seja, de que maneira podemos fazer uma missão que seja integral? Pra muita gente, Cristo se restringe à esfera confessional, seu senhorio e sua obra parecem perder força quando chegam à esfera pública. A tentação é tão grande para alguns, que parecem não encontrar recursos na fé evangélica para atuarem na dimensão da pobreza, da vulnerabilidade, nos direitos humanos e em políticas públicas. O que fazem então? Optam por uma ideologia e uma metodologia secular com raízes na noção de autonomia humana (neste ponto nem a direita ou a esquerda são inocentes), e assim, acabam comprando parcial ou totalmente o pacote progressista como referência missiológica.

Temos que reconhecer que muitos irmãos que estão no espectro progressista possuem sensibilidades que não podem ser desprezadas: a profunda desigualdade social, alguns abusos antiéticos por parte de corporações financeiras, relações abusivas inspiradas em racismo, o machismo, a misoginia, os índices altíssimos de jovens negros mortos em comunidades vulneráveis, a exclusão e a objetificação da mulher. Reconheço, me preocupo e até me envolvo pessoalmente com algumas dessas pautas. (É importante mencionar que nem todos esses problemas são adequadamente qualificados por militantes ou adeptos a ideologias à esquerda). De qualquer forma, meu questionamento não se dirige à pauta, mas à metodologia. Quando sirvo o pobre com alguma ajuda financeira, ou criando oportunidades, ou quando trabalho no campo da ciência para a promoção da pesquisa a partir de uma mentalidade cristã, ou ainda, quando me engajo no campo político, a glória não pode ser de Darwin, Howkings ou Marx, deve ser de Cristo. Para isso, preciso me valer de uma metodologia baseada no radical senhorio de Jesus, e todas as implicações inerentes a uma vida sob seu governo. Claro que, pra muita gente, isso seria confundido com movimentos que se apropriaram de nomes como Kuyper e Dooyeweerd e que propõem uma espécie de “dominação” teonomista da realidade. Nenhum dos autores mencionados concordariam com tal experimento. Cristãos operam no mundo, sem pretensões triunfalistas, ao mesmo tempo que evitam o quietismo anabatista.

Temos realmente uma necessidade de lermos a missão por uma ótica das ciências sociais?

Orientados pelas Escrituras, temos que ler a missão por uma ótica radicalmente centrada no conhecimento do Deus Trino pelo drama messiânico de Jesus Cristo: encarnação, nascimento, vida, sofrimento, crucificação, sepultamento, ressurreição, ascensão e retorno. E, os desdobramentos da missão de Deus na história da Igreja. Temos as Escrituras e de maneira secundária a tradição cristã como fonte para esse conhecimento. Essa seria a matriz de uma sabedoria cristã que pode fundamentar e orientar a missiologia cristã. Por outro lado, dependendo da área em que a missão cristã está engajada, as diversas ciências, por graça comum, podem fornecer importantes ferramentas e informações sobre fenômenos ou comportamentos, que podem ser úteis para o missionário. Mas, isso é muito diferente de produzir ou ler a missão a partir de um determinado campo científico. O contrário seria verdadeiro: a partir da matriz que inspira a missão cristã já mencionada, ler as ciências (seja social, biológica, psicológica etc) inclusive para discernir o que deve ser acolhido com ações de graças, criticado ou rejeitado.

Você tem estado envolvido com trabalhos em comunidades carentes. Ao olharmos para as críticas de pensadores mais voltados para a teologia calvinista clássica, vemos um calor na crítica a missão integral, mas, talvez, não tanto calor em desenvolver trabalhos relevantes em relação ao problema da pobreza. Como a igreja deve lidar com isso e como você analisa esse fato de reformados não estarem tão preocupados com a práxis cristã?

