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29 de ago. de 2016

Pastores-políticos: pode isso, Perkins?

Por Vinícius Silva Pimentel

Nos últimos dias, surgiram nas redes sociais várias discussões entre cristãos sobre se seria lícito a um pastor cumular um ofício político, como o de vereador. Esses debates não focavam o aspecto da laicidade do Estadocomo por vezes se discute, sobretudo entre os progressistas, se deveria haver algum tipo de impedimento ao exercício de cargo político por pessoas professadamente religiosas. Em vez disso, a conversa girava em torno da ética vocacional cristã: se há várias situações em que se admitem ministros evangélicos bivocacionados (por exemplo, quando exercem o magistério), por que a vocação política seria uma exceção?

Acredito que podemos encontrar muita sabedoria para lidar com este assunto no livro A Treatise of the Vocations (“Um tratado das vocações”), do puritano William Perkins (1558–1602), que apresenta de forma sistematizada e pretensamente exaustiva uma “teologia prática” das vocações.

A obra se estrutura do seguinte modo: após definir “vocação” ou “chamado” (“é um certo tipo de vida, ordenado e imposto ao homem por Deus, para o bem comum”) e distinguir entre vocação geral e particular, Perkins discorre sobre como fazer uma boa escolha, uma boa entrada, um bom progresso e umbom término do chamado.

No capítulo sobre a “boa entrada no chamado”, Perkins responde se é lícito a alguém entrar em duas vocações ao mesmo tempo. Ele defende que essa dupla vocação é aceitável em alguns casos, mas não em outros.

É lícito exercer duas vocações em três circunstâncias:

1. Quando o próprio Deus determina a combinação de dois chamados. O exemplo mais óbvio é o de Melquisedeque, que foi designado rei e sacerdote.

2. Quando o duplo chamado não contraria as Escrituras e, ao mesmo tempo, serve ao bem comum em determinadas circunstâncias peculiares. Perkins usa os exemplos de Eli (sacerdote e juiz), Samuel (profeta e juiz) e Moisés (profeta e governante civil) e explica que, “naqueles períodos, ambos os ofícios estavam tão corrompidos que não se podiam achar homens comuns suficientes para exercer cada chamado separadamente”.

3. Quando dois chamados podem ser cumulados sem se atrapalharem mutuamente ou impedirem o bem comum. Aqui, Perkins está falando de vocações que são tipicamente cumuladas, como as de pai e de profissional, mas também de situações em que necessidades particulares exigem a dupla vocação, como quando o apóstolo Paulo fazia tendas em Corinto. Perkins diz que, em casos de similar necessidade, um ministro evangélico pode exercer outro chamado, desde que isso não seja um empecilho à sua vocação principal nem se torne numa afronta aos homens.

Em sentido contrário, a dupla vocação se torna ilícita também em três circunstâncias:

1. Quando Deus dissocia dois chamados por sua Palavra e mandamento.

2. Quando a prática de um chamado atrapalha a do outro.

3. Quando a combinação de dois chamados prejudica o bem comum.

Perkins usa então alguns exemplos em que a dupla vocação é inaceitável: o Senhor Jesus, sendo Mestre da igreja, se recusou a ser juiz num conflito entre dois irmãos pela herança; os apóstolos, em virtude dos deveres do seu chamado, se recusaram a exercer o ofício de diáconos. E conclui:

"A partir disso inferimos que nas cidades, corporações e sociedades, deve-se tomar cuidado (tanto quanto possível) para que os diversos ofícios e encargos, sendo em si mesmo pesados e de espécies distintas, não sejam postos sobre os ombros de um só homem. Pois a execução de todos eles causa distraçõese as distrações incapacitam até o mais apto homem de desincumbir-se de um ofício que seja".

O argumento geral de Perkins (com o qual concordamos) nos permite afirmar duas coisas. Por um lado, não é possível afirmar que a cumulação dos ofícios de ministro eclesiástico e magistrado civil seja sempre ilícita, já que eles não foram expressamente dissociados nas Escrituras. Todavia, por outro, é altamente recomendável que essas duas vocações permaneçam separadas; pois cada uma envolve grandes atribuições (são “em si mesmas pesadas”) e há pouca ou nenhuma sobreposição entre si (são “de espécies distintas).