Engraçado, nesses 6 anos diretamente envolvido com comunidades vulneráveis, particularmente crianças e adolescentes, e em contato e conhecendo vários projetos nessa direção aqui no Brasil e em outros lugares no mundo, como África, América Central e Oriente Médio, o que tenho percebido, ironicamente, é que os mais engajados com vulneráveis não são nem gente com uma missiologia mais à esquerda, e tampouco calvinistas, mas o pentecostal ou o evangelical no sentido mais simples do termo. Essa é a ironia da década, a meu ver. E, eles não estão ali por razões ideológicas, ou porque possuem uma missiologia sofisticada, simplesmente entendem que precisam servir tais comunidades com o evangelho e com o serviço de misericórdia. Claro que existem excelentes trabalhos nos dois grupos mencionados, de fato, conheço projetos sociais de gente inspirada em missiologias mais progressistas, como há igrejas calvinistas que possuem comprometimento social. Mas, precisamos reconhecer que, sem entrar no mérito da eficiência, é fato que a maioria das iniciativas nessa área são de gente que vive uma fé evangélica simples e com a Bíblia na mão, muitos pentecostais históricos. Talvez o que a igreja mais necessite neste momento seja exatamente isso: que ela seja mais evangélica. Nestes termos, entendo que nossos irmãos reformados possuem a lenha, mas eles podem ter o fogo, a disposição evangélica de conectar o que se crê com o que se deve fazer. Em contrapartida, nossos irmãos evangelicais podem ser mais profundos e mais competentes, superando a tentação do anti-intelectualismo. E, nossos irmãos ainda hipnotizados ou ideologicamente intoxicados, podem abraçar e redescobrir o frescor da velha e boa evangelicalidade. Todos nós somos passíveis de extremos, manter-se no centro dessa conversa exige muita energia, eventualmente escorregaremos, mas precisamos sempre regular nossas intenções a partir da centralidade do Evangelho e da suficiência da obra de Cristo, sem quem, nenhuma missão é possível.

23 de nov. de 2016

Os anjos pecaram com as mulheres em Gênesis 6?

Por Leandro Lima
Há algum tempo, tenho recebido diversos pedidos para escrever algo a respeito deste tema, principalmente, porque muitos sabem minha posição a respeito, e não poucos a acham estranha, sendo justo, portanto, dar algumas explicações.
A seguir, vou expor em poucas linhas o que entendo desse assunto, porém, antes gostaria de fazer algumas ressalvas. Esse não é um assunto essencial para a fé cristã ou reformada. Não é um assunto que se deveria criar grandes polêmicas em cima dele, afinal, ninguém vai ganhar nada (ou perder) se conseguir provar ou deixar de provar sua própria posição. Portanto, os interessados deveriam apenas ler os argumentos desta ou daquela posição, e reter o que é bom. Mesmo se achar que não há nada de bom para reter, é um direito. Qualquer tipo de disputa, nesse sentido, acaba sendo prejudicial à causa de Cristo, pois expõe nossas divisões entre os incrédulos, impedindo-os de crer que Jesus é o enviado do Pai (Jo 17.21).
Uma vez que, efetivamente, acredito que alguns anjos caídos se relacionaram com as mulheres em Gênesis 6, vou apenas expor meus argumentos a seguir, sem me preocupar em expor a outra posição, a qual advoguei por bastante tempo, mas hoje, não consigo mais defendê-la, por estar convencido de que a evidência bíblica é majoritariamente contrária a ela.
Inicialmente, deve ser dito que a simples leitura de Gênesis 6, não é suficiente para definir a posição:
"Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas, vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes agradaram”. (Gn 6.1-2)
Em si mesma, a passagem poderia ser aplicada naturalmente à mistura de raças, ou seja, que os descendentes de Sete se casaram com as descendentes de Caim. Porém, desde os tempos antigos, os rabinos judeus tiveram dificuldades de aceitar essa posição, e um dos motivos era o fato de apenas “homens" da descendência de Sete, se casarem com “mulheres" da descendência de Caim. Por que não vice e versa? Mas, claro, isso não resolve a questão. Porém, os rabinos notaram que no Antigo Testamento, em nenhum lugar o termo “filhos de Deus” é aplicado diretamente aos homens. Na verdade, fora de Gênesis 6, o termo só aparece no livro de Jó e no Salmo 29.1. No livro de Jó, ele claramente é aplicado aos anjos, entre os quais estava Satanás: "Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles”. No Salmo 29.1, o termo pode se aplicar também aos anjos reunidos em assembléia celeste, porém, é impossível ter certeza disso, pois o texto não explica quem são esses “filhos de Deus”. De qualquer modo, a única referência explícita no Antigo Testamento do termo é para anjos. Além disso, os rabinos estranharam o resultados daquela união: “Ora, naquele tempo havia gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens, as quais lhes deram filhos; estes foram valentes, varões de renome, na antiguidade” (Gn 6.4). Esses gigantes ou "os nefilins” (הַנְּפִלִים), que é o termo hebraico para “gigantes", parecem ser o resultado direto daqueles casamentos impróprios. Provavelmente, o termo nefilim vem da raiz hebraica “cair”, ou “caído”.
Porém, como eu disse, até aqui, apesar de alguns indícios interessantes, não se pode fechar a questão. Certamente alguém poderia dizer: o simples fato dos rabinos judeus crerem que eram anjos não prova nada. É verdade, eu diria, a menos que o Novo Testamento conceda apoio a essa interpretação judaica. E o meu ponto é justamente esse: o Novo Testamento confirma essa interpretação. Eu tentarei mostrar isso abaixo. Mas, antes, precisaremos ver exatamente o que era que os judeus, especialmente os da tradição apocalíptica, acreditavam. Há três livros judaicos que mencionam o fato. O livro dos Jubileus, o Testamento dos Doze Patriarcas, e o Livro de Enoque. Menções também aparecem no Documento de Damasco, no livro do Eclesiástico, em 3Macabeus, e em fragmentos dos manuscritos do Mar Morto. Todos foram escritos entres os séculos um e dois antes de Cristo. Esses livros judaicos interpretam que anjos, chamados de guardiões, se relacionaram com as mulheres, gerando gigantes demoníacos, os quais foram exterminados no dilúvio. A questão é a seguinte: essa interpretação era amplamente conhecida nos dias de Jesus e do Novo Testamento, como as provas documentais atestam. Se ela estivesse errada, o Novo Testamento deveria condená-la de alguma maneira. Porém, não só o Novo Testamento não a condena, como a aprova, em pelo menos quatro livros, que são as duas cartas de Pedro, a carta de Judas, e indiretamente também no livro do Apocalipse.
Todos esses livros mencionam “anjos em prisão” (1Pe 3.18-20, 2Pe 2.4, Jd 6, Ap 9). A questão é: de onde vem esse conceito de anjos em prisão que todos esses textos mencionam? E a resposta única é: daqueles livros apócrifos mencionados acima. Isso é algo literariamente comprovado. O autor da carta de Judas cita explicitamente o livro de Primeira Enoque, que é o principal livro da tradição apocalíptica judaica que defende o relacionamento dos anjos caídos com as mulheres: “Quanto a estes foi que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que veio o Senhor entre suas santas miríades, para exercer juízo contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as obras ímpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes que ímpios pecadores proferiram contra ele” (Judas 14-15). Esse texto, que inclusive cita o nome de Enoque, está integralmente em 1Enoque 1.9: “Ele virá com milhares de Santos, para exercer o julgamento sobre o mundo inteiro e aniquilar todos os malfeitores, reprimir toda carne pelas más ações tão iniquamente perpetradas e pelas palavras arrogantes que os pecadores insolentemente proferiram contra Ele”. Apesar dos esforço de alguns intérpretes de dissociar os dois textos, uma olhada nos dois textos gregos mostra que Judas citou, embora de forma relativamente livre, o texto do livro de 1Enoque. Mesmo que você não leia grego, pode ver a semelhança das palavras correspondentes entre os dois textos:
1)    Judas 14-15: δο λθεν κύριος ν γίαις μυριάσιν ατο15 ποισαι κρίσιν κατ πάντων κα λέγξαι πάντας τος σεβες περ πάντων τν ργων σεβείας ατν ν σέβησαν κα περ πάντων τν σκληρν ν λάλησαν κατʼ ατο μαρτωλο σεβες.
2)    1 En 1.9: τι ρχεται σν τας μυριάσιν [ατο κα τοςγίοις ατο, ποισαι κρίσιν κατ πάντων, κα πολέσαι πάντας τος σεβες, κα ()λέγξαι πσαν σάρκα περ πάντων ργων τς σεβείας ατν ν σέβησαν κα σκληρν ν λάλησαν λόγων κατʼ ατο μαρτωλο σεβες.
É inútil tentar fechar os olhos para essa evidência. Judas citou mesmo o livro apócrifo de 1Enoque. E, praticamente, todos os judeus dos tempos em que o Novo Testamento foi escrito, conheciam aquele livro. Então, preste atenção: Judas claramente conhece o Livro de 1Enoque, pois o está citando literalmente, e o tal livro fala do relacionamento dos anjos com as mulheres, então, o que Judas tem a dizer a respeito? Não seria a excelente ocasião para desmentir essa tão conhecida interpretação judaica, e colocar um fim a esse equívoco de uma vez por todas?
Mas ele faz o contrário. Ele menciona o pecado dos anjos e cita novamente o Livro de Enoque diversas vezes para confirmar isso:
"5 Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo uma vez por todas, que o Senhor, tendo libertado um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu, depois, os que não creram; 6 e a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do grande Dia; 7 como Sodoma, e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregado à prostituição como aqueles, seguindo após outra carne, são postas para exemplo do fogo eterno, sofrendo punição”. (Judas 5-7).
Veja que ele está citando três maus exemplos no texto, de atitudes condenáveis, lá do passado. O exemplo da geração que saiu do Egito, o exemplo dos anjos, e o exemplo de Sodoma e Gomorra. Antes de entrar especificamente nos termos aplicados aos anjos, veja que ele diz algo interessante ao mencionar o pecado de Sodoma e Gomorra: “que, havendo-se entregado à prostituição como aqueles, seguindo após outra carne”. Quem são esses “aqueles” que se entregaram à prostituição em termos semelhantes ao “ir após outra carne” de Sodoma e Gomorra? Ora, ele só mencionou os dois exemplos antes, o exemplo da geração que saiu do Egito, e o exemplo dos anjos que pecaram. Então, precisa ser um desses dois grupos. “Aqueles" é um pronome demonstrativo adjetival masculino plural. Nesse sentido, realmente poderia ser aplicado a qualquer dos dois grupos anteriores, apesar de fazer mais sentido referir-se ao grupo mais próximo já mencionado, que é exatamente o grupo dos anjos. E note que o pecado da geração do Egito foi explicitamente mencionado acima: “incredulidade”. Eles não creram que Deus poderia dar a terra de Canaã, pois ficaram com medo dos povos que moravam lá. O pecado da geração do Egito não tem relação com “prostituição" e “ir após outra carne”, pois o próprio Judas disse que foi incredulidade, e o Pentateuco confirma isso. Alguns argumentam que quando Moisés estava no Sinai, o povo lá embaixo se entregou à prostituição. Isso é verdade, porém, isso não os impediu de entrar em Canaã, pois Deus perdoou o pecado do povo. Eles não entraram em Canaã porque ficaram com medo do relato dos espias. Foram incrédulos. E por causa disso, toda aquela geração morreu no deserto. Somente Josué e Calebe entraram na terra. Então, o pecado da geração que saiu do Egito não um "ir após outra carne", mas falta de fé. Por outro lado, o pecado dos anjos, ele não mencionou explicitamente. Portanto, logicamente e exegeticamente, quando ele diz que “aqueles” se prostituíram e foram após outra carne, ele está falando dos anjos, e explicando o pecado deles. O pecado do homossexualismo de Sodoma foi de fato um “ir após outra carne”, pois foi algo contrário à natureza dos homens. Do mesmo modo, o pecado dos anjos com as mulheres foi algo contrário à natureza angélica, uma espécie também de "ir após outra carne".
Esse pecado dos anjos é justamente o pecado que o Livro de Enoque menciona, o livro que Judas está citando literalmente. Na verdade, e agora avançamos ainda mais nessa compreensão, cada uma das palavras usadas por Judas para descrever a transgressão dos anjos no verso 6 são encontradas no Livro de Enoque. Abaixo destaco as principais palavras e os temas correspondentes que aparecem no Livro de Enoque, tanto em português quanto em grego:
3)    Judas 6 -  e a anjos, os que não guardaram o seu estado originalmas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do grande Dia — γγέλους τε τος μ τηρήσαντας τν αυτν ρχν λλ πολιπόντας τ διον οκητήριον ες κρίσιν μεγάλης μέρας δεσμος ϊδίοις π ζόφον τετήρηκεν·
4)    1 En 10.12:  (amarra-os por sete gerações nos vales da terra, até o dia do seu julgamento, até o dia do Juízo Final!) — δσονατος βδομήκοντα γενες ες τς νάπας τς γς μέχρι μέρας κρίσεως ατν κα συντελεσμο, ως τελεσθ τ κρίμα το αἰῶνος τν αώνων
5)       1 En 12.4 (Escriba da Justiça, vai e anuncia aos Guardiões do céu que perderam as alturas do paraíso e os lugares santos e eternos) — “ γραμματες τς δικαιοσύνης Πορεύου κα επ τος γρηγόροις το ορανο οτινες πολιπόντες τν ορανν τν ψηλόν
6)    1 En 14.5: (Daqui por diante nunca mais havereis de subir ao céu; mas foi determinado que sejais acorrentados aqui na terra por todos os tempos—— *να μηκέτι ες τν ορανν ναβτε π πάντας τος αἰῶνας, κα *ν τος δεσμος τς γς ρρέθη δσαι μς ες πάσας τς γενες το αἰῶνος”
7)    1 En 15.3 (Por que motivo abandonastes o alto do céu, santo e eterno) — “δι τί πελίπετε τν ορανν τν ψηλν τν γιον το αἰῶνος”
8)    1 En 15.7 (Por isso eu não criei para vós mulheres, pois os espíritos do céu possuem no céa sua morada) — “κα δι τοτο οκ ποίησα ν μν θηλείας· τ πνεύμα(τα) το ορανο, ν τ οραν  κατοίκησις ατν”.
Ou seja, claramente o conceito de anjos que abandonaram sua morada celeste, e agora estão aprisionados, por terem pecado, é um conceito explícito do Livro de Enoque. Neste livro, é defendido abertamente que esse pecado foi o relacionamento deles com as mulheres em Gênesis 6. Novamente deve ser dito, se Judas entendesse que isso estava errado, uma vez que citou o referido livro, ele tinha a obrigação de esclarecer seus leitores de que aquela história era falsa. Mas, não apenas ele não faz isso, como claramente confirma a história!
Isso não significa que Judas considerasse o livro de Primeira Enoque inspirado, nem que tudo o que está escrito no referido livro seja verdade, mas deve ser entendido que aquela parte do livro de Enoque era verdade porque é verdade de Deus, independente da fonte. Se alguém disser que, então, Judas citou uma mentira, pois a frase é do falso Enoque e não do verdadeiro, em resposta podemos dizer que a frase talvez seja do Enoque verdadeiro, mas que foi preservada até ser escrita no livro de 1Enoque através da tradição oral. De qualquer modo, temos um autor do Novo Testamento, inspirado pelo Espírito Santo, confirmando essa parte do ensino do Livro de Enoque. Precisamos aceitar, portanto, que essa parte é verdadeira, ou rejeitarmos a carta de Judas.
Na verdade, a própria estrutura que Judas usa, de citar os três exemplos do passado, ou seja, geração do Egito, geração de Sodoma, e anjos do dilúvio, segue um padrão que pode ser encontrado em vários outros livros (Cairo Damascus (CDA Col. ii:13)Eclesiástico 16.7-10, 3Mac 2.4-7, Testamento de Naftali 3.4–5, m. Sanhedrin 10:3). E nesses livros, reconhece-se que o pecado dos anjos é o relacionamento com as mulheres. Como Judas poderia usar a mesma estrutura amplamente conhecida pelos judeus se quisesse provar algo diferente, sem mostrar que estava querendo provar algo diferente?
Mas não adiantaria tirar Judas do Cânon. O Apóstolo Pedro confirma o ensinamento de Judas e do Livro de Enoque sobre anjos em prisão também usando termos do livro de Enoque, e ainda por cima parece ligar o fato diretamente com o dilúvio: "Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo; e não poupou o mundo antigo, mas preservou a Noé, pregador da justiça, e mais sete pessoas, quando fez vir o dilúvio sobre o mundo deímpios” (2Pe 2.4-5). Quando o autor diz que Deus “não poupou aqueles anjos”, ele está fazendo uma menção direta ao fato de que, apesar daqueles anjos terem pedido clemência e misericórdia no referido livro, Deus não os poupou e os aprisionou no abismo. Veja essa parte daquele livro: "Enoque, tu, o Escriba da Justiça, vai e anuncia aos Guardiões do céu que perderam as alturas do paraíso e os lugares santos e eternos, que se corromperam com mulheres à moda dos homens, que se casaram com elas, produzindo assim grande desgraça sobre a terra; anuncia-lhes: `Não encontrareis nem paz nem perdão'. Da mesma forma como se alegram com seus filhos, presenciarão também o massacre dos seus queridos, e suspirarão com a sua desgraça. Eles suplicarão sem cessar, mas não obterão nem clemência nem paz!(1Enoque 12). Várias vezes no livro, é mencionado que Deus não concederia clemência e que eles seriam aprisionados em abismos de trevas.