Portanto, a partir da sabedoria bíblica exposta por William Perkins, a dupla vocação de ministro e magistrado somente seria possível em circunstâncias altamente peculiares, nas quais não houvesse número suficiente de homens aptos para que cada um dos ofícios fosse exercido por indivíduos diferentes. Fora dessa hipótese incomum, é mais provável que a cumulação desses chamados seja um obstáculo ao bem comum: sofrerá a igreja, sofrerá a sociedade.

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27 de jul. de 2016

Calvinismo e Conservadorismo - Entrevista com Vinícius Pimentel



É com alegria que trazemos mais uma entrevista para nossos leitores. Dessa vez conversamos com Vinicius Pimentel, que foi entrevistado por Thomas Magnum - um dos editores do nosso blog. Vinicius já palestrou no Fórum Nordestino de Cosmovisão e tem desenvolvido pesquisas na área de filosofia do direito. Vinicius é casado com Laura. Presbítero da Igreja Presbiteriana da Aliança em Recife/PE. Bacharel e Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Comentarista do Site Política Reformada. Dessa vez nosso assunto é sobre Calvinismo e Conservadorismo. Devido ao aumento de posições conservadoras e liberais - num viés político - achamos por bem, publicarmos uma entrevista sobre o assunto. Desejamos a todos uma boa leitura.

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Temos visto um crescente interesse no país por parte de jovens cristãos que tem sido atraídos por leituras mais conservadoras. Depois da chegada de literatura de viés político reformado no Brasil, há uma demanda por essas leituras. Você tem dado palestras sobre a filosofia política de Herman Dooyeweerd, como esse filósofo pode ajudar numa construção de uma filosofia política saudável para a formação de um pensamento político cristão no Brasil?

Os cristãos têm, já há alguns séculos, se debruçado sobre a questão de como o cristianismo se relaciona com a cultura em geral e, particularmente, com o crescimento do secularismo e a perda de influência da cristandade sobre a vida pública. Herman Dooyeweerd foi um filósofo cristão que encarou o desafio de interagir com a cultura, sem, contudo, ceder às pressões do secularismo. A busca desse delicado equilíbrio entre diálogo e antítese é, na minha opinião, a principal contribuição de Dooyeweerd (e, mais amplamente, do chamado neocalvinismo) para outros cristãos que se veem desafiados a uma interação construtiva com a cultura e a vida pública.

Dooyeweerd também enfatizava, seguindo o espírito do neocalvinismo, o senhorio absoluto de Cristo sobre toda a vida e, por conseguinte, a autoridade relativa dos poderes temporais (a chamada “soberania das esferas”). No âmbito da política, essa verdade nos leva a enxergar que o impulso idólatra do coração humano muitas vezes o leva a pôr a sua confiança última no governo civil, tratando-o como um deus a quem ele apresenta suas súplicas por socorro e, em contrapartida, oferece sua devoção. Num sentido mais positivo, essa visão da soberania das esferas estimula os cristãos reformados a se organizarem em associações livres que busquem enriquecer a vida cultural e “reconquistar” espaços que foram indevidamente ocupados pelo Estado.

O Conservadorismo tem crescido no Brasil no que se refere a escritos de filósofos que tem tratado sobre o tema, e transitado entre Conservadorismo e Liberalismo Econômico. Autores como Russell Kirk, T.S. Eliot, Edmund Burke, Roger Scruton e Theodore Dalrymple, tem sido alguns dos nomes publicados no Brasil, principalmente por editoras de viés conservador. Existe possibilidade de diálogo entre Conservadorismo e Calvinismo?

Alguns irmãos, até mais versados no neocalvinismo do que eu, são um tanto relutantes em estabelecer um canal mais aberto de diálogo com o conservadorismo. Eles pretendem manter uma equidistância entre direita e esquerda e, por julgarem ser o conservadorismo “de direita”, acreditam que uma visão política genuinamente cristã não possa ser confundida com uma postura conservadora.

Pessoalmente, penso que há um caminho muito fértil de diálogo com esses pensadores mencionados. Embora não possa haver uma absorção acrítica da linguagem e das pautas conservadoras, talvez eles tenham o mérito de lembrar aos cristãos algo de que nos esquecemos: que o cristianismo teve um papel muito importante na formação da cultura ocidental.

Nem todos expoentes do Conservadorismo são cristãos professos, mas, há certas similaridades no que se refere a preservação de uma tradição. A tradição de filosofia política reformada pode utilizar-se do Conservadorismo de forma a dialogar com ele, mesmo tendo outros pressupostos filosóficos?

A ênfase dos conservadores na “tradição” deve ser vista por dois aspectos. Positivamente, podemos vê-la como reminiscente da visão bíblica dos efeitos radicais da queda humana no pecado: os conservadores tendem a enfatizar as limitações humanas e a desconfiar da capacidade dos intelectuais de projetar e promover soluções para as mazelas da vida social. Thomas Sowell chamava essa perspectiva de “visão restrita” da humanidade e ela, sem dúvida, ecoa a consciência bíblica de que o homem e o mundo estão “quebrados” por causa do pecado, razão pela qual a única “solução” para os problemas do mundo é a redenção em Cristo Jesus.

Mas é justamente aí que vemos, por outro lado, as limitações do próprio conservadorismo e sua ênfase na “tradição”. O mesmo Sowell afirma (recorrendo ao economista Friedrich Hayek) que a tradição é resultado de uma seleção natural, uma “concorrência darwiniana”, dos comportamentos e conhecimentos mais funcionais em detrimento dos menos aptos a promover o desenvolvimento humano. Ora, essa noção evolucionista da tradição, ao mesmo tempo em que nega a capacidade do homem individualmente considerado, mantém a esperança de que algum tipo de força impessoal intergeracional possa promover desenvolvimento e progresso. Isso soa até como um tipo de panteísmo. A cosmovisão cristã, ao contrário, mantém que todo progresso humano se dá pela providente ação de Deus na história e, particularmente, pela bênção que Deus põe sobre as nações que abençoam a Sua igreja, como Ele prometeu a Abraão.

Como você definiria o pensamento político de Dooyeweerd?

Já mencionei a ênfase neocalvinista no senhorio absoluto de Cristo e na soberania das esferas. Isso resulta na visão de que o governo civil deve ser limitado à sua própria esfera, que é a realização da justiça (“dar a cada um o que é devido”). Porém, é preciso observar que Dooyeweerd, assim como Kuyper, consideravam que essa função jurídica do Estado incluiria também a tarefa de mediar conflitos entre as demais esferas de soberania. Eles ainda mantinham uma defesa do monopólio estatal da jurisdição.

Porém, eu arriscaria dizer que ambos ficaram aquém do potencial de sua teoria neste ponto. A soberania das esferas nos possibilita enxergar que cada associação humana também tem a sua “justiça interna”: o Estado aplica o “poder da espada”, a igreja tem o “poder das chaves” e os pais detêm a vara da correção. Se isso é verdade, então não pode existir uma “esfera das esferas”, como Kuyper afirmava ser o Estado; ao contrário, todas as esferas compartilham o dever de zelar pelo respeito mútuo a essas “fronteiras”. Quando uma esfera tenta usurpar a função de outra, não é tarefa apenas do Estado conter esse avanço, mas de todas as demais. Na verdade, como o próprio Kuyper reconheceu, com muita frequência é o próprio Estado que se coloca em posição tirânica e tenta engolir as outras esferas de vida. Uma visão política reformada precisa reconhecer esse “pluralismo jurídico” e enfatizar o dever cristão de preencher os espaços da vida social não apenas como indivíduos, mas também mediante igrejas particulares, famílias, empresas, instituições de ensino e outras associações livres que realizem tarefas que hoje são realizadas de modo indevido (e ineficiente) pelo Estado.

Quais suas referências cristãs para um pensamento político reformado?

Os autores cristãos que mais tenho lido são aqueles que pertencem à tradição reformada holandesa. Além de Kuyper e Dooyeweerd, mencionaria Groen van Prinsterer e Klaas Schilder, além de João Althusius, que escreveu a famosa obra Política durante a resistência holandesa ao absolutismo espanhol, e do próprio João Calvino.