E na primeira carta, Pedro mencionou explicitamente que os “espíritos em prisão” foram aqueles que pecaram nos dias do dilúvio: "no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através daágua” (1Pe 3.19-20). O texto está dizendo que Jesus, após sua ressurreição, no poder do Espírito, foi até esse lugar de prisão, e proclamou sua vitória sobre aqueles espíritos que, noutro tempo, ou seja, no passado, foram desobedientes, nos dias de Noé[1]. E após fazer isso, ele subiu ao céu, deixando os principados e potestades debaixo de seus pés (1Pe 3.22). Isso fecha o cerco bíblico em torno do tema. O Novo Testamento está abertamente apoiando a ideia de que o pecado dos anjos em Gênesis 6 foi o de se relacionar com as mulheres. Não é sem motivo que, atualmente, a esmagadora maioria dos comentaristas bíblicos sérios e conservadores, que escreveram comentários dos livros de Judas e Pedro, para as mais conceituadas séries de comentários bíblicos atuais, não hesitam em defender isso explicitamente. Exemplos são:

SCHREINER, T. R. (2003). 1, 2 Peter, Jude (Vol. 37, p. 336). Nashville: Broadman & Holman Publishers.
DAVIDS, P. H. (2006). The letters of 2 Peter and Jude (p. 49). Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Pub. Co.
BAUCKHAM, R. J. (1998). 2 Peter, Jude (Vol. 50, p. 52). Dallas: Word, Incorporated.
KELLY, J. N. D. (1969). The Epistles of Peter and of Jude (p. 256). London: Continuum.
Em último lugar, é preciso notar que o único argumento efetivo usado contra a ideia é o que Jesus disse em Lucas 20:35-36 "mas os que são havidos por dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os mortos não casam, nem se dão em casamento.Pois não podem mais morrer, porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição. Note que Jesus está falando do futuro, quando os crentes ressuscitarem, e mesmo tendo corpos, não se casarão mais. A questão, entretanto, não parece ser a impossibilidade de que isso aconteça, mas o fato de que Deus decidiu que isso não deve acontecer. Assim, como nós hoje podemos nos casar, mas no futuro não poderemos mais, aqueles anjos do passado desobedeceram, e fizeram aquilo que não devia ser feito, e a partir de então, não podem mais fazer.  Essa passagem, portanto, ao contrário de contradizer o assunto, até mesmo o reforça, pois chama os crentes ressuscitados de “iguais aos anjos, filhos de Deus”, o título dado a eles em Jó e em Gn 6.
Sobre a pergunta a respeito de, se aquele pecado representa a queda original dos anjos, e, portanto, ela não teria acontecido em Gênesis 3, deve ser notado que apenas Satanás é mencionado em Gênesis 3, e nenhum outro anjo. De qualquer modo, entendo que o pecado dos anjos no tempo do dilúvio não foi a queda original dos anjos, mas o aprofundamento da mesma, por parte de alguns anjos que já estavam seguindo Satanás em sua rebelião. Somente esses anjos foram aprisionados. Satanás mesmo, não participou do pecado em Gn 6. Sobre se isso ainda pode acontecer hoje, a resposta é: não. Deus lançou todos aqueles anjos no tártaro (2Pe 2.4), e certamente estabeleceu uma proibição que impossibilita os anjos de fazerem isso outra vez.
Não cabe aqui especular qual foi a forma utilizada, se eles assumiram formas humanas, ou se possuíram homens. Não temos nenhuma informação na Bíblia sobre como isso se deu, mas sabemos que anjos podiam comer e exercer atividades físicas próprias de um homem (Gn 18.7-8, Hb 13.2).
E, por fim, é interessante lembrar que, aquilo que aqueles anjos caídos tentaram realizar, ou seja, unir a natureza angélica à natureza humana, e que foi considerado abominável por Deus, o próprio Jesus realizou de uma maneira sublime e santa: ele uniu a própria natureza divina à natureza humana, tornando-se “Deus-homem”. Por isso, talvez, após sua ressurreição, com o corpo glorificado, ele tenha ido aquele lugar de prisão anunciar sua vitória sobre aqueles antigos anjos caídos.


[1] A interpretação de que Jesus pregou em espírito, através de Noé, é forçada no texto. A estrutura temporal da passagem não deixa dúvidas. Toda ela se desenvolve a partir dos três grandes eventos redentivos realizados por Cristo: morte, ressurreição e ascensão. Ele morreu na carne, mas foi vivificado em espírito, ou seja ressuscitou (v. 18). Então, foi e pregou aos espíritos em prisão (v. 19). E após isso, subiu ao céu na ascensão (v. 22). Os versos 20 e 21 são uma digressão temporal, uma explicação do pecado daqueles espíritos em prisão, o qual se deu nos dias de Noé. As marcações temporais da passagem, portanto, não permitem outra interpretação.
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Fonte original aqui