Mais recentemente, tenho me dedicado à leitura de obras da tradição reformada anglo-saxã, especialmente dos puritanos. Uma referência fundamental é o livro Lex, Rex, de Samuel Rutheford.

Você enquadra o Conservadorismo como ideologia?

Para responder essa pergunta, é preciso definir “ideologia”. Algumas definições são abrangentes ao ponto de incluir todo pensamento político sistematizado como ideologia. Geralmente, eu uso o termo no sentido de um comprometimento radical, religioso e idólatra com certos projetos políticos que redimiriam a humanidade de certas mazelas e a conduziriam a um estado idealizado de vida; ideologia, portanto, é uma versão “descristianizada” do drama bíblico da criação, queda e redenção em Cristo Jesus.

Nesse sentido, é difícil identificar o conservadorismo como ideologia. Primeiro, porque não há um “projeto conservador” facilmente identificável; pautas políticas muito diferentes entre si têm sido defendidas por conservadores de diferentes lugares e épocas. Segundo, os conservadores costumam ser bastante enfáticos na sua rejeição a qualquer proposta de “redenção” pela política.

Mas alguns elementos tornam essa discussão mais complexa. Quando instados a sistematizar sua visão política, os conservadores por vezes revelam certas esperanças políticas que denunciam um viés ideológico. Já mencionei o exemplo de Sowell, que deposita sua confiança na “competição darwiniana” que, mediante o conhecimento acumulado entre as gerações, por tentativa e erro, levaria ao desenvolvimento humano. Além disso, o tipo de “conservadorismo” que vem se popularizando no Brasil tem características ainda mais evidentes de uma ideologia: o culto a personalidades, o revisionismo histórico e uma visão idealizada do passado me parecem elementos claramente idolátricos na visão dos conservadores tupiniquins.

A teologia reformada defende a depravação total da humanidade. Essa postura teológica tem importantes inferências na formação de um pensamento político. O fato de o pecado desordenar a estrutura humana e seus relacionamentos concorrem para uma desordem social e política também. Quando ideologias retiram a gravidade ou aniquilam o pecado de sua construção filosófica o que isso pode causar em um sistema de pensamento que propõe o bem público?

De fato, uma perspectiva política que se pretenda genuinamente bíblica deve levar em consideração a significância radical da queda humana no pecado, a depravação total. Quando essa doutrina bíblica é esquecida na reflexão política, tornamo-nos excessivamente propensos às utopias e às soluções mirabolantes dos intelectuais. Ao mesmo tempo, passamos a desconfiar que o padrão bíblico de justiça seja rudimentar e retrógrado e, no fim das contas, negamos a realidade que está diante dos nossos olhos para que o mundo se amolde às nossas teorias.

Essas distorções ficam claras quando pensamos no problema da criminalidade. Se excluirmos de nossa análise a significância radical da queda, teremos de encontrar a fonte dos delitos fora do coração humano e recorreremos a abstrações: a sociedade, a pobreza, a opressão serão justificativas para a maldade. O problema dessas abstrações não é apenas que elas negam a realidade, mas que elas quase sempre resultam em injustiças bem reais.

Recentemente, a notícia de um estupro coletivo gerou um repúdio generalizado à “cultura do estupro”, expressão que pretende reunir uma gama absurda de comportamentos sociais, desde uma cantada na rua até a efetiva agressão física a mulheres. Vi gente chegar ao ponto de dizer que a ausência de mulheres no primeiro escalão do governo federal seria um exemplo dessa cultura do estupro. Deixando de lado as peculiaridades daquele caso específico, o problema desse tipo de discurso é que ele ofusca o fato de que há uma vítima real de um crime real, praticado por indivíduos reais, e acaba por tirar o foco da tarefa imediata de perseguir e punir os culpados. Quando, porém, analisamos o problema levando em conta a malignidade do pecado e seus efeitos, concluímos ser uma exigência da justiça que um atentado à intimidade sexual seja equiparado a um crime contra a vida e, por conseguinte, punido com a mais grave das penas. Não é à toa que a lei civil de Israel prescrevia a morte para o estuprador. E não surpreende que a “rudimentar” proporcionalidade da lei de talião seja mais justa, equilibrada e harmônica do que todos os manifestos de intelectuais e artistas contra a abstrata “cultura do estupro”